terça-feira, 6 de setembro de 2011

O Barqueiro "Lérias"

O António da Costa, mais - e quase só - conhecido pelo "Lérias", tal como seu pai e avô já tinham sido, nasceu e cresceu nas margens do Tejo, entre os Engarnais e o Pego, nuns casebres, onde vivia com os seus e não longe do seu barco que transportou de tudo, desde pessoas a animais, passando por todo o género de artigos, entre as duas margens do grande rio Tejo.

Desde que se conhecia, há perto de sessenta anos, sempre fora barqueiro e, a qualquer hora do dia ou da noite, chovesse ou trovejasse, não se lembrava de alguma vez ter recusado um frete a qualquer pessoa que lho pedisse. 

Bastavam dois assobios para que nos minutos seguintes aparecesse o ''Lérias'', muitas vezes ainda a apertar as ceroulas, que depois aforraria, e, logo a seguir, desamarrasse o barco e o trouxesse para junto do pequeno cais de pedras. 

Limpava a água que estivesse no chão, carregava mercadorias e animais e ajudava pessoas a acomodar-se a bordo. 

Pegava depois nos remos, ou na vara, com que dirigia e empurrava o barco, avançava contra a corrente até tomar o ponto de onde mais facilmente chegaria ao outro lado, cerca de quatro minutos depois. 

Ajudava a descarregar. Sentava-se no poial que seus antepassados ali tinham preparado, acabava de fumar a cigarrada e iniciava a viagem de regresso. 

Não havia horas; estava sempre de serviço; dois assobios e começava o trabalho, de acordo com o local onde estivesse o cliente que chamava. 

O único vício que se lhe conhecia e que não fazia qualquer esforço para abandonar, era o tabaquito. Não se lembrava de alguma vez ter ido ao lado do Pego, buscar ou levar alguém, sem fazer um paivante, sentado no poial de pedras, antes de iniciar o regresso.

Dizia, com a laracha que caracterizava as suas saídas, que quando levasse alguém sem a sua cigarrada, esse, nunca mais lhe daria trabalho. E, muito sério, acrescentava: "palavras do meu avô que Deus tem". 

Uma das melhores prendas que se podiam oferecer ao "Lérias" era uma onça de tabaco "Superior", mas sem livro de mortalhas; essas vinham de Espanha. Desde que usava aquelas mortalhas, nunca a tosse o apoquentou, dizia ele. 

Cada pitilho, formado por uma pitada de tabaco, tirado da onça com uma pinça feita pelo polegar e indicador da mão direita, enrolada na mortalha espanhola, e colada com o cuspo da ponta da língua, dava para três ou quatro fumaças. Vício de boca, pois nunca engoli o fumo, como o ''Lérias'' repetia, vezes sem conta. 

Até no dia em que fui levar a "patroa", já em trabalho de parto, para ser conduzida ao hospital, enquanto a aconchegavam no barco, preparei a cigarrada e puxei-lhe fogo. 

Talvez por isso, o meu filho, a quem pus o nome "Tejo", acabou por me nascer para lá do meio do rio. Histórias!. ..

E lá vinham as prosas que umas vezes entretinham, outras distraiam e, até cansariam alguns fregueses. O "Lérias" contava as histórias conforme a cara dos passageiros, mas também sabia ouvir e apreciava uma boa passagem; minava-se por galgas bem metidas. 

Deliciava-se com a inocência de certas pessoas, mas nunca faltava ao respeito a ninguém e dentro do seu barco, onde era capitão e autoridade suprema, como ele orgulhosamente se intitulava, não permitia espertezas saloias, nem desrespeito pelos mais humildes. 

Contava ele, então: Um belo dia, tinha no cais a senhora professora dos Casais e um conhecido doutor advogado, de Abrantes, para serem transportados para o outro lado. Depois do paivante da ordem, ajudei a senhora a subir e a acomodar-se no barco; o doutor sentou-se em frente da professora. 

Não sei porquê, naquele dia não me estava a apetecer fazer jus ao meu nome - lérias - e mais cabisbaixo que o costume, lá ia manejando remos e vara, sem me meter com ninguém. 

Nisto, o espevitado do doutor, com ares de sabichão, atirou, à queima-roupa: Oh! "Lérias", você sabe alguma coisa de leis? 

Eu, senhor doutor advogado, como houvera de saber! Nunca as estudei, nem, precisei delas para nada!... 

Não é isso, homem! É que você acabou por perder metade da sua vida!... 

Eu, encolhi os ombros e continuei a remar. Mas a seguir, dando uma de finória, disse-me a professora:

Oh, senhor "Lérias", você nunca foi à escola, pois não? 

É verdade, senhora professora! Desde que me conheço a minha escola é esta: o rio, o meu barco, o meu serviço e a minha família. De resto ... 

Então não sabe ler nem escrever!? 

Pois não, minha senhora! Mas, graças a Deus, o meu barco não deixa de andar por falta disso!... 

A verdade é que perdeu, sem proveito, metade da sua vida!... 

Aí por alturas do meio do rio, onde a água faz uma pequena gola e corre mais forte, penso que por terem feito uma descarga na barragem, veio uma onda, maior que o normal, e o barco virou-se, caindo os passageiros para a água, ficando agarrados a uns juncos, não longe do barco. Ao ver a professora e o advogado, esbracejando no meio da água, perguntei: 

Vocês sabem nadar?

Não! Responderam os dois; Tire-nos daqui, homem de Deus, senão ainda morremos para aqui afogados! 

Aí, cá o "Lérias", percebendo que o perigo era nulo e tudo não passaria de roupa molhada e um pequeno susto, voltou-se para "ambos os dois"e disse: 

Que pena, acabariam perdendo a vida os dois, por nunca terem aprendido a nadar! Isto, se aqui o morto que nada conhece de leis, nem nunca aprendeu a ler e escrever, não ressuscitasse para vos salvar! E, já de novo dentro do barco, ao chegar ao local de descida, ainda o "Lérias", que aqui vêm e a terra há-de comer, acrescentou: 

Cada um é para o que nasce e tem, no seu campo, tanto ou mais valor que qualquer outro terá no seu meio. Não se deve discriminar ninguém. Saber mais ou saber menos, não deve servir para diminuir ninguém. E, lembro-me dos ensinamentos do meu avô: 

Os que mais sabem, são, na maior parte das vezes, os que menos dizem. Pelo contrário, o fala-barato, que nunca se cala, fá-lo para esconder o que não sabe.