Olhe, senhor doutor juiz, quando vi o meu homem pular a cerca dos porcos, lá junto às canas de milho, e coser-se com os barrocos que dão para a da Ti’Teresa, má sombra me cobriu.
Com perdão de vocelência, alaguei-me de suores frios...
Terei pensado que nunca o meu Manel entrara, em nossa casa, daquela maneira e, se precisava ocultar-se assim, é porque haveria, pela certa, mouro na costa.
Ou andava à coca de qualquer coisa, ou qualquer coisa andava à coca dele.
Uma restolhada daquelas, aquela hora, não era normal; para mais que ainda estava longe a hora das pessoas se recolherem.
O meu Manel tinha saído, pouco depois do pôr-do-sol, com uma saca vazia ao ombro, e, sem água vai, lá foi na direcção da nossa da Quelha.
Vai atrás de alguma lebre, pois as malvadas não deixam nada verdejar naquela santa horta. Logo vem e espero que mais bem-disposto que o que saiu, terei eu pensado, com os meus botões.
Mas o meu homem saía muito, ultimamente. E, ou não chegava a vir à cama, ou aparecia com o sol já alto.
Até cheguei a desconfiar de qualquer servicito que tivesse lá para a raia – andava assanhado o negócio do volfrâmio -.
Alguns carregos, ou coisas que o valham, pois andava muito ligado a um espanhol, que já tinha vindo à nossa terra e tinha fama de muito má rês.
E, como o meu Manel chegava a casa tão quebrado, tão sonolento, às vezes com bebida a mais, até cheguei a pensar que andasse, por ali, negócio de saias.
Falava-se, à boca pequena, que havia coisas lá por casa da viúva do moinho; Até me chegou aos ouvidos que o meu Manel também por lá se perdia, às vezes.
Mas, como sempre pensei que só procura carne velha e magra, quem não tem, em casa, limpinha e boa, não me apoquentei com os mexericos.
Porém, os segredinhos à minha chegada, os silêncios quando eu aparecia e os meios olhares, começaram a fazer-me macaquinhos no sótão.
O Manel não fazia muito gasto, ao que tinha em casa, mas como andava assoberbado com saídas e entradas, a qualquer hora do dia ou da noite, fiquei tranquila.
Trazia dinheiro para casa, pois, segundo me dizia, pagava-se bem, pelos serviços que fazia.
Tanto quanto julgo saber, era um dos braços direitos do dono do negócio. Ele e mais outro, dos lados da raia, eram os responsáveis.
Pelo Natal, deu-me uma mão cheia de notas: compra roupas para os garotos, uma blusa fina e um xaile novo para ti e dá qualquer coisa aos teus pais.
Para mim vou comprar um bom par de botas e um capote. E, como quem guarda dois, também guarda meia-dúzia, havemos de mercar mais quatro ou cinco ovelhas, com boas crias e que dêem bom leite.
E, quem sabe, talvez me abalance a comprar aí um lameirinho.
O Manel sempre foi zeloso, nunca virou a cara ao trabalho e era teso nos carregos. Como alguns, que o procuravam em casa, até lhe chamavam chefe, não estranhei que começasse a andar sempre com os bolsos bem aviados: tinha pagamentos a fazer e seria mais bem pago, pensava eu.
Vozes daqui, vozes dali; o Manel da Laje para aqui, o Manel da Laje para acolá; olhares furtivos e meias palavras da vizinhança; coisas que acabavam por não me dizer muito, mas me iam moendo, inquietando e tirando o sono.
Para mais, se alguma coisa tentasse falar com o meu homem, ou estava dos avessos, ou dava-me troco avantajado, como ele dizia, para não voltar a meter-me onde não era chamada.
Podia, ainda, sair porta fora e só voltar daí a dois ou três dias, com ar de gozo e mangação, negaceando e perguntando se já gostava de ter coisas boas, que nem todas poderiam ter.
Uma bela ocasião, entrou em casa a cair de bêbedo. Atirou-se, vestido, para cima da cama, e saltou-lhe do bolso das calças, um avultado maço de notas de dona Maria.
Estariam ali para cima de cem contos de réis – uma fortuna, como o senhor doutor juiz sabe -. Meti-lhe as notas no bolso e, no outro dia, quando acordou, meteu a mão no bolso, para apalpar o dinheiro, olhou-me e não disse nada.
Comeu uma boa malga de sopas de leite e, nos bolsos das calças, juntou um grande maço de notas, e disse-me:
Arranja uma caixa de lata, põe esse dinheiro lá dentro e esconde-a na corte do gado, à direita da manjedoura, enterrada, um bom palmo abaixo do estrume.
Não sei quando vou precisar desse dinheiro, para fazer pagamentos, mas se alguém, seja quem for, te perguntar alguma coisa, nunca ouviste nada, não sabes de nada e nunca viste o teu homem esconder nada, em parte nenhuma.
Percebeste tudo? Então estamos entendidos e, para algumas despesas, toma lá estes dez contos e até daqui a uns três ou quatro dias.
Ah! Está uma carta junto do dinheiro. Só podes abri-la, se me acontecer alguma coisa e então farás o que lá está escrito. Mas não mostres a carta a ninguém.
Disse-me que tinha de ir terminar um negócio com uns espanhóis; Havia coisas para resolver e era preciso tomar decisões e fazer trabalhos. Que, agora tinha mais responsabilidades, porque o dono do negócio estava muito mal.
Oh! Homem, metes-me medo, acrescentei eu, a gaguejar.
Fica descansado que farei tudo como me disseste. A encomenda ainda hoje vai ser posta lá na corte do gado. Quanto à carta, será como disseste, mas, se Deus quiser, não lhe hei-de mexer. Tu tratarás disso, quando quiseres, depois de voltar.
E saiu, porta fora, com a saca ao ombro, como de costume, mas reparei que ia a cantarolar.
Já do meio da rua, voltou-se e disse-me: Não sei se terei tempo de vir cá dormir esta noite, mas não te preocupes que, o mais tardar esta semana, fecharei todos os negócios pendentes e, depois tiro umas férias.
Abeirou-se de mim e disse-me, baixinho: isto por cá já deu o que tinha a dar e são já muitos cães a um osso. Talvez pensemos em mudar de ares; não sei se a França, ou a Alemanha, mas tenho pensado na Suíça. Vai-te habituando à ideia, pois é capaz de não passar deste Verão, que vamos dar o salto.
E, lá foi rua abaixo.
Foram as últimas palavras que lhe ouvi e a última vez que o vi, com vida.
Não sei mais nada, mas merecia melhor sorte; um homem na força da vida e com dois filhos pequenos para acabar de criar.
Depois, penso que o senhor doutor juiz estará mais informado que eu.
Uns dias depois, apareceram-me, lá em casa, os Guardas, para me trazerem ao hospital.
Estavam lá três corpos, muito desfeitos, quase irreconhecíveis e pensavam que um dos três devia ser o meu homem.
Não me foi difícil reconhecê-lo: tinha no dedo a aliança com que nos casámos, o sinal atrás da aba esquerda da orelha e o dedo mais pequeno do pé esquerdo cortado. Era, sem qualquer dúvida, o corpo do meu Manel.
Dos outros dois, não reconheci nada. Só os dentes de um deles me fizeram lembrar o tal de espanhol que vi, uma vez, lá ao pé da nossa casa. Mas, se calhar eram só suposições. E, como ninguém me fez perguntas, nada disse.
Diz-me agora o senhor doutor juiz que as investigações ainda estão no princípio, mas o meu marido fazia parte de um grupo de contrabandistas que virou quadrilha e se ocupava de roubos em grande escala.
E que foram, ao que parece, ladrões contra ladrões que acabaram mortos pelos homens dos dois grupos, que depois de fazerem o trabalho, desapareceram sem deixar rasto, ou quaisquer sinais.
Quanto a essas vidas nada sei. Nunca pensei que o meu Manel fosse homem de tão grandes apertos, mas… no melhor pano, cai a nódoa.
Se andava nisso, outros lucraram, pois o meu homem, pobre terá entrado e pobre terá acabado. Mas ele pagou o preço mais caro e os pobres meninos, que estão lá em casa, é que irão pagar, pelo que as más companhias terão feito ao pai.
Gostava de ficar com a aliança, o fio e a medalhita, que ainda tem ao pescoço.
A justiça terá seguido os seus trâmites e depois dos exames e das autópsias, nunca mais ninguém me disse nada. Nem novas, nem mandados, e já lá iam doze anos desde que, no hospital, reconheci o corpo do meu homem.
Com os garotos já homens, a vida ia correndo de feição. Um deles ia ser ordenado padre, num Seminário dos arredores de Braga e o mais novo, administrava as nossas terras e vivia bem.
Eu fui um dia, à corte do gado, buscar a caixa de lata e contei o dinheiro que lá estava: Trezentos e oitenta contos de réis, em notas portuguesas de diferentes valores e novecentas mil pesetas, em notas espanholas. Tirei a carta e fui para casa. Fechei tudo e li-a.
Estava, ao cimo, o nome de um banco espanhol. O balcão era em Ciudad Rodrigo, para lá da fronteira de Vilar Formoso, uns trinta quilómetros. Por baixo o número de uma conta, em nome de Manuel do Carmo Viegas, ou Maria da Encarnação dos Reis, residentes em Cabreiros, no concelho da Guarda – Portugal. A conta estava a prazo e podia ser movimentada por qualquer dos titulares, no prazo do vencimento, com os juros capitalizados.
Apanhei o comboio para Ciudad Rodrigo e fui ao banco.
Pedi a transferência do saldo total da conta para o Banco Nacional Ultramarino, na Guarda. O valor a transferir foi: quatro milhões e trezentos mil escudos, em moeda portuguesa.
Depois fui comprar uns pães e uns caramelos e apanhei de novo o comboio até à estação de Vila Fernando, rumo a casa.
Com esse dinheiro, mais o que estava na caixa, que fui tirando aos poucos, eduquei os filhos e fui proporcionando ao mais novo tudo o que precisava para a agricultura.
Mais tarde, reformulámos a casa toda, comprámos terras e, apesar de não faltarem os pretendentes, fiquei viúva o resto da vida.
Muitos anos mais tarde, já o meu David era padre, recebi um dia um aviso para ir ao Comando da polícia, da Guarda, tratar de assunto do meu interesse.
Muito secamente, perguntaram-me se era Maria da Encarnação dos Reis, viúva de Manuel do Carmo Viegas e leram-me o despacho em que se afirmava que das investigações sobre a morte do meu marido, nada se tinha apurado, pelo que o processo ia ser arquivado. Se nada tivesse a opor, assinava a comunicação e pronto.
E assim se fez.
Ainda hoje continuo a pensar que talvez o meu Manel tenha roubado; não cai do céu todo o dinheiro que me deixou e nunca me constou que lhe tivesse saído a sorte grande.
Mas se o fez, não se apropriou de nada que fosse de gente séria. Escusava de ter pago um preço tão alto. Mas, fico-me na minha, e, por mim, já está perdoado:
Ladrão que rouba ladrão…tem cem anos de perdão!