Em “história” anterior, falámos sobre o “bispo das Corgas”.
Porém, tratando-se de uma personagem tão rica e tão marcadamente influente das gentes daquelas terras da Beira, cuja mulher, em nada ajudava na boa disposição e permanente disponibilidade para tudo o que acontecesse lá nas Corgas e terras das redondezas, voltamos com novo episódio.
Ao contrário da boa disposição do senhor António de Brito – mais conhecido pelo “bispo das Corgas”- a mulher passava os dias a contar desgraças, ou, se não as tinha à mão, a presumir mortes, misérias, calamidades, doenças e outras coisas. Mas, todas elas, tristes. Por isso lhe ficou aquele nome de Ana do Tristão.
Na festa em honra da Nossa Senhora da Piedade, o Tó Esquinado, já bem bebido, teimava em levar o andor da santa, porque, dizia ele, tinha feito uma promessa e queria cumpri-la.
Os mordomos, por sua vez, não o queriam no grupo que levaria, em ombros, durante a procissão, o andor da santa.
Conversa e mais conversa e não havia meio de começar a procissão; não saía a santa, que todos ansiosamente esperavam ver na porta da capela.
Veio o senhor padre de Sandomil, juntou-se-lhe o de Vila Cova e, também, o sacristão de Valezim – compadre do Esquinado – e bem se esforçaram por convencer o Tó a não levar a santa, pois punha em perigo uma coisa sagrada.
Gerou-se um grande impasse, pois nem o problema se resolvia, nem a procissão saía. E o povo, não sabendo ao certo o que se passava, começava a impacientar-se, aparecendo já voluntários para dar uma ou duas cacheiradas no bêbedo e pô-lo a dormir.
Porém logo outro adiantava: Então se o homem tem uma promessa, porque não há-de cumpri-la?
Como sempre, sem se dar por ele, apareceu o senhor António de Brito e, dirigindo-se ao senhor padre de Sandomil, na condição de presidente da cerimónia religiosa, convidou-o a levar o Tó à sacristia e dispensá-lo da obrigação de cumprir a promessa.
Poucos momentos depois, o Esquinado saía, cabisbaixo e pronto a fazer todo o percurso da procissão na companhia do “bispo”, na maior ordem e respeito. Mas o Tó não deixou de mirar, de esguelha, o “Folgas” que tinha levado a vara do andor, onde ele queria ter ido.
Vindo lá de cima, dos lados de Gouveia, do lugar onde se diz que Viriato descansou entre duas batalhas, para tomar um fôlegosinho, o Américo era um homem de estatura avantajada, largo de ombros e quase com um palmo acima do comum dos homens das Corgas.
Era, lá na aldeia, conhecido pelo “Folgas”, não apenas por ter vindo lá de Folgosinho, mas também, porque, sempre que podia, descansava enquanto andava nos trabalhos; fazia folgas.
O Tó, podia continuar com o grão na asa, mas via, perfeitamente, que o “Folgas” desequilibrava o andor todo e a santa só não caía, porque estava aparafusada. Algumas flores que decoravam o andor, estavam mesmo em vias de se desprenderem. E ia fazendo figas para que a coisa desse para o torto e continuava à espera da recolha do andor à capela, pois, ou o “Folgas” se baixava muito, ou a santa havia de bater na porta.
E, assim foi: ao entrar na capela, o “Folgas” não se baixou o suficiente e a santa bateu na padieira da porta, partindo a ponta do nariz, que havia muito tempo ameaçava soltar-se. Os mordomos apanharam o bocado quebrado, puseram-no sobre o andor e deixaram-no junto da imagem, na capela.
Na altura ninguém avançou qualquer presságio, mas à boca pequena todos sugeriam que se tivesse sido o Tó a levar a santa, tudo teria corrido bem. Assim…
Quem não deu o caso por encerrado foi o “bispo”. Dirigiu-se, discretamente, a casa da senhora Mariana, zeladora da capela e pediu a chave, pois queria ver o que se podia fazer com o nariz da imagem da santa.
Recomendou que não fizesse uso, pois não queria que ninguém soubesse de nada, uma vez que nem ele sabia o que poderia ser feito. Logo lhe daria a chave, quando não precisasse dela.
Da sua oficina de tamancos, onde ganhava a vida, levou madeira, colas, limas, pregos, parafusos, lacas, tintas e uma caixa de ferramentas para trabalhar madeira.
Correu para a capela todos os dias de uma semana, conseguindo não ser visto, nem ouvido durante os trabalhos de restauro.
Finalmente, dado o trabalho por terminado, entregou as chaves à zeladora e, dias depois, não se falava de outra coisa na terra; tinha havido um milagre e a santa voltava a ter o nariz perfeito!
O padre foi vistoriar a imagem e, considerou o trabalho tão bem feito que não quis interferir nos ditos que corriam.
Porém ao ver que a coisa tomava dimensões desmesuradas e incontroladas; já havia visitas à capela, por peregrinos vindos de fora, para ver o nariz de Nª Sr.ª da Piedade, interpelou o senhor António de Brito sobre o que teria acontecido e, pedindo-lhe uma explicação, pois…
Talvez um “bispo” tenha mais explicações que um padre!
Nisto, o “bispo”, sem se desmanchar, acrescentou: Olhe, sr. Padre Francisco, uns dizem que veio aí um santeiro, de Braga, e compôs a nossa santinha. Eu, ainda não vi o trabalho, mas já me foi gabado.
Outros, talvez mais crentes, ou não, dizem que foi milagre; afiançam que moram lá para os lados da capela e não deram por ninguém a entrar ou a sair e garantem que não ouviram barulho de quaisquer trabalhos.
Eu, estou confuso e não tenho opinião. Que Deus me perdoe, mas não dei fé de ninguém de fora, cá na aldeia. E, que a santinha tenha feito um milagre, também me custa a engolir. Mas o caso resolveu-se! Se calhar é melhor deixar as coisas como estão e que cada um acredite naquilo que quiser.
Assim, como assim, é capaz de ter razão, senhor António de Brito. Daqui não virá mal ao mundo e, quem sabe se a Sr.ª da Piedade vem, a partir de agora, a ter mais importância e as devoções, que sempre mereceu, mas muitos sempre esqueceram.
Porém, deixe-me que lhe diga, aqui para nós, que ninguém nos ouve, e com a vénia que se deve falar a um “bispo”: Os meus parabéns, senhor António de Brito, está um trabalho perfeito! E, com um sorriso, foi-se para dentro da capela.