Até ao dia de hoje, todos os que caçoaram de mim ficaram a saber quem é cá o Zé do Malhadal.
Todos, menos o Ti'Tonho do Sobraínho dos Gaios; com esse empatei, nas duas vezes que lutámos.
Ele é rápido de pau; penso mesmo que não há quem o apanhe desprevenido; eu não dou os meus braços a ninguém e pescoço que eu aperte, fica a doer por muito tempo. De golpes baixos também não deixo os créditos por mãos alheias e, à falsa fé, já tenho deixado mal, muitos mais valentes que eu. É que, senhor doutor juiz, à traição, um gato dá cabo de um cão.
A sala estava bem composta de gente da terra e era muito maior que o normal o número de gente que fazia da pobreza meio de vida e andava de terra em terra, esmolando e pedindo, por amor de Deus e pelas intenções de cada um, uma côdea de pão, uma peça de fruta, ou algum conduto para enganar a fome.
Naqueles tempos, havia muita gente que caía na indigência e se dedicava à mendicidade.
Havia, nesse meio, figuras típicas que, passando regularmente pelas aldeias, eram conhecidas, toleradas e assimiladas pelo povo, com quem bebiam nas tabernas, trocavam notícias sobre terras visitadas e compunham o naipe populacional das populações rurais.
Os casos começavam quando os juízes, para averiguarem sobre uma queixa, ou para identificarem algum réu, não dispunham de quaisquer documentos, nem historial, para além das informações prestadas pelos próprios.
A idade, nome, naturalidade e outros dados eram fornecidos, verbalmente pelos inquiridos e, não raro, um réu que dois anos atrás se chamava Francisco da Costa, declarou, na mesma sala de tribunal, ser António Mendes.
A maior parte não tinha documentos de identificação e não estava, minimamente interessado em dizer quem era, de facto, pois, por norma fazia vida o mais afastado possível da sua terra e escondido de ligações às origens.
Eles, pelo menos a grande maioria, sabiam bem quem eram, mas duvidamos que poucos ficassem a saber quem eles eram de facto. A maior parte assumia um corte radical com família, amigos e conhecidos.
Porém, naquela vez e dado um conjunto de circunstâncias, o juiz tomou a peito os factos de que o réu ia acusado e, antes de mais, quis saber, efectivamente, quem tinha na sua frente.
Havia qualquer coisa que indiciava que a identidade do homem presente a tribunal, era completamente diversa da de um plausível José de Matos Eugénio, de cinquenta e sete anos de idade, filho de pais incógnitos, natural de Tinalhas, concelho de Castelo Branco, solteiro e sem residência fixa.
Conhecido por Zé do Malhadal, fazia, ao tempo, voltas pelos concelhos de Mação e Sardoal, em substituição das terras de Proença, onde já fora condenado, em tribunal, por pequeno furto e desobediência às autoridades.
Havia doze anos, num tribunal em que participou o juiz actual, eram outros os dados de uma personagem que, ou era irmão gémeo, ou sósia, do réu.
A suspeição do juiz foi mandada verificar e com os dados fotográficos registados durante a prisão anterior, foi confirmada a falsa identidade agora declarada ao tribunal. E, nestes casos, era preciso agir com muita habilidade, pois o que menos importava a muitos pedintes era irem para a prisão.
Havia que pedir os dados da identificação feita na altura da prisão anterior e confrontar o réu com esses dados. Tentar, inclusivamente, qualquer testemunho de outro pedinte para tentar obrigar o réu a reconhecer que não estava a dizer a verdade.
O juiz pediu fotografias e elementos de identificação ao tribunal de Proença e à cadeia de Castelo Branco e, à queima-roupa, perguntou ao réu se conhecia aquela pessoa, cujo retrato lhe apresentava.
A resposta foi conclusiva:
Senhor doutor, disse o réu, pregando os olhos no chão, eu também não tenho o nome que acabou por ficar registado na prisão e no tribunal.
Aqui está a minha Cédula. Manuel Antunes do Rosário, nascido a 5 de Fevereiro de 1927, na freguesia de Caria, Concelho de Belmonte, filho de Heitor do Rosário e de Maria Teresa Antunes, eram os dados constantes de uma velha caderneta, de capa preta, bastante amarrotada, com a indicação de Cédula Pessoal, ao alto da primeira página, que foi tirada de dentro do forro de um velho casaco e entregue ao juiz.
Confrontado com esses factos, o juiz pensou que era fundamental confirmar os dados agora apresentados, pois a Cédula não tinha foto, e podia, inclusivamente não ser do próprio.
Mandou que o réu recolhesse à cadeia até que pudesse ser averiguado se a Cédula era autêntica e se alguém poderia reconhecer o réu. Ficava marcada nova audiência para trinta dias depois.
Porém, os factos despoletaram um conjunto de circunstâncias que nem o próprio juiz teria admitido: a naturalidade do dr. José Bentes de Figueiredo, juiz de direito, era, precisamente Caria e a sua data de nascimento, o ano de 1928.
Como a cara do réu não lhe dizia nada, pensou em ir à sua terra e tirar a limpo não apenas a autenticidade da Cédula, como levar algumas fotos do réu e tentar obter um reconhecimento no local, por pessoas que bem conhecia de longa data.
Depois de algumas hesitações, ficou com a confirmação de que aquela Cédula pertencia a alguém da terra, mas ninguém pôde dar sinais desse alguém ou referenciar a sua presença há muitos anos.
Desde referências a morte, a emigração para as Áfricas, ou notícias de condenações, ouviu de tudo um pouco. Mas uma coisa era segura, o Manuel Antunes do Rosário, era filhote de Caria, ali viveu até à ida para o serviço militar e depois disso, portanto nos últimos quinze, ou vinte anos, ninguém sabia nada dele.
Os parentes mais próximos, há muito o tinham dado como morto e inclusivamente a mãe dele, pôs luto pelo filho quando lhe anunciaram a morte, durante uma rixa, nas minas de ouro, junto de Pedras Salgadas, lá para Trás-os-Montes.
Nunca teve irmãos e os familiares afastados não se mostraram, minimamente interessados em saber dele.
Reaberta a audiência o juiz voltou a perguntar o nome, idade, filiação e naturalidade do réu, que disse tudo como constava da Cédula Pessoal.
Confirmados os factos de que ia acusado, descritos pelas autoridades que o prenderam, em flagrante delito, junto do cadáver de um outro pedinte que apresentava a cabeça aberta e sinais evidentes de fortes pancadas, foi o réu condenado a dezasseis anos de prisão.
Antes de ser levado pelo carcereiro para a cela da prisão, o condenado pediu, olhos nos olhos, ao juiz que lhe desse licença para ficar sozinho com ele e, com os guardas por perto, mas a sós com o juiz, o Manuel Antunes do Rosário disse:
Eu andava lá na escola de Caria e chegava muitas vezes com os olhos todos negros pelos mimos que o meu padrasto me fazia. Vocês todos me chamavam o "caldeireiro", por ser esse o trabalho do meu "tio". Quando saía da escola ia pedir e se chegava a casa com menos que ele queria, levava tareias que nem a um animal se dão.Penso que nunca chegámos a andar na mesma classe; o senhor era menino de gente rica e eu o caldeireiro.
Mas lembro-me bem de o ver chegar, lá da Universidade de Coimbra, onde andava a estudar para advogado.
Nessa altura o meu padrasto já o tinha levado o diabo e eu trabalhava para arranjar qualquer coisa para a minha velhota.
Fui assentar praça a Castelo Branco e, um dia, com mais dois, assaltámos uma casa nas Tinalhas e fomos condenados a oito anos na prisão de Penamacor.
Fugi passados poucos meses e andei por todo o lado, trabalhando no duro, desde embarcado na marinha mercante, até à pesca do bacalhau.
Um dia, numa zaragata, em Lisboa, matei um outro, que me acompanhava em assaltos e consegui fugir, disfarçando-me de pedinte.
E cá tenho andado nesta vida, à espera que a morte me leve, ou alguém se encarregue de me despachar desta para melhor.
Nunca tive família nem a mais pequena intimidade com ninguém do meio. Não são mentirosos os que dizem não me conhecer.
Nunca ninguém me viu sem este ar e com o cabelo cortado ou a barba feita; não estava interessado em que ninguém me conhecesse.
Mas, quando vi que o meu juiz ia ser o menino Zezinho, do senhor Paulo Figueiredo, tive uma grande luta comigo mesmo e acabei por lhe mostrar uma coisa que andou no forro dos meus últimos sete casacos.
Mas resolvi não lhe dizer mais nada, no entanto quero acrescentar que quando souber a prisão para onde vou e depois de estar apresentável e com a higiene feita, gostaria de poder dar-lhe um grande abraço e agradecer-lhe.
O senhor acaba sendo a pessoa que mais me ajudou na vida: finalmente vou poder dormir descansado, chamarem-me pelo meu nome e pensar um pouco na minha vida, que até hoje tem ido sempre à minha frente, não parando nunca para que eu pudesse apanhá-la. Que Deus o abençoe.
O preso foi enviado para a Penitenciária, de Lisboa, e o dr. juiz acabou colocado no palácio da justiça, paredes meias com o estabelecimento penal.
Durante muito tempo o preso não recebeu visitas de ninguém, mas todas as semanas recebia tabaco e uma caixa de fruta deixada por um senhor, ou por um motorista.
O juiz acompanhou sempre o percurso do preso e inteirou-se do seu comportamento exemplar.
Passados oito anos, o preso foi visitado por um advogado que lhe disse ter instruções para fazer tudo o que pudesse para pedir a liberdade condicional e a saída do recluso. Isto, se ele estivesse de acordo.
O preso 224 pediu ao advogado que lhe dissesse quem, era o seu benfeitor, pois queria agradecer-lhe e, agora, com quase sessenta anos, nada mais queria que continuar ali, em paz e sossego, até ao fim dos seus dias.
Dois dias depois apareceu o juiz, em pessoa, acompanhado do advogado e com toda a papelada pronta para pedir a liberdade. Acrescentou que morava nos arredores de Lisboa e a vivenda tinha um jardim e uma pequena quintinha anexa que andavam muito mal arranjadas.
Se o Manuel quisesse teria cama, mesa e roupa lavada e algum dinheiro para gastos. Em troca ia tratar as flores e as hortaliças que, certamente lhe proporcionariam tanto sossego como o que tinha na cadeia e uma coisa que pela primeira vez iria saborear: a liberdade.
Ainda viveu doze anos, mas quando viu um dia partir o amigo senhor doutor, não ficou mais de oito dias, porque o coração sucumbiu.
Teve, finalmente, PAZ.