domingo, 25 de setembro de 2011

O pobre do Malhadal

Até ao dia de hoje, todos os que caçoaram de mim ficaram a saber quem é cá o Zé do Malhadal.

Todos, menos o Ti'Tonho do Sobraínho dos Gaios; com esse empatei, nas duas vezes que lutámos.

Ele é rápido de pau; penso mesmo que não há quem o apanhe desprevenido; eu não dou os meus braços a ninguém e pescoço que eu aperte, fica a doer por muito tempo. De golpes baixos também não deixo os créditos por mãos alheias e, à falsa fé, já tenho deixado mal, muitos mais valentes que eu. É que, senhor doutor juiz, à traição, um gato dá cabo de um cão.

A sala estava bem composta de gente da terra e era muito maior que o normal o número de gente que fazia da pobreza meio de vida e andava de terra em terra, esmolando e pedindo, por amor de Deus e pelas intenções de cada um, uma côdea de pão, uma peça de fruta, ou algum conduto para enganar a fome.

Naqueles tempos, havia muita gente que caía na indigência e se dedicava à mendicidade.

Havia, nesse meio, figuras típicas que, passando regularmente pelas aldeias, eram conhecidas, toleradas e assimiladas pelo povo, com quem bebiam nas tabernas, trocavam notícias sobre terras visitadas e compunham o naipe populacional das populações rurais.

Os casos começavam quando os juízes, para averiguarem sobre uma queixa, ou para identificarem algum réu, não dispunham de quaisquer documentos, nem historial, para além das informações prestadas pelos próprios.

A idade, nome, naturalidade e outros dados eram fornecidos, verbalmente pelos inquiridos e, não raro, um réu que dois anos atrás se chamava Francisco da Costa, declarou, na mesma sala de tribunal, ser António Mendes.

A maior parte não tinha documentos de identificação e não estava, minimamente interessado em dizer quem era, de facto, pois, por norma fazia vida o mais afastado possível da sua terra e escondido de ligações às origens.

Eles, pelo menos a grande maioria, sabiam bem quem eram, mas duvidamos que poucos ficassem a saber quem eles eram de facto. A maior parte assumia um corte radical com família, amigos e conhecidos.

Porém, naquela vez e dado um conjunto de circunstâncias, o juiz tomou a peito os factos de que o réu ia acusado e, antes de mais, quis saber, efectivamente, quem tinha na sua frente.

Havia qualquer coisa que indiciava que a identidade do homem presente a tribunal, era completamente diversa da de um plausível José de Matos Eugénio, de cinquenta e sete anos de idade, filho de pais incógnitos, natural de Tinalhas, concelho de Castelo Branco, solteiro e sem residência fixa.

Conhecido por Zé do Malhadal, fazia, ao tempo, voltas pelos concelhos de Mação e Sardoal, em substituição das terras de Proença, onde já fora condenado, em tribunal, por pequeno furto e desobediência às autoridades.

Havia doze anos, num tribunal em que participou o juiz actual, eram outros os dados de uma personagem que, ou era irmão gémeo, ou sósia, do réu.

A suspeição do juiz foi mandada verificar e com os dados fotográficos registados durante a prisão anterior, foi confirmada a falsa identidade agora declarada ao tribunal. E, nestes casos, era preciso agir com muita habilidade, pois o que menos importava a muitos pedintes era irem para a prisão.

Havia que pedir os dados da identificação feita na altura da prisão anterior e confrontar o réu com esses dados. Tentar, inclusivamente, qualquer testemunho de outro pedinte para tentar obrigar o réu a reconhecer que não estava a dizer a verdade.

O juiz pediu fotografias e elementos de identificação ao tribunal de Proença e à cadeia de Castelo Branco e, à queima-roupa, perguntou ao réu se conhecia aquela pessoa, cujo retrato lhe apresentava.

A resposta foi conclusiva:

Senhor doutor, disse o réu, pregando os olhos no chão, eu também não tenho o nome que acabou por ficar registado na prisão e no tribunal.

Aqui está a minha Cédula. Manuel Antunes do Rosário, nascido a 5 de Fevereiro de 1927, na freguesia de Caria, Concelho de Belmonte, filho de Heitor do Rosário e de Maria Teresa Antunes, eram os dados constantes de uma velha caderneta, de capa preta, bastante amarrotada, com a indicação de Cédula Pessoal, ao alto da primeira página, que foi tirada de dentro do forro de um velho casaco e entregue ao juiz.

Confrontado com esses factos, o juiz pensou que era fundamental confirmar os dados agora apresentados, pois a Cédula não tinha foto, e podia, inclusivamente não ser do próprio.

Mandou que o réu recolhesse à cadeia até que pudesse ser averiguado se a Cédula era autêntica e se alguém poderia reconhecer o réu. Ficava marcada nova audiência para trinta dias depois.

Porém, os factos despoletaram um conjunto de circunstâncias que nem o próprio juiz teria admitido: a naturalidade do dr. José Bentes de Figueiredo, juiz de direito, era, precisamente Caria e a sua data de nascimento, o ano de 1928.

Como a cara do réu não lhe dizia nada, pensou em ir à sua terra e tirar a limpo não apenas a autenticidade da Cédula, como levar algumas fotos do réu e tentar obter um reconhecimento no local, por pessoas que bem conhecia de longa data.

Depois de algumas hesitações, ficou com a confirmação de que aquela Cédula pertencia a alguém da terra, mas ninguém pôde dar sinais desse alguém ou referenciar a sua presença há muitos anos.

Desde referências a morte, a emigração para as Áfricas, ou notícias de condenações, ouviu de tudo um pouco. Mas uma coisa era segura, o Manuel Antunes do Rosário, era filhote de Caria, ali viveu até à ida para o serviço militar e depois disso, portanto nos últimos quinze, ou vinte anos, ninguém sabia nada dele.

Os parentes mais próximos, há muito o tinham dado como morto e inclusivamente a mãe dele, pôs luto pelo filho quando lhe anunciaram a morte, durante uma rixa, nas minas de ouro, junto de Pedras Salgadas, lá para Trás-os-Montes.

Nunca teve irmãos e os familiares afastados não se mostraram, minimamente interessados em saber dele.

Reaberta a audiência o juiz voltou a perguntar o nome, idade, filiação e naturalidade do réu, que disse tudo como constava da Cédula Pessoal.

Confirmados os factos de que ia acusado, descritos pelas autoridades que o prenderam, em flagrante delito, junto do cadáver de um outro pedinte que apresentava a cabeça aberta e sinais evidentes de fortes pancadas, foi o réu condenado a dezasseis anos de prisão.

Antes de ser levado pelo carcereiro para a cela da prisão, o condenado pediu, olhos nos olhos, ao juiz que lhe desse licença para ficar sozinho com ele e, com os guardas por perto, mas a sós com o juiz, o Manuel Antunes do Rosário disse:

Eu andava lá na escola de Caria e chegava muitas vezes com os olhos todos negros pelos mimos que o meu padrasto me fazia. Vocês todos me chamavam o "caldeireiro", por ser esse o trabalho do meu "tio". Quando saía da escola ia pedir e se chegava a casa com menos que ele queria, levava tareias que nem a um animal se dão.Penso que nunca chegámos a andar na mesma classe; o senhor era menino de gente rica e eu o caldeireiro.

Mas lembro-me bem de o ver chegar, lá da Universidade de Coimbra, onde andava a estudar para advogado.

Nessa altura o meu padrasto já o tinha levado o diabo e eu trabalhava para arranjar qualquer coisa para a minha velhota.

Fui assentar praça a Castelo Branco e, um dia, com mais dois, assaltámos uma casa nas Tinalhas e fomos condenados a oito anos na prisão de Penamacor.

Fugi passados poucos meses e andei por todo o lado, trabalhando no duro, desde embarcado na marinha mercante, até à pesca do bacalhau.

Um dia, numa zaragata, em Lisboa, matei um outro, que me acompanhava em assaltos e consegui fugir, disfarçando-me de pedinte.

E cá tenho andado nesta vida, à espera que a morte me leve, ou alguém se encarregue de me despachar desta para melhor.

Nunca tive família nem a mais pequena intimidade com ninguém do meio. Não são mentirosos os que dizem não me conhecer.

Nunca ninguém me viu sem este ar e com o cabelo cortado ou a barba feita; não estava interessado em que ninguém me conhecesse.

Mas, quando vi que o meu juiz ia ser o menino Zezinho, do senhor Paulo Figueiredo, tive uma grande luta comigo mesmo e acabei por lhe mostrar uma coisa que andou no forro dos meus últimos sete casacos.

Mas resolvi não lhe dizer mais nada, no entanto quero acrescentar que quando souber a prisão para onde vou e depois de estar apresentável e com a higiene feita, gostaria de poder dar-lhe um grande abraço e agradecer-lhe.

O senhor acaba sendo a pessoa que mais me ajudou na vida: finalmente vou poder dormir descansado, chamarem-me pelo meu nome e pensar um pouco na minha vida, que até hoje tem ido sempre à minha frente, não parando nunca para que eu pudesse apanhá-la. Que Deus o abençoe.

O preso foi enviado para a Penitenciária, de Lisboa, e o dr. juiz acabou colocado no palácio da justiça, paredes meias com o estabelecimento penal.

Durante muito tempo o preso não recebeu visitas de ninguém, mas todas as semanas recebia tabaco e uma caixa de fruta deixada por um senhor, ou por um motorista.

O juiz acompanhou sempre o percurso do preso e inteirou-se do seu comportamento exemplar.

Passados oito anos, o preso foi visitado por um advogado que lhe disse ter instruções para fazer tudo o que pudesse para pedir a liberdade condicional e a saída do recluso. Isto, se ele estivesse de acordo.

O preso 224 pediu ao advogado que lhe dissesse quem, era o seu benfeitor, pois queria agradecer-lhe e, agora, com quase sessenta anos, nada mais queria que continuar ali, em paz e sossego, até ao fim dos seus dias.

Dois dias depois apareceu o juiz, em pessoa, acompanhado do advogado e com toda a papelada pronta para pedir a liberdade. Acrescentou que morava nos arredores de Lisboa e a vivenda tinha um jardim e uma pequena quintinha anexa que andavam muito mal arranjadas.

Se o Manuel quisesse teria cama, mesa e roupa lavada e algum dinheiro para gastos. Em troca ia tratar as flores e as hortaliças que, certamente lhe proporcionariam tanto sossego como o que tinha na cadeia e uma coisa que pela primeira vez iria saborear: a liberdade.

Ainda viveu doze anos, mas quando viu um dia partir o amigo senhor doutor, não ficou mais de oito dias, porque o coração sucumbiu.

Teve, finalmente, PAZ.

domingo, 18 de setembro de 2011

Ladrão que rouba ladrão...


Olhe, senhor doutor juiz, quando vi o meu homem pular a cerca dos porcos, lá junto às canas de milho, e coser-se com os barrocos que dão para a da Ti’Teresa, má sombra me cobriu.

Com perdão de vocelência, alaguei-me de suores frios...

Terei pensado que nunca o meu Manel entrara, em nossa casa, daquela maneira e, se precisava ocultar-se assim, é porque haveria, pela certa, mouro na costa. 

Ou andava à coca de qualquer coisa, ou qualquer coisa andava à coca dele. 

Uma restolhada daquelas, aquela hora, não era normal; para mais que ainda estava longe a hora das pessoas se recolherem.

O meu Manel tinha saído, pouco depois do pôr-do-sol, com uma saca vazia ao ombro, e, sem água vai, lá foi na direcção da nossa da Quelha. 

Vai atrás de alguma lebre, pois as malvadas não deixam nada verdejar naquela santa horta. Logo vem e espero que mais bem-disposto que o que saiu, terei eu pensado, com os meus botões.

Mas o meu homem saía muito, ultimamente. E, ou não chegava a vir à cama, ou aparecia com o sol já alto. 

Até cheguei a desconfiar de qualquer servicito que tivesse lá para a raia – andava assanhado o negócio do volfrâmio -. 

Alguns carregos, ou coisas que o valham, pois andava muito ligado a um espanhol, que já tinha vindo à nossa terra e tinha fama de muito má rês.

E, como o meu Manel chegava a casa tão quebrado, tão sonolento, às vezes com bebida a mais, até cheguei a pensar que andasse, por ali, negócio de saias.

Falava-se, à boca pequena, que havia coisas lá por casa da viúva do moinho; Até me chegou aos ouvidos que o meu Manel também por lá se perdia, às vezes. 

Mas, como sempre pensei que só procura carne velha e magra, quem não tem, em casa, limpinha e boa, não me apoquentei com os mexericos.

Porém, os segredinhos à minha chegada, os silêncios quando eu aparecia e os meios olhares, começaram a fazer-me macaquinhos no sótão. 

O Manel não fazia muito gasto, ao que tinha em casa, mas como andava assoberbado com saídas e entradas, a qualquer hora do dia ou da noite, fiquei tranquila.

Trazia dinheiro para casa, pois, segundo me dizia, pagava-se bem, pelos serviços que fazia. 

Tanto quanto julgo saber, era um dos braços direitos do dono do negócio. Ele e mais outro, dos lados da raia, eram os responsáveis.

Pelo Natal, deu-me uma mão cheia de notas: compra roupas para os garotos, uma blusa fina e um xaile novo para ti e dá qualquer coisa aos teus pais. 

Para mim vou comprar um bom par de botas e um capote. E, como quem guarda dois, também guarda meia-dúzia, havemos de mercar mais quatro ou cinco ovelhas, com boas crias e que dêem bom leite. 
E, quem sabe, talvez me abalance a comprar aí um lameirinho.

O Manel sempre foi zeloso, nunca virou a cara ao trabalho e era teso nos carregos. Como alguns, que o procuravam em casa, até lhe chamavam chefe, não estranhei que começasse a andar sempre com os bolsos bem aviados: tinha pagamentos a fazer e seria mais bem pago, pensava eu.

Vozes daqui, vozes dali; o Manel da Laje para aqui, o Manel da Laje para acolá; olhares furtivos e meias palavras da vizinhança; coisas que acabavam por não me dizer muito, mas me iam moendo, inquietando e tirando o sono.

Para mais, se alguma coisa tentasse falar com o meu homem, ou estava dos avessos, ou dava-me troco avantajado, como ele dizia, para não voltar a meter-me onde não era chamada. 

Podia, ainda, sair porta fora e só voltar daí a dois ou três dias, com ar de gozo e mangação, negaceando e perguntando se já gostava de ter coisas boas, que nem todas poderiam ter.

Uma bela ocasião, entrou em casa a cair de bêbedo. Atirou-se, vestido, para cima da cama, e saltou-lhe do bolso das calças, um avultado maço de notas de dona Maria. 

Estariam ali para cima de cem contos de réis – uma fortuna, como o senhor doutor juiz sabe -. Meti-lhe as notas no bolso e, no outro dia, quando acordou, meteu a mão no bolso, para apalpar o dinheiro, olhou-me e não disse nada. 

Comeu uma boa malga de sopas de leite e, nos bolsos das calças, juntou um grande maço de notas, e disse-me:

Arranja uma caixa de lata, põe esse dinheiro lá dentro e esconde-a na corte do gado, à direita da manjedoura, enterrada, um bom palmo abaixo do estrume. 

Não sei quando vou precisar desse dinheiro, para fazer pagamentos, mas se alguém, seja quem for, te perguntar alguma coisa, nunca ouviste nada, não sabes de nada e nunca viste o teu homem esconder nada, em parte nenhuma. 

Percebeste tudo? Então estamos entendidos e, para algumas despesas, toma lá estes dez contos e até daqui a uns três ou quatro dias. 

Ah! Está uma carta junto do dinheiro. Só podes abri-la, se me acontecer alguma coisa e então farás o que lá está escrito. Mas não mostres a carta a ninguém.

Disse-me que tinha de ir terminar um negócio com uns espanhóis; Havia coisas para resolver e era preciso tomar decisões e fazer trabalhos. Que, agora tinha mais responsabilidades, porque o dono do negócio estava muito mal.

Oh! Homem, metes-me medo, acrescentei eu, a gaguejar. 

Fica descansado que farei tudo como me disseste. A encomenda ainda hoje vai ser posta lá na corte do gado. Quanto à carta, será como disseste, mas, se Deus quiser, não lhe hei-de mexer. Tu tratarás disso, quando quiseres, depois de voltar.

E saiu, porta fora, com a saca ao ombro, como de costume, mas reparei que ia a cantarolar. 

Já do meio da rua, voltou-se e disse-me: Não sei se terei tempo de vir cá dormir esta noite, mas não te preocupes que, o mais tardar esta semana, fecharei todos os negócios pendentes e, depois tiro umas férias.

Abeirou-se de mim e disse-me, baixinho: isto por cá já deu o que tinha a dar e são já muitos cães a um osso. Talvez pensemos em mudar de ares; não sei se a França, ou a Alemanha, mas tenho pensado na Suíça. Vai-te habituando à ideia, pois é capaz de não passar deste Verão, que vamos dar o salto. 

E, lá foi rua abaixo. 

Foram as últimas palavras que lhe ouvi e a última vez que o vi, com vida. 

Não sei mais nada, mas merecia melhor sorte; um homem na força da vida e com dois filhos pequenos para acabar de criar.

Depois, penso que o senhor doutor juiz estará mais informado que eu. 

Uns dias depois, apareceram-me, lá em casa, os Guardas, para me trazerem ao hospital.

Estavam lá três corpos, muito desfeitos, quase irreconhecíveis e pensavam que um dos três devia ser o meu homem.

Não me foi difícil reconhecê-lo: tinha no dedo a aliança com que nos casámos, o sinal atrás da aba esquerda da orelha e o dedo mais pequeno do pé esquerdo cortado. Era, sem qualquer dúvida, o corpo do meu Manel.

Dos outros dois, não reconheci nada. Só os dentes de um deles me fizeram lembrar o tal de espanhol que vi, uma vez, lá ao pé da nossa casa. Mas, se calhar eram só suposições. E, como ninguém me fez perguntas, nada disse.

Diz-me agora o senhor doutor juiz que as investigações ainda estão no princípio, mas o meu marido fazia parte de um grupo de contrabandistas que virou quadrilha e se ocupava de roubos em grande escala. 

E que foram, ao que parece, ladrões contra ladrões que acabaram mortos pelos homens dos dois grupos, que depois de fazerem o trabalho, desapareceram sem deixar rasto, ou quaisquer sinais.

Quanto a essas vidas nada sei. Nunca pensei que o meu Manel fosse homem de tão grandes apertos, mas… no melhor pano, cai a nódoa. 

Se andava nisso, outros lucraram, pois o meu homem, pobre terá entrado e pobre terá acabado. Mas ele pagou o preço mais caro e os pobres meninos, que estão lá em casa, é que irão pagar, pelo que as más companhias terão feito ao pai. 

Gostava de ficar com a aliança, o fio e a medalhita, que ainda tem ao pescoço.

A justiça terá seguido os seus trâmites e depois dos exames e das autópsias, nunca mais ninguém me disse nada. Nem novas, nem mandados, e já lá iam doze anos desde que, no hospital, reconheci o corpo do meu homem. 

Com os garotos já homens, a vida ia correndo de feição. Um deles ia ser ordenado padre, num Seminário dos arredores de Braga e o mais novo, administrava as nossas terras e vivia bem. 

Eu fui um dia, à corte do gado, buscar a caixa de lata e contei o dinheiro que lá estava: Trezentos e oitenta contos de réis, em notas portuguesas de diferentes valores e novecentas mil pesetas, em notas espanholas. Tirei a carta e fui para casa. Fechei tudo e li-a.

Estava, ao cimo, o nome de um banco espanhol. O balcão era em Ciudad Rodrigo, para lá da fronteira de Vilar Formoso, uns trinta quilómetros. Por baixo o número de uma conta, em nome de Manuel do Carmo Viegas, ou Maria da Encarnação dos Reis, residentes em Cabreiros, no concelho da Guarda – Portugal. A conta estava a prazo e podia ser movimentada por qualquer dos titulares, no prazo do vencimento, com os juros capitalizados.

Apanhei o comboio para Ciudad Rodrigo e fui ao banco. 

Pedi a transferência do saldo total da conta para o Banco Nacional Ultramarino, na Guarda. O valor a transferir foi: quatro milhões e trezentos mil escudos, em moeda portuguesa. 

Depois fui comprar uns pães e uns caramelos e apanhei de novo o comboio até à estação de Vila Fernando, rumo a casa.

Com esse dinheiro, mais o que estava na caixa, que fui tirando aos poucos, eduquei os filhos e fui proporcionando ao mais novo tudo o que precisava para a agricultura. 

Mais tarde, reformulámos a casa toda, comprámos terras e, apesar de não faltarem os pretendentes, fiquei viúva o resto da vida.

Muitos anos mais tarde, já o meu David era padre, recebi um dia um aviso para ir ao Comando da polícia, da Guarda, tratar de assunto do meu interesse.

Muito secamente, perguntaram-me se era Maria da Encarnação dos Reis, viúva de Manuel do Carmo Viegas e leram-me o despacho em que se afirmava que das investigações sobre a morte do meu marido, nada se tinha apurado, pelo que o processo ia ser arquivado. Se nada tivesse a opor, assinava a comunicação e pronto. 

E assim se fez.

Ainda hoje continuo a pensar que talvez o meu Manel tenha roubado; não cai do céu todo o dinheiro que me deixou e nunca me constou que lhe tivesse saído a sorte grande.

Mas se o fez, não se apropriou de nada que fosse de gente séria. Escusava de ter pago um preço tão alto. Mas, fico-me na minha, e, por mim, já está perdoado:

Ladrão que rouba ladrão…tem cem anos de perdão!

domingo, 11 de setembro de 2011

Terras do Vale

O diferendo das terras do Vale de Baixo arrastava-se, pelo menos, ao que podiam saber os vivos, desde os tempos em que tudo aquilo era um souto de castanheiros, que começava às últimas casas da Aldeia e só acabava já nos confins do Chão de Burro, ainda no tempo de, pelo menos, três avôs do meu avô, que Deus haja. Nunca se resolveu e não sei se alguma vez se resolverá.

As castanhas daquela correnteza, de que veio a nascer, muitos anos mais tarde, a “Arrompida”, desde os baixos da ladeira do Pichelim até à Portela dos Carreiros, eram as melhores das redondezas e valiam mais uns vinténs cada alqueire. O gado perseguia-as e os amigos do alheio também.

Contam os mais velhos, dizia-me o meu avô, já na casa dos setenta, naqueles meados do século passado, que um tal “Rasga”, que era filhote da Aboboreira, ali veio, um dia – há dias bons e dias maus…- comprar umas terras, com o fim de nelas fazer um moinho de vento. 

A portela do Casalinho era, de facto, um local onde já noutros tempos tinha existido um moinho, como ainda se podia ver, pelos restos de parede, em redondo.

Era homem de poucos escrúpulos e, dando asas ao mau feitio, terá mandado, desta para melhor, um par de opositores no negócio, acabando por ficar com mais de metade daquelas terras. Umas compradas, outras roubadas – não se ensaiava nada em mudar um marco, umas chancas para dentro da do vizinho.

Numa dessas estremas começava o nosso Vale de Baixo. Ia desde o ribeirito que ainda por ali corre e estendia-se ao longo dele, desde a junta com o ribeiro que ia do Pichelim até ao ribeiro que vinha da Horta Velha e do Pardieiro. 

Ocupava toda aquela chapada, pelos lados do meio-dia e ainda passava para norte do ribeiro, na maior parte do seu percurso. Diga-se que no Inverno o ribeiro mete muita água, mas no Verão só uns pocecos aqui e além, principalmente onde fizemos as quatro represas que além de guardarem alguma água, serviam para fazer alagar as nossas terras mais baixas que gozavam com o chorume que aquelas águas arrastavam.

Nas primeiras fiadas, os castanheiros das terras mais baixas, eram bem mais frondosos, e mais altos, levando uns bons metros acima dos da encosta.

A pastagem dos nossos lameiros era bem mais abundante e saborosa para os gados que as pastagens dos lameiros do “Rasga”, onde não havia represa.

O “Rasga” queixava-se que as águas que escorriam dos nossos lameiros iam para as terras dele depois de terem deixado o proveito nas nossas. 

Nós nada tínhamos que dizer, ou fazer; estava por baixo e as águas não correriam para cima para voltarem ao ribeiro. O mais que poderia fazer era desviar as águas das suas terras para as mandar para o ribeiro lá no fundo das suas terras.

As nossas represas entestavam nos dois lados com o que era nosso e por isso ninguém tinha nada com o que fazíamos, ou deixávamos de fazer.

Vai daí, o “Rasga”, pela noite dentro, principalmente quando chovia mais e o escuro carregava mais, munia-se dum enxadão e cavava as represas, como se aquilo fosse dele. 

Segundo as palavras do meu avô, o seu pai era pacífico e teria chegado às falas com o vizinho, por duas ou três vezes. Desta vez não terá gostado da resposta do traste que se limitou a dizer que o ribeiro era público e ninguém tinha nada com o que lhe apetecesse fazer, dentro dele. 

Só que o meu pai e os seus quatro irmãos é que não gostaram do que o pai lhes disse e tomaram a seu cargo a guarda de terras e ribeiro, ficando de atalaia, três a três, munidos de bons cacetes, para o que desse e viesse.

Ora o meu avô, que se chamava Manuel Lourinho, tinha vindo das Hortas, lá para onde hoje é Alferrarede e, trabalhando lá por casa do dono daquelas terras, acabou por casar-se com a filha única do dono daquele souto – um verdadeiro casal ali mesmo à entrada da aldeia -. 

E aqui começou a questão que opunha o “Rasga” ao meu avô. É que a minha avó recusou o pedido de namoro do “Rasga”, dado o seu feitio, quezilento e desordeiro e acabou por trocá-lo por um forasteiro, quase desconhecido na terra.

A animosidade continuava: só que o traste, mediu mal as coisas, e em vez de afrontar o antigo rival, encontrou pela frente uns matulões, com menos trinta ou quarenta anos que ele e dispostos a vingar muitos vizinhos que dariam tudo para ver o “Rasga” pagar, pelo que tinha feito na terra.

Um tio meu, que se chamava Francisco, adiantou-se aos irmãos e disse: ele é que ainda não sabe com quantos paus se faz uma canoa! Mas quando as sentir no lombo, vai saber com quem se meteu. Eu e os meus irmãos, se quiserem acompanhar-me, vamos mostrar-lhe que não se mexe no que não nos pertence, e se quiser resolver as coisas como sempre tem feito, encontra, finalmente, quem lhe mostra como as coisas são tratadas. 

Assim o pai me dê carta-branca para meter o tratante na ordem. E, se nenhum dos meus irmãos quiser acompanhar-me, sozinho chego muito bem para ele. 

Porém, o seguro morreu de velho e, por isso, alguém, de fora da família, há-de estar em condições de testemunhar tudo o que possa acontecer.

E o meu tio Francisco, continuou: Então vem lá da Aboboreira, mostrando libras a torto e a direito, sem que ninguém saiba onde as arranjou, e pensa que isto aqui é tudo dele! 

Não! Bateu, pelo menos desta vez, à porta errada. Há-de receber, depois de dar, que eu não sou parvo. Mas, esteja descansado que não terá tempo para dar a segunda e há-de haver quem esteja nas redondezas, para ir, onde for preciso, dizer quem provocou e que bonita prenda esta terra tem.

Então, quem vem comigo? Tu, João, ficarás por perto, assim como o Tonho. Mantenham-se escondidos. Só se for preciso é que aparecem. Tenham a certeza que eu chego bem para ele e irei provocá-lo, para que, se for homem, as peça! 

Depois vou dar-lhe uma boa sova, de forma que mostre a todos que encontrou quem chega para ele e que, nesta terra, não se mexe no que não nos pertence. E hei-de fazê-lo jurar que não volta a pisar o que é nosso, nem a mexer nas nossas represas que não lhe devem nada.

O meu avô concordou, mas pediu que fossem os três e usassem o mínimo de violência possível, tomando cuidado com a rês: Ele tem fama de traiçoeiro; Usa uma navalha! 

O meu tio e os irmãos concordaram e apenas disseram: se pegar em faca, partimos-lhe esse braço; se a agarrar com a outra mão, partimos-lhe o outro, e tudo será feito à vista das testemunhas, que já apalavrámos.

Às primeiras chuvas lá saiu o “Rasga”, com a saca às costas, a caminho do Vale. Os meus tios, João e Tonho, já estavam nos postos, escondidos dentro do ribeiro. O Francisco seguiu-o de perto, também com uma saca ao ombro e dentro dela um bom cacete, com uma moca e uns oitenta centímetros. 

Chegaram ao ribeiro, junto da estrema, uns metros a jusante da primeira represa, quase ao mesmo tempo. O “Rasga”, com ar provocatório, disse: 

Vens arranjar as represas? Não te canses muito, rapaz. A chuva parece vir aí forte e não vai haver represa que lhe resista. Mas, se a chuva precisar de ajuda, cá estou eu para lhe dar um jeito! Ou és homem para me estorvar?

Não se esqueça que mais um passo que dê e está no que é meu, sem ser convidado. Se que saber se o estorvo ou não, terá que experimentar! 

E o meu tio foi sentar-se no cômoro, junto da represa, ajeitando umas leivas que estavam descompostas e mirando, pelo canto do olho, os movimentos do vizinho.

Num salto, o “Rasga” com um pau erguido, precipita-se na direcção do meu tio, que, furtando-se e pondo-se em guarda, recebeu o golpe do agressor e deixou que ele se projectasse, de barriga para baixo, dentro da represa. 

Num ápice, levantou o pau e aplicou-lhe um golpe entre as espáduas, um pouco abaixo do pescoço, sobre a espádua esquerda, que provocou um grito de dor ao “Rasga”. 

Com um esforço e gemidos de dor, voltou-se, sobre o lado esquerdo, meteu a mão no bolso das calças e, tirou uma navalha espanhola, de ponta e mola. 

Foi a vez de o meu tio aplicar o pau, pela segunda vez, acertando no antebraço do inimigo, que, com gritos de dor e raiva, ainda tentou agarrar a navalha com a mão esquerda. 

Já o meu tio se preparava para lhe aplicar nova paulada, desta vez sobre o braço esquerdo, quando o Tonho, a correr, o agarrou, ficando o “Rasga” com a omoplata, do lado esquerdo, partida e o ombro do mesmo lado, desconjuntado. O braço direito, partido, entre o cotovelo e a mão, com fractura exposta, deixava a mão pendurada. E, se tinha ainda o braço esquerdo inteiro, embora inanimado, ao Tonho o devia. Mas, não iria agradecer-lhe.

Vieram buscá-lo e levaram-no para casa, onde o trataram. Durante mais de seis meses, quase não saiu de casa e nem parecia o mesmo fanfarrão de sempre. Porém, sempre ia dizendo: Se não me tivesse apanhado à traição, teria sabido como elas lhe mordiam!

Da parte dos Lourinhos, só chegou um recado: ou prometia, publicamente, que nunca mais mexeria nas terras dos Lourinhos, ou, quando estivesse em condições, havia de ir dizer ao juiz porque é que tinha partido a omoplata e o braço e porque foi, de má fé, armado de cacete e navalha de ponta e mola, para as terras do Vale. 

Podia escolher, entre reconhecer-se culpado, ou ir uns meses, ou anos, para a cadeia.

O “Rasga” sabia que havia muitas testemunhas a favor da razão. Que fora o primeiro a atacar o moço, que se não fosse o irmão teria os dois braços partidos e, sabia Deus que mais. 

Por isso, um dia, na presença do Cabo de Ordens da terra e de quem mais quis ouvir, reconhecia que os Lourinhos tinham razão e pedia desculpa a todas as pessoas que, por culpa do seu mau feitio, tinha ofendido.

O “Rasga” ainda durou vários anos, mas nunca mais foi o mesmo homem. O seu braço direito nunca mais teve força e as costas nunca deixaram de ter dores. Muitas vezes nem uma saca vazia aguentava sobre o ombro, dizia ele.

O meu avô dizia, meio a sério, meio a brincar: nunca fui homem de brigas, mas há por aí certos trastes que só com uma boa sova é que aprendem. E, uma boa sova é aquela que o tio Francisco Lourinho aplicou ao “Rasga”: não é preciso bater muito; Massacrar o inimigo para quê? 

Dar, quando se tem que dar! E só na medida do preciso: O meu tio aproveitou a fúria do inimigo para o deixar cair de bruços, dentro da represa. Aplicou a primeira paulada para tirar força aos braços do adversário; a segunda para evitar que a mão pegasse na navalha. Preparava a terceira para segurar a outra mão…

E aí está um fanfarrão que toda a vida fez gato-sapato de quem quis, a rastejar, como um porco, prometendo respeitar o que é de cada um e jurando não voltar a mexer nas nossas terras.

E, o velho Lourinho, apenas dizia: 

Assim vale a pena aprender a mexer um pau; E eu que nem sabia destas artes do meu Francisco!...

terça-feira, 6 de setembro de 2011

O Barqueiro "Lérias"

O António da Costa, mais - e quase só - conhecido pelo "Lérias", tal como seu pai e avô já tinham sido, nasceu e cresceu nas margens do Tejo, entre os Engarnais e o Pego, nuns casebres, onde vivia com os seus e não longe do seu barco que transportou de tudo, desde pessoas a animais, passando por todo o género de artigos, entre as duas margens do grande rio Tejo.

Desde que se conhecia, há perto de sessenta anos, sempre fora barqueiro e, a qualquer hora do dia ou da noite, chovesse ou trovejasse, não se lembrava de alguma vez ter recusado um frete a qualquer pessoa que lho pedisse. 

Bastavam dois assobios para que nos minutos seguintes aparecesse o ''Lérias'', muitas vezes ainda a apertar as ceroulas, que depois aforraria, e, logo a seguir, desamarrasse o barco e o trouxesse para junto do pequeno cais de pedras. 

Limpava a água que estivesse no chão, carregava mercadorias e animais e ajudava pessoas a acomodar-se a bordo. 

Pegava depois nos remos, ou na vara, com que dirigia e empurrava o barco, avançava contra a corrente até tomar o ponto de onde mais facilmente chegaria ao outro lado, cerca de quatro minutos depois. 

Ajudava a descarregar. Sentava-se no poial que seus antepassados ali tinham preparado, acabava de fumar a cigarrada e iniciava a viagem de regresso. 

Não havia horas; estava sempre de serviço; dois assobios e começava o trabalho, de acordo com o local onde estivesse o cliente que chamava. 

O único vício que se lhe conhecia e que não fazia qualquer esforço para abandonar, era o tabaquito. Não se lembrava de alguma vez ter ido ao lado do Pego, buscar ou levar alguém, sem fazer um paivante, sentado no poial de pedras, antes de iniciar o regresso.

Dizia, com a laracha que caracterizava as suas saídas, que quando levasse alguém sem a sua cigarrada, esse, nunca mais lhe daria trabalho. E, muito sério, acrescentava: "palavras do meu avô que Deus tem". 

Uma das melhores prendas que se podiam oferecer ao "Lérias" era uma onça de tabaco "Superior", mas sem livro de mortalhas; essas vinham de Espanha. Desde que usava aquelas mortalhas, nunca a tosse o apoquentou, dizia ele. 

Cada pitilho, formado por uma pitada de tabaco, tirado da onça com uma pinça feita pelo polegar e indicador da mão direita, enrolada na mortalha espanhola, e colada com o cuspo da ponta da língua, dava para três ou quatro fumaças. Vício de boca, pois nunca engoli o fumo, como o ''Lérias'' repetia, vezes sem conta. 

Até no dia em que fui levar a "patroa", já em trabalho de parto, para ser conduzida ao hospital, enquanto a aconchegavam no barco, preparei a cigarrada e puxei-lhe fogo. 

Talvez por isso, o meu filho, a quem pus o nome "Tejo", acabou por me nascer para lá do meio do rio. Histórias!. ..

E lá vinham as prosas que umas vezes entretinham, outras distraiam e, até cansariam alguns fregueses. O "Lérias" contava as histórias conforme a cara dos passageiros, mas também sabia ouvir e apreciava uma boa passagem; minava-se por galgas bem metidas. 

Deliciava-se com a inocência de certas pessoas, mas nunca faltava ao respeito a ninguém e dentro do seu barco, onde era capitão e autoridade suprema, como ele orgulhosamente se intitulava, não permitia espertezas saloias, nem desrespeito pelos mais humildes. 

Contava ele, então: Um belo dia, tinha no cais a senhora professora dos Casais e um conhecido doutor advogado, de Abrantes, para serem transportados para o outro lado. Depois do paivante da ordem, ajudei a senhora a subir e a acomodar-se no barco; o doutor sentou-se em frente da professora. 

Não sei porquê, naquele dia não me estava a apetecer fazer jus ao meu nome - lérias - e mais cabisbaixo que o costume, lá ia manejando remos e vara, sem me meter com ninguém. 

Nisto, o espevitado do doutor, com ares de sabichão, atirou, à queima-roupa: Oh! "Lérias", você sabe alguma coisa de leis? 

Eu, senhor doutor advogado, como houvera de saber! Nunca as estudei, nem, precisei delas para nada!... 

Não é isso, homem! É que você acabou por perder metade da sua vida!... 

Eu, encolhi os ombros e continuei a remar. Mas a seguir, dando uma de finória, disse-me a professora:

Oh, senhor "Lérias", você nunca foi à escola, pois não? 

É verdade, senhora professora! Desde que me conheço a minha escola é esta: o rio, o meu barco, o meu serviço e a minha família. De resto ... 

Então não sabe ler nem escrever!? 

Pois não, minha senhora! Mas, graças a Deus, o meu barco não deixa de andar por falta disso!... 

A verdade é que perdeu, sem proveito, metade da sua vida!... 

Aí por alturas do meio do rio, onde a água faz uma pequena gola e corre mais forte, penso que por terem feito uma descarga na barragem, veio uma onda, maior que o normal, e o barco virou-se, caindo os passageiros para a água, ficando agarrados a uns juncos, não longe do barco. Ao ver a professora e o advogado, esbracejando no meio da água, perguntei: 

Vocês sabem nadar?

Não! Responderam os dois; Tire-nos daqui, homem de Deus, senão ainda morremos para aqui afogados! 

Aí, cá o "Lérias", percebendo que o perigo era nulo e tudo não passaria de roupa molhada e um pequeno susto, voltou-se para "ambos os dois"e disse: 

Que pena, acabariam perdendo a vida os dois, por nunca terem aprendido a nadar! Isto, se aqui o morto que nada conhece de leis, nem nunca aprendeu a ler e escrever, não ressuscitasse para vos salvar! E, já de novo dentro do barco, ao chegar ao local de descida, ainda o "Lérias", que aqui vêm e a terra há-de comer, acrescentou: 

Cada um é para o que nasce e tem, no seu campo, tanto ou mais valor que qualquer outro terá no seu meio. Não se deve discriminar ninguém. Saber mais ou saber menos, não deve servir para diminuir ninguém. E, lembro-me dos ensinamentos do meu avô: 

Os que mais sabem, são, na maior parte das vezes, os que menos dizem. Pelo contrário, o fala-barato, que nunca se cala, fá-lo para esconder o que não sabe.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Senhora da Piedade

Em “história” anterior, falámos sobre o “bispo das Corgas”. 

Porém, tratando-se de uma personagem tão rica e tão marcadamente influente das gentes daquelas terras da Beira, cuja mulher, em nada ajudava na boa disposição e permanente disponibilidade para tudo o que acontecesse lá nas Corgas e terras das redondezas, voltamos com novo episódio. 

Ao contrário da boa disposição do senhor António de Brito – mais conhecido pelo “bispo das Corgas”- a mulher passava os dias a contar desgraças, ou, se não as tinha à mão, a presumir mortes, misérias, calamidades, doenças e outras coisas. Mas, todas elas, tristes. Por isso lhe ficou aquele nome de Ana do Tristão. 

Na festa em honra da Nossa Senhora da Piedade, o Tó Esquinado, já bem bebido, teimava em levar o andor da santa, porque, dizia ele, tinha feito uma promessa e queria cumpri-la. 

Os mordomos, por sua vez, não o queriam no grupo que levaria, em ombros, durante a procissão, o andor da santa. 

Conversa e mais conversa e não havia meio de começar a procissão; não saía a santa, que todos ansiosamente esperavam ver na porta da capela. 

Veio o senhor padre de Sandomil, juntou-se-lhe o de Vila Cova e, também, o sacristão de Valezim – compadre do Esquinado – e bem se esforçaram por convencer o Tó a não levar a santa, pois punha em perigo uma coisa sagrada. 

Gerou-se um grande impasse, pois nem o problema se resolvia, nem a procissão saía. E o povo, não sabendo ao certo o que se passava, começava a impacientar-se, aparecendo já voluntários para dar uma ou duas cacheiradas no bêbedo e pô-lo a dormir. 

Porém logo outro adiantava: Então se o homem tem uma promessa, porque não há-de cumpri-la? 

Como sempre, sem se dar por ele, apareceu o senhor António de Brito e, dirigindo-se ao senhor padre de Sandomil, na condição de presidente da cerimónia religiosa, convidou-o a levar o Tó à sacristia e dispensá-lo da obrigação de cumprir a promessa. 

Poucos momentos depois, o Esquinado saía, cabisbaixo e pronto a fazer todo o percurso da procissão na companhia do “bispo”, na maior ordem e respeito. Mas  o Tó não deixou de mirar, de esguelha, o “Folgas” que tinha levado a vara do andor, onde ele queria ter ido. 

Vindo lá de cima, dos lados de Gouveia, do lugar onde se diz que Viriato descansou entre duas batalhas, para tomar um fôlegosinho, o Américo era um homem de estatura avantajada, largo de ombros e quase com um palmo acima do comum dos homens das Corgas. 

Era, lá na aldeia, conhecido pelo “Folgas”, não apenas por ter vindo lá de Folgosinho, mas também, porque, sempre que podia, descansava enquanto andava nos trabalhos; fazia folgas. 

O Tó, podia continuar com o grão na asa, mas via, perfeitamente, que o “Folgas” desequilibrava o andor todo e a santa só não caía, porque estava aparafusada. Algumas flores que decoravam o andor, estavam mesmo em vias de se desprenderem. E ia fazendo figas para que a coisa desse para o torto e continuava à espera da recolha do andor à capela, pois, ou o “Folgas” se baixava muito, ou a santa havia de bater na porta. 

E, assim foi: ao entrar na capela, o “Folgas” não se baixou o suficiente e a santa bateu na padieira da porta, partindo a ponta do nariz, que havia muito tempo ameaçava soltar-se. Os mordomos apanharam o bocado quebrado, puseram-no sobre o andor e deixaram-no junto da imagem, na capela. 

Na altura ninguém avançou qualquer presságio, mas à boca pequena todos sugeriam que se tivesse sido o Tó a levar a santa, tudo teria corrido bem. Assim… 

Quem não deu o caso por encerrado foi o “bispo”. Dirigiu-se, discretamente, a casa da senhora Mariana, zeladora da capela e pediu a chave, pois queria ver o que se podia fazer com o nariz da imagem da santa. 

Recomendou que não fizesse uso, pois não queria que ninguém soubesse de nada, uma vez que nem ele sabia o que poderia ser feito. Logo lhe daria a chave, quando não precisasse dela. 

Da sua oficina de tamancos, onde ganhava a vida, levou madeira, colas, limas, pregos, parafusos, lacas, tintas e uma caixa de ferramentas para trabalhar madeira. 

Correu para a capela todos os dias de uma semana, conseguindo não ser visto, nem ouvido durante os trabalhos de restauro. 

Finalmente, dado o trabalho por terminado, entregou as chaves à zeladora e, dias depois, não se falava de outra coisa na terra; tinha havido um milagre e a santa voltava a ter o nariz perfeito! 

O padre foi vistoriar a imagem e, considerou o trabalho tão bem feito que não quis interferir nos ditos que corriam. 

Porém ao ver que a coisa tomava dimensões desmesuradas e incontroladas; já havia visitas à capela, por peregrinos vindos de fora, para ver o nariz de Nª Sr.ª da Piedade, interpelou o senhor António de Brito sobre o que teria acontecido e, pedindo-lhe uma explicação, pois…

Talvez um “bispo” tenha mais explicações que um padre! 

Nisto, o “bispo”, sem se desmanchar, acrescentou: Olhe, sr. Padre Francisco, uns dizem que veio aí um santeiro, de Braga, e compôs a nossa santinha. Eu, ainda não vi o trabalho, mas já me foi gabado. 

Outros, talvez mais crentes, ou não, dizem que foi milagre; afiançam que moram lá para os lados da capela e não deram por ninguém a entrar ou a sair e garantem que não ouviram barulho de quaisquer trabalhos. 

Eu, estou confuso e não tenho opinião. Que Deus me perdoe, mas não dei fé de ninguém de fora, cá na aldeia. E, que a santinha tenha feito um milagre, também me custa a engolir. Mas o caso resolveu-se! Se calhar é melhor deixar as coisas como estão e que cada um acredite naquilo que quiser. 

Assim, como assim, é capaz de ter razão, senhor António de Brito. Daqui não virá mal ao mundo e, quem sabe se a Sr.ª da Piedade vem, a partir de agora, a ter mais importância e as devoções, que sempre mereceu, mas muitos sempre esqueceram. 

Porém, deixe-me que lhe diga, aqui para nós, que ninguém nos ouve, e com a vénia que se deve falar a um “bispo”: Os meus parabéns, senhor António de Brito, está um trabalho perfeito! E, com um sorriso, foi-se para dentro da capela.