quinta-feira, 25 de setembro de 2014

O Ti´Jorge dos cabelos brancos



Quando saiu do mar, trabalhou em escritórios e chegou a Oficial de Justiça, em vários tribunais, terminando a carreira em Aveiro. 

Foram vinte anos numa cidade – a mais linda das portuguesas, como referiu várias vezes nas suas memórias, escritas e contadas oralmente – onde escreveu, 

Fez de tudo e sempre foi arranjando tempo para estudar. Depois do serviço militar, alistou-se na Marinha Mercante e foi correr mundo, até aos trinta anos.

pintou, viveu e sóEm pequeno, o Jorge do Outeiro passou cinco anos no Gavião e em Portalegre a estudar para Padre.

Depois resolveu dar uma volta à vida e começou-a, fugindo do Seminário.

Sem coragem de rumar a casa, onde receava o castigo do padrasto, andou por Lisboa e “Santa-Maria-de-Todo-o-Mundo”, sem dar sinais de vida à família, durante uma dúzia de anos.

lhe faltou casar e ter filhos. Até que, reformado, acabou por regressar à aldeia, onde só primos restavam da sua família. 

Nos mais de trinta anos que esteve ausente cortou tudo o que recebera da Terra; tudo não será bem o termo, pois as raízes estiveram sempre vivas, como gostava de lembrar, quando alguém, mais curioso, lhe perguntava por onde tinha andado. 

Um dia, animado por um parente, foi à aldeia e, diante da casa em que nascera e lhe pertencia, desde a morte da mãe, pediu para ficar um tempo sozinho. 

Lá pelo pôr-do-sol mandou chamar o primo e reunidos com uns ex-pedreiros que lhe serviram de amparo nos primeiros tempos de Lisboa, combinou-se a restauração da casa, prontificando-se o primo a recebê-lo em casa durante as obras.

Na aldeia não havia escola; as primeiras letras e as contas passaram a ser ensinadas pelo Ti’Jorge, ao tempo Cabo de Ordens, barbeiro nas horas vagas, agricultor de vez em quando e Mestre-escola, na casa do Ti´Calça Larga, que durante o ano estava desocupada, pois só sentia azáfama na altura das vindimas.

O sr. Jorge Mendes Pires, conhecido pelo Ti´Jorge – como gostava que lhe chamassem -, foi encarregado de dar escola na aldeia, depois de ter sido entrevistado pelo Delegado Escolar do Concelho a quem mostrou competência e conhecimentos suficientes para ministrar o ensino às primeiras classes, ou seja até à 4ª classe, e receber todas as garantias de apoio da Escola Oficial. 

Daria aulas de dia e à noite e seria acompanhado e orientado pelo Senhor Professor que se deslocaria à aldeia, numa viatura da Câmara, pelo menos uma vez por mês. Passou a ter categoria de Regente Escolar e uma remuneração de duzentos mil réis por mês. Nunca quis que lhe chamassem Professor e estabeleceu que seria, para todos, o Ti´Jorge. 

Dezenas de rapazes e algumas raparigas, aprenderam ali o suficiente para fazerem exames de 1º e 2º grau (3ª e 4ª classe) e muitas vezes os alunos do Ti´Jorge foram “Aprovados com Distinção”, não mostrando quaisquer desmerecimentos nos exames feitos na Escola do Concelho.

Dizia-me o meu Padrinho, que, com ele, quando garoto, fez exame da 4ª classe, em Mação, que os meninos e rapazes da Serra eram barras em problemas, raramente davam erros nos ditados, faziam redacções lindas e em geografia sabiam tudo, porque o Ti´Jorge conhecia o mundo, sabia falar com muita desenvoltura – consequências dos estudos no Seminário – e era um verdadeiro artista. 

E, nas suas memórias, havia sempre algo para revelar: Foi com ele que aprendi as primeiras coisas sobre balanças e já mal via e estava quase mouco, quando eu fiz a primeira balança romana, que ele comentou, com um sorriso:

-Embora não tenha ainda formas muito trabalhadas e talvez não seja muito agradável à vista, fiz-lhe testes e posso-te garantir que em termos de rigor é uma obra perfeita. Leva-a ao senhor Aferidor da Câmara e verás que confirma o que te garanto quanto à qualidade da tua balança. Parece-me que deves saber se alguém te pode ajudar a registar a patente. Pergunta lá na Câmara.

Nunca poderei esquecer isso: estávamos a chegar aos anos quarenta, e ele recomendou-me que eu devia aperfeiçoar as balanças, pois a Guerra não podia durar para sempre e, quando ela acabasse, haveria muito desenvolvimento industrial. 

Foi a conversa de despedida do Ti´Jorge. Acho que nenhum dos rapazes do meu tempo alguma vez poderá esquecer aquele homem: gratuitamente e ainda comprando algum material, ensinou quem quis aprender, da terra e de fora.

Depois acrescentava-me o velho Mestre Abílio, que, até que os olhos lhe permitiram, dava cartas no lançamento de uma obra com as plantas e desenhos na mão. E o seu maior trofeu foram as escadas que tiveram de ser emendadas, pelo Ti´Jorge, depois de lançadas por Encarregados de Obra e até de Engenheiros.

Mas não se esqueça, Senhor Professor: o Ti´Jorge nunca castigou ninguém, por não saber. Todos os que lá andavam eram voluntários e ele também. Assim, meus amigos, quem não quiser vir não vem, mas se vier, é para ser alguém. 

Daqui a uns anos, talvez quando eu já cá não estiver, poderei ver-vos, sem ser visto, a agradecerem ao velho Ti´Jorge o que ele vos ensinou. Se quiserem, mesmo sem Professor, podem ser os melhores. 

E querem saber como e porquê? Simplesmente porque querem!...

Alguns alunos iam de dia. Ou porque ainda eram novos demais para trabalhar, ou aprender um ofício, ou porque os pais os dispensavam para estar mais tempo na “escola”. O Ti´Jorge fazia sempre uma reunião depois da ceia, aos sábados, para falar com os pais, sem que os filhos estivessem presentes.

E voltava o meu Padrinho: eu, por exemplo, tinha três irmãos, mais velhos. O meu pai já trabalhava na ferrugem e todos nós estávamos destinados a passar a vida a malhar ferro. E assim foi, mas dentro da forja, cada um seguiu o seu caminho: e eu, que era o mais dispensado para as aulas do Ti’Jorge, quer durante o dia, quer á noite, aprendi lá a gostar de saber. 

Gostava muito de contas, problemas, medições, desenhos de peças, etc.. Também não era mau nas redacções e no ditado, mas gostava mais da Matemática – como dizia o Ti´Jorge. 

Parece que estou a ver o sorriso dele, quando já mais pelo tacto, que com os olhos, apreciou o primeiro exemplo de balança que lhe mostrei. Devo-lhe a mancha de clientes de norte a sul do país e a honra de ter sido louvado pelos serviços de Aferição do Concelho. 

Num discurso do Chefe dos Serviços foi dito que as minhas balanças, produzidas sem o primor de uma grande fábrica, tinham o rigor suficiente para dispensarem, praticamente, os serviços de aferição.

E, com uma nostalgia bem visível nos olhos, rematava: sabes afilhado, homens como o Ti´Jorge mereciam mais as estátuas do que aqueles que por aí as têm. Mas tenho a certeza que a sua humildade não desejava isso e espero que aquilo que me parece que não encontrou no Seminário, lhe foi dado pela vida. Sempre foi o retrato vivo de um homem bom, justo e exemplar.

Foi isso que vi espelhado nos seus olhos, quando, serenamente, se lhe fecharam. O retrato da verdadeira paz! A imagem da autêntica serenidade de uma alma simples. 

O ti´Jorge era conhecido, fora da terra, pelo Professor da Serra. Tinha uns bonitos cabelos; tão farta cabeleira como a dos seus verdes anos. Só que, em vez de castanhos, eram totalmente brancos. Sempre bem tratados e aparados por ele próprio, eram a sua maior preocupação quanto ao seu visual. 

Numa das poucas vezes que se referiu ao seu aspecto, justificou a cor dos cabelos como a obrigação de ser justo, honrado e respeitador. E lavava, invariavelmente, uma vez por semana os seus cabelos; assim como uma espécie de confissão e exame de consciência… 

Uma inconfidência, com que o meu padrinho definia a maneira como o Ti’Jorge dos cabelos brancos gostava de se ver ao espelho.

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