sábado, 6 de setembro de 2014

Festival dos pássaros - 1ª parte

  

(1ª parte)

Para o melro Augusto, o ano não foi mau. 

Arranjou uma boa companheira, fizeram ninho nos balceiros do lagar velho, a vistas do Sanguinhal, e criaram os três filhos. 

O Outono ia de feição - bom ano de novidades, uvas com fartura de rabisco, boas frutas e bastante água na ribeira, pelo que não faltaram hortas regadas e boa provisão de bichos para toda a passarada. 

As oliveiras já pintavam e o frio ainda não era demasiado. 

Conseguiu descobrir, a tempo, uma armadilha debaixo das videiras do chão do Moleiro, disputou com um rouxinol, nas laranjeiras do Cabecinho Agudo, as eleições para Encarregado-Geral e foi escolhido para Chefe dos Pássaros, no vale da Ribeira da Renda e brejos circundantes.

No fim de Verão demarcou, como área de repouso e abrigo, a chapada de estevas que vai do açude da Renda até às primeiras hortas do Lavadouro. 

Era uma zona soalheira, nos baixos da encosta da Lomba, ali à meia barreira, onde nem os pinheiros vingavam, tal era a densidade de estevas e tojos. 

O maior perigo vinha das raposas que tinham criado junto da represa que escorre para a azenha, mais ou menos a meio da mancha de estevas que formava o território do melro Augusto. 

Mas eram tantos os ratos que procuravam restos de grão, junto do moinho, que os bichos maiores nem precisavam procurar os pássaros para andarem gordos e saciados.

O melro Augusto pernoitava, descansava e vigiava a sua zona sobre um tufo de balças, num pinheiro anão, com as carrascas cobertas de musgo e as carumas quase inexistentes substituídas por ninhos de processionária. 

Pouco maior que as estevas, era, no entanto, o local de atalaia do Encarregado da Zona e dos seus ajudantes mais chegados. 

A sede do Governo dos pássaros.

Não longe dali, numa espécie de palanque, entre um montículo de terra e pedras - mais pedras que terra - e um pequeno penedo, com grutas e subterrâneos, como convinha, um anfiteatro natural servia de local de reuniões e recepções. 

Era ali que o melro Augusto despachava o expediente, recebia os recém-chegados e organizava a guarda avançada que se estendia pelos cimos da chapada de estevas e pelos baixos, logo a seguir à levada que ladeava as hortas, desde o açude ao Lavadouro, nuns bons trezentos metros.

No outro lado da ribeira, por toda a sua esquerda, desde os primeiros pinheiros das Barreirinhas, ao plano dos Brejinhos, espraiando-se pelos Brejos e cabeço do Lavadouro, à entrada do Vale das Lousinhas, todo um conjunto de vigilância e alerta reportava para o comando qualquer entrada estranha, ou simples tentativa de intrusão, na zona de influência daquela comunidade, sob a responsabilidade do melro Augusto.

E tudo corria tão bem que, naquele ano em que o melro fora escolhido para Encarregado-Geral, não houve nenhuma baixa na comunidade. 

Até, no tempo dos taralhões, os garotos se afastavam dos pinchos da zona, pois a passarada de lá não caía nas costelas. 

Apenas algum intruso que acidentalmente tivesse penetrado na zona, poderia ter sido vítima das armadilhas que, ocasionalmente, algum caçador por ali tivesse armado.

Nos terrenos do melro Augusto, os principiantes eram ensinados a movimentar-se nas estevas, eram adestrados na arte de fugir aos predadores que pudessem encontrar: fossem cobras e outros répteis, gatos-bravos ou não, raposas e cães. 

Também os milhanos e alguns outros perigos eram evitados e havia esconderijos preparados para emergências.

A fama do melro Augusto já se estendera por todo o vale, desde o cabeço do Manglório e o Vale Dianteiro onde tinha começo a ribeira da Serra, até para lá da Amieira Cova onde se entrava nas áreas da Saramaga e outras terras da Alcaravela. 

Por todos os vales que escorriam para o leito da ribeira também já se falava da mestria, sabedoria e eficiência do melro Augusto.

Naturalmente, gerou-se um movimento para que na próxima Assembleia de Zonas fosse proposta a candidatura do melro Augusto. 

Era um facto sem precedentes, pois os gaios, as rolas, os pica-peixes, os emplumados papa-figos e até milhanos e peneireiros, eram, segundo os costumes, os pássaros escolhidos para Encarregados de área. 

Os cucos não tinham voz, nem voto.

Agora, porém, chegava-se mesmo a avançar com a ideia de uma chefia alargada a toda a zona da ribeira da Serra e vales adjacentes, numa área de grande diversidade e importância. 

Seria um Encarregado-Geral-Principal, com assento no Grande Conselho Avícola, Membro do Conselho Supremo de Ornitologia, com o pelouro das aves migratórias. 

O melro Augusto recebeu muitos emissários e observadores. 

Foi objecto de muitas sondagens acerca da sua disponibilidade, e sempre humilde e generoso com os que o visitavam e elogiavam, nunca baixou a guarda, mandando sempre vigiar e acompanhar os que partiam e deixando no ar o seu maior desejo: servir os seus irmãos, protegendo-os e zelando pelo bem-estar colectivo e não desleixando os cuidados com todos os que espreitavam por uma oportunidade para virem ali fazer qualquer desgraça. 

Foi, pois, neste contexto que num dia de meados de Outubro, em pleno Outono, já com chuva e frio, mas ainda com sol reluzente, chegou ao esteval do melro Augusto, um pisco desgarrado, sozinho, e perguntando pelo Encarregado de quem tinha ouvido os maiores elogios, desde que cruzara os últimos grandes montes antes do mar.

Levado à presença do melro Augusto, ficou encantado com a simplicidade do Encarregado, com a forma como foi recebido e, desde logo, convidado para, nos próximos dias, se encontrar com o chefe para falarem sobre a longa viagem que fizera desde a sua terra até ali. 

E, se fosse caso disso, apresentar as suas petições de permanência, como parecia ser seu desejo.

(Continua na próxima publicação)

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