sexta-feira, 12 de setembro de 2014

FESTIVAL DOS PÁSSAROS (conclusão)


(conclusão)

O pisco Nicolau, cujo nome disse ser vulgar nas suas terras de origem, lá nos confins do nordeste da Europa, foi levado a duas oliveiras onde pôde saciar o seu desejo de azeitonas pretas, e depois foi conduzido ao local de pernoita. 

Foram-lhe ainda dadas as instruções de defesa e segurança que deveria respeitar, escrupulosamente, na zona do melro Augusto e, até que não tivesse outro enquadramento ficaria no grupo dos convidados e adidos.

No dia seguinte o pisco Nicolau foi provar as águas da ribeira, banhou-se nelas, gabando uma tão agradável temperatura, e apresentou-se, com o melro que fora destacado para lhe servir de guia, guardá-lo e protegê-lo, ao melro Augusto para uma primeira conversa e a definição do programa de preparação e treino a que iria ser submetido.

Foi apresentado a alguns piscos que tinham chegado nos últimos tempos e já estavam enquadrados na estrutura e organização do melro Augusto e, por enquanto, ficaria perto do chefe, pois a qualquer altura podia ser chamado por ele. 

Nada faria sem a companhia do seu tutor – melro Anacleto – e em circunstância alguma sairia da área restrita, ou falaria com quem quer que fosse, sem a presença do acompanhante.

Ainda nessa tarde, teve a primeira conversa formal, e sobre a vida e viagem o pisco Nicolau, respondeu ao melro Augusto:

Nasci e cresci lá em terras frias e com pouco alimento. Desde cedo, com um numeroso grupo de companheiros de raça e outros pássaros, fui mentalizado que teria de partir para terras mais ocidentais e mais ao sul, onde o clima era mais quente e havia mais abundância de comida. 

Descreveu, depois, o esquema que vigorava lá na sua terra, onde tudo era estabelecido pelo governo e cada um era mandado para onde era opinião dos chefes e fazendo o que lhe estabeleciam como tarefa. 

Tinham o que precisavam: poiso, alimentação, preparação e saúde, fornecido pelo governo e não podiam deslocar-se sem autorização das autoridades. 

Acrescentou que manteria, sempre, o desejo e a esperança de voltar à região natal. Seria esse o meu destino e poderia mesmo perder a vida nessas longas, cansativas e arriscadas viagens. 

Até então, apesar de muitas dificuldades e sacrifícios – que descreveu ao melro Augusto -, tinha superado tudo e ali estava, pronto para tudo e com desejo de pertencer a tão belas terras.

Andou, depois de partir, sobre terras muito iguais e a certa altura foi preciso contornar altas montanhas e escapar à caça de aves de rapina, que se alimentaram de muitos irmãos seus. 

Nessa altura a sua plumagem era menos colorida e pôde passar despercebido aos que o procuravam para se alimentar. 

Estava preparado para tudo, resistiu sempre e nunca perdeu a esperança de chegar ao paraíso de que lhe tinham falado alguns irmãos mais velhos. 

Mas valeu a pena, pois, finalmente pôde chegar até junto de uma comunidade exemplar que estava disposto a servir, como lhe fosse determinado.

Aqui trabalha-se, em liberdade, mas temos respeito, defesa e utilidade. Quero participar naquilo que me ordenar e sentir orgulho de pertencer a uma organização exemplar de entreajuda, defesa e protecção de todos os elementos do nosso grupo. Coisas que nunca tive desde que me conheço.

A viagem demorou para cima de catorze sois, voando alguns dias, quase sem descansar, de manhã à noite, sempre fugindo de perigos que nunca me tinham sido revelados e dos quais escapei por verdadeiro milagre.

Passei por zonas quase sem abrigo e comida e também por terras melhores e com algumas sementes para saciar a fome. Mas segurança em terra e no ar, nunca senti. A qualquer momento poderia surgir o inesperado e era o fim.

Só quando comecei a ouvir falar nas terras do melro Augusto, me invadiu o desejo de chegar ao fim da viagem, disposto a fazer tudo o que me for mandado para aqui ficar até que o meu destino se cumpra. 

A partir de agora, segundo a vossa vontade e desejo, peço que me inclua na sua comunidade.

Que sabe fazer, pisco Nicolau? Quer continuar com o nome e ficar aqui nas nossas estevas? São terras pobres, onde há liberdade e respeito. Pode ficar.

A primeira coisa que deve fazer é aprender os nossos usos e costumes e a nossa língua, para nos entendermos sem ser por gestos. O seu tutor será o melro Anacleto, a quem obedecerá sem pestanejar e passará a pertencer ao grupo especial dos meus ajudantes, pois a sua longa viagem deu-lhe conhecimentos que precisamos e queremos saber.

Senhor melro Augusto, além de voar, sei fazer muito poucas coisas; apenas distinguir umas quantas sementes que não devemos comer e executar certos movimentos de voo que nos ajudam a fugir a perseguições e podem salvar-nos a vida. 

Lá na minha terra dei instrução de voo livre e acrobacia, bem como técnicas de auto-defesa. Fui louvado pelo meu trabalho.

Atravessei muitas terras e diversas organizações, mas como não estava destinado a ficar, não me enquadrei em nenhum grupo, não me preocupei em aprender nada de lá e nem parava, pois alguma coisa me empurrava para o meu destino. 

Parece-me que, finalmente, encontrei um nome – que aceito, com todo o gosto – e uma família que me recebe bem. A Vossa organização, que ainda não conheço bem, parece-me exemplar e aceito a honra de ficar aqui para trabalhar para si e respeitar todas as ordens. Cumprirei, sem reservas, todas as tarefas que os meus superiores me atribuírem.

Farás a preparação para poderes pertencer à nossa organização, aprenderás o mais possível da nossa língua e costumes, receberás todos os ensinamentos de defesa e vigilância e daqui a uns trinta sois, como tu dizes, serás apresentado ao Grande Conselho, para seres considerado membro de pleno direito. 

Até lá, além de aprenderes, vais estar por perto de mim e serás instrutor de um grupo de detecção, defesa e alerta, da nossa zona. Disseste-me que tiveste muitas experiências de voo, com risco da própria vida. Pois é isso que vais ensinar. Eu próprio serei aluno desse grupo especial que vai aprender voo contigo. 

Que me dizes, estás preparado para nos ensinares o que sabes?

Estou à Vossa disposição e espero poder ser útil aos meus companheiros. Não esquecerei a honra que me é dada, ao fazer parte do grupo de treino de voo. 

Queria pedir que destacasse um dos piscos mais antigos e mais capazes para me ensinar a língua e a forma de viver na Vossa sociedade, que, de futuro, será, também a minha e não quero falhar, em nada.

Concordo com o que propõe e espero vir a ser um dos melhores, pois tenho vontade, sei o que custa a vida e vou trabalhar com afinco. Foi convincente no que acabou de dizer-me. Fico ansioso por começar e aguardo ordens.

E com breves palavas, como era seu hábito, o Melro Augusto, rematou: Bem-vindo à passarada do Vale da Ribeira da Serra. Agora vai, que o teu tutor espera-te. E tem uma surpresa para ti.

Quando chegou junto do melro Anacleto viu-o rodeado por uns quinze ou vinte piscos que foram chamados para um primeiro contacto com o pisco Nicolau e receberem algumas tarefas de ajuda a este novo companheiro. 

Um ficou encarregado de lhe ensinar a língua, outro de lhe explicar as regras de segurança, outro de o acompanhar para traduzir os ensinamentos do tutor Anacleto e mais dois que o ensinariam a procurar alimentos e a banhar-se na ribeira. Tinha ainda um pisco mais velho, de nome Gregório, que nos últimos anos não fora à sua terra, por ter dificuldade em aguentar a viagem, que seria o seu conselheiro e nunca se afastaria muito dele.

Ao terceiro dia depois da chegada, cada vez com o tempo mais frio, teve início a primeira sessão de treino de voo. Foram colocados obstáculos fixos e móveis no canal de voo e cada instruendo, voando à máxima velocidade que pudesse teria de contornar os obstáculos e fazer imediatamente flexão para um dos lado e embrenhar-se em abrigos que não conhecia, pois tinham sido colocados mesmo antes dos treinos.

O melro Anacleto, traduzindo o que proclamou o pisco Nicolau, disse: Os nossos treinos serão reais, os obstáculos podem surgir a qualquer momento e em qualquer parte do campo de voo e depois de cada obstáculo irá, mais tarde, ser colocado um predador. 

Primeiro vamos aperfeiçoar o voo e as manobras de diversão e procura dos abrigos após os obstáculos, depois virão os inimigos. 

Imaginem que em pleno voo vêem um milhafre picando sobre vós; ou são capazes de lhe fugir, fintando-o no último instante, ou morrem. 

Aqui, em princípio ninguém morrerá, mas pode aleijar-se e para isso teremos protecção de colegas especializados que irão receber treino especial. 

O segredo, meus amigos está na atenção máxima, na força que o treino vai dar-lhes e numa coisa que se chama instinto de conservação da vida. O nosso trabalho irá aperfeiçoar essas três capacidades. 

Daqui a sessenta sois, ou dias como cá se diz, teremos umas dezenas de especialistas nestas artes de voo e defesa preparados para interceptar qualquer intruso que penetre no nosso espaço com intenções agressivas. 

Para esses teremos defesa e os nossos irmãos sentir-se-ão protegidos.

O nosso Chefe máximo, aqui presente, dá-nos a honra de fazer parte do primeiro grupo de especialistas a formar na comunidade. 

Os restantes elementos começarão a ser seleccionados amanhã, entre os voluntários que se inscreverem. Este grupo especial terá apenas voluntários e, em qualquer altura cada especialista é livre de pedir dispensa das suas funções. 

Como calculam este grupo e os outros idênticos que se formarem, terão os seus chefes, mas dependerão directamente do nosso Coordenador-Geral que aplicará a disciplina. 

A única coisa que se pede aos especialistas é o cumprimento rigoroso e absoluto das ordens dos chefes, o aperfeiçoamento constante das suas capacidades e o desempenho das missões que lhe forem distribuídas. 

Os especialistas ficarão dispensados de quaisquer outras tarefas, ou serviços comunitários, pois estarão sempre em alerta e prontidão total, mesmo quando em repouso de operações executadas. E, peço autorização, para terminar, por hoje, esta primeira sessão. 

Recomeçamos amanhã ao nascer do sol, preparando o local de instrução e treino, onde os auxiliares, escolhidos pelo melro Anacleto, se apresentarão. Peço ao melro Augusto que encerre os trabalhos. 

No dia seguinte, lá estava o melro Anacleto, com largas dezenas de pássaros de todos os tamanhos e tipos, para que fossem estipulados os trabalhos de definição dos campos de treino e preparação, marcadas as árvores limite, espalhados os sinais de direcção de voo, colocados os locais de protecção em caso de acidentes e muitos outros pormenores que encantaram o melro Augusto, pois tudo era previsto e à partida nada podia falhar. 

Depois o pisco Nicolau pediu autorização para começar a selecionar os primeiros instruendos, uma vez que logo que estivessem reunidos os primeiros quatro grupos de seis unidades, seriam iniciados os trabalhos.

Com todos os presentes em silêncio foram ditas as regras aos futuros especialistas: idade entre os dois e os sete anos, inspecção ao corpo, especialmente asas e pernas e aspecto geral, bem como visão e audição. 

Todos os instruendos seriam voluntários e cumpririam sem reservas, mesmo com risco da própria vida todas as ordens dos chefes. 

Depois, na presença do melro Augusto, começaram a ser interrogados, pelo pisco Nicolau, um por um, todos os presentes: queres ser especialista? 

Os que respondiam afirmativamente, passavam para a direita do instrutor; os que respondiam negativamente voltavam para o seu lugar. Depois de ouvidos todos os presentes, tinham aceite a aposta, quinze candidatos que, nessa tarde foram inspecionados, sendo aceites onze. 

Juntando o melro Augusto, estavam formados os dois primeiros grupos de seis elementos. Nos dias seguintes iriam a outros locais fazer a selecção dos restantes doze candidatos, mas no dia seguinte ao romper do sol iniciava-se a instrução que duraria sete semanas.

Finda a instrução teve lugar, na presença de muitos convidados, um festival de exibição e demonstração dos grupos de defesa da Ribeira. 

Todos os instruendos ficaram aprovados e receberam distintivos. 

Depois do festival a vida voltou ao normal e graças à vigilância e intervenção dos grupos de defesa, passou-se uma época em que nenhum pássaro sofreu acidentes ou foi ferido pelos predadores e percalços que eram vulgares.