domingo, 29 de junho de 2014

S. Barnabé


O Ti’Cavaco saía, alta madrugada, montado no macho, estrada de Almodôvar a baixo e, antes de entrar na vila, desviava à direita, embrenhando-se nos contrafortes da Serra do Caldeirão, à procura de mel, aguardente de medronho e o mais que aparecesse.

Passava entre as barragens de Monte dos Clérigos e Boavista, até às nascentes do rio Mira, do Arade e da Ribeira de Choupana, que também ali começam.

Entre as aldeias de Cansados e Felizes, circundava, pelo norte, as alturas da serra, onde está o talefe dos 577 metros, e tomava o caminho para S. Barnabé, onde chegava por volta do meio-dia.

Ia direito a casa do Ti’Chico da Azenha, em procura da melhor medronheira que alguma vez lhe passou pelo estreito. 

Com ele havia de ganhar uns bons dinheiros, mas o que mais lhe interessava era ter o melhor para dispensar aos clientes e amigos especiais. 

Passados quase quarenta anos tenho ainda, na minha casa, umas duas garrafas desse néctar, adquirido a cinco mil réis o litro, ou vinte e dois escudos e cinquenta centavos os cinco litros. 

Continua, ao fim de todos estes anos, um medronho divinal.

O Ti’Chico colhia o medronho, quando já pendia, muito bem maduro. 

Tinha duas talhas de uns dez almudes cada, onde preparava as infusões. 

A água era cuidadosamente apanhada, de manhã cedo, numa mina distante de tudo e certamente conhecida de muito poucos. 

As raízes das torgas, arrancadas no fim do inverno e secas, à sombra, nos cómodos da burra, eram o combustível ideal para manter constante o calor que aquecia a caldeira do velho alambique de cobre.

O engenho, era formado, além da caldeira, calafetada em pedras e cal, sobre uma fornalha com acesso por uma pequena porta, onde ardia a fogueira que fazia ferver a infusão. 

Do capelo saía o cano, em serpentina, que mergulhado no banho cheio de água fria, condensava os vapores, transformando-os na aguardente de medronho que caía para um cântaro, de barro, de uns vinte litros. 

Cada caldeira dava uns dois cântaros, da boa, e mais um, da mais fraca.

O Ti´Chico descrevia, com detalhe, a forma de trabalhar, mas… os segredos da colheita dos frutos, a recolha da água, o tempo de infusão, a apanha e tratamento das cepas das torgas e a temperatura a que pertencia guardar o néctar de príncipes e reis, como lhe chamava, só uma vez seriam revelados – cada pai passava o segredo ao filho mais velho, com a entrega de um tubo de cana grossa, fechado com uma rolha de cortiça e selado com sangue.

Contava o velhote: 

Um dia, há centos de anos, andando à caça, pelos altos da Serra, o Senhor Rei D. Duarte – aquele que tinha um irmão para lá de Lagos – matou um enorme javali e, tão contente ficou e viu os criados, que decretou que aquele lugar se passasse a chamar Felizes. 

E ainda assim se chama a aldeia.

Levada, por caminhos difíceis, a imponente presa, de tão pesada que era, deixava exaustos todos os serviçais, cujo chefe pediu uma pausa a sua majestade. 

O senhor D. Duarte autorizou a paragem e ordenou que ao local se passasse a chamar Cansados.

Seguindo dali, por um dos mais belos vales do Caldeirão, deu a comitiva com uma azenha, onde apenas vivia um velho moleiro ermitão que, ao ver tão importante figura, lhe ofereceu uma pichorra de medronheira, preparada por ele próprio e acabada de fazer.

El-Rei D. Duarte, sentado ali, naquele banquinho de azinho, encostado ao alambique, aproveitou o calorzinho das brasas de Torga e provou a nossa medronheira, que nunca mais deixou que faltasse nas festas da sua corte.

A esta azenha chamou o meu tetra … não sei quantos … avô, engenho d’El Rei, nome que nunca perdeu.

O santo do dia era Barnabé e, também, esse o nome do meu antepassado que recebeu Sua Majestade, que, ali mesmo, mandou que o lugar se chamasse, para sempre, S. Barnabé.

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