quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

O Ti’Carloto


Sempre presente, atrás do balcão da pequena tasca, com um reservado onde se comia uma bucha e, nos fundos, uma mercearia, o Ti’Carloto, tinha uma postura inconfundível. 

De falas mansas, com o sotaque maçanico mais timbrado que guardamos na memória, atrás da sua barriga imponente, ouvia muito atentamente e falava com suavidade.

A mulher, ti’Perpétua, surda que nem um penedo, estava sempre à coca, desconfiando que lhe bebessem algum copo sem pagar, ou comessem alguma coisa, à socapa. E o ti’Carloto, puxava por ela!...

Ali, paredes-meias com a igreja da Misericórdia, estava a recato das vistas dos transeuntes, por uma porta “tipo Texas”. 

Fechava cedo e, depois de fechar, sempre vi o ti’Carloto, fora da loja, sentado num banco.

Aos domingos, encontravam-se lá na tasca, os pais dos garotos que frequentavam o colégio e estavam aboletados em casas da vila. 

Reuniam-se, ali, com uma dupla finalidade: comer a bucha que levavam, acompanhada de uma “preta” ou “uma metade com gasosa”e pagar os avios de mercearia que as hospedeiras dos filhos tinham levado, a crédito.

Recordo mais de uma dezena de pais de colegas meus que acabaram por se conhecer uns aos outros, nestas andanças da vida.

E, como era delicioso ouvi-los!... 

Alunos que poucas notas positivas terão tirado, eram barras; outros, que não eram maus alunos, nem referidos eram. 

Meu pai sempre se orgulhou dos filhos, mas não se excedia em elogios. Era, até nisso, um homem ponderado e sensato. Direi mesmo, um homem inteligente.

O ti’Carloto, bem informado sobre os seus “fregueses”, entrava, às vezes, nas conversas e lá ia pondo água na fervura quando alguém, assim mais no fim do “repasto”, se exaltava por não ver elogiado o seu filho. Olhava para mim, sorria, piscava-me o olho, em ar de intimidade, e seguia em frente…

Bem, Ti’Amorim, esta semana a Mari’Bela não se alargou: temos aqui só três mil réis. As personagens eram meu pai e a dona da casa, em que eu estava, à entrada da rua de S. Pedro, quase ao lado da torre do relógio, lá junto da Praça.

Para aligeirar, um ou outro, mais bem disposto, lá adiantava alguma pachouvada, como dizia o Ti’Carloto, quando entrava nas suas histórias. 

Foi assim que ouvi, pela primeira vez, e ainda hoje sorrio, o célebre episódio que lhe é atribuído. 

E, verdadeiro ou fictício, convenhamos que assenta nas figuras e personalidades do Ti’Carloto e da Ti’Perpétua, que nem sopa no mel.

Então lá vai, atirou o Joaquim Moleiro: Ó Ti’Carloto, sempre é verdade que um dia destes foi à loja pensar a burra e, às tantas, gritava para a sua mulher que chegasse depressa uma luz, pois a burra dera um coice e ainda não sabia se tinha acertado em si, ou na parede?!...

Mas santo homem de Deus, tão certo como estares a ver-me!...

O dianho da bicha desatou aos coices e eu, consegui segurá-la pelo pescoço.

Eram coices que ferviam e eu, de facto, já nem sabia se acertavam em mim, se na parede.

Gritei para a mulher, claro!... Mas ela nem assim ouvia, mouca como é!...

Esta e outras histórias contava-me o Ti’Carloto quando, depois do jantar, passava lá pela loja para comprar três tostões de castanhas, de amendoins, ou de bolachas Maria.

Dentro destes valores o meu pai autorizava a venda para pôr no role, desde que as notas fossem boas – e, felizmente, por esse motivo, nunca deixei de poder comprar as gulodices –.

Como nos entendíamos!...

Não é verdade, Ti’Carloto?!... 

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