Cemitério dos Portugueses em França
O Ti’Severino “Batalha”, andava na casa dos setenta anos – idade que naqueles meados do século XX era considerada bastante avançada – e demorava mais de uma hora para chegar da taberna do Ti’Zé Maia, na Bica, ao Pito de Horta, onde tinha morada numa velha casa.
Seco de carnes e muito inclinado para a frente devido à curvatura da coluna vertebral, tinha estatura abaixo de meã e mantendo ainda um olhar vivo, era surdo que nem um penedo.
Para uns era o “Batalha” e, para outros, o “Mouco da França”.
Nunca se sabia como teria acordado, pois alternava dias de profunda prostração e pasmaceira com outros em que se metia com tudo e com todos, blasfemando e praguejando, numa linguagem muitas vezes imprópria e agressiva.
Todos lhe desculpavam os excessos, pois diziam que o homem não voltara bem da guerra e os gases lhe tinham dado cabo da cabeça e acabara por perder o tino em muitas ocasiões.
Estivera ausente da aldeia quase cinquenta anos, desde que assentou praça em Abrantes até que regressado de França, onde ficou depois da guerra, primeiro a tratar-se de uma enfermidade indeterminada contraída em campanha e depois como zelador de um cemitério de portugueses, onde em conjunto com outros ex-militares, trabalhou até aos sessenta e muitos anos em que atingiu a idade de reforma.
Chegou um dia à aldeia, acompanhado por quatro malas e uma senhora que disse ser a sua madame e passou a morar na casa que comprou, lá nos fundos da terra.
Semeava um quintalito junto do ribeiro e passava a maior parte do tempo sentado, com a cabeça entre as mãos, os cotovelos sobre os joelhos, dormitando ou falando sozinho.
E desde que a madame morreu tornou-se ainda mais solitário.
Todos acabaram por convencer-se que o homem não estava bem: uma de cada duas ou três palavras que dizia, era “guerra”.
Conhecia todas as pessoas mais velhas – do seu tempo – e, ora mantinha uma conversa direitinha com quem o interpelava, ora se mostrava completamente alheio a tudo e entrava em excitação, com sinais de sofrimento, pelo que as pessoas evitavam prosseguir na conversação e acabavam por deixá-lo em paz.
Dos tempos de França pouco dizia e muitas coisas foram conhecidas através de um camarada da Serra que com ele foi zelador do cemitério e o visitara algumas vezes depois de ter também regressado às origens.
Tinha, afinal, dois filhos, que não terá tido muita dificuldade em deixar, quando regressou à Queixoperra acompanhado da madame e dos haveres que transportou.
Vinha procurar paz, mas estava, permanentemente, a pronunciar a palavra guerra, que repetia até à exaustão.
Ao longo da Azinhaga da Bica, no Casal, à porta do Ti’Adriano Pereira, no Ribeiro da Bica e na vizinhança lá no Ougueiro, não havia cão nem gato que tivesse sossego, quando passava o velho “Batalha”.
Revivia cenas das trincheiras, blasfemava contra os “boshes”, tapava os olhos e os ouvidos e gritava para que se deitassem no chão.
Depois, caía em si e entrava na maior quietude deste mundo e sentava-se até que outra fúria o tirasse do sério.
De vez em quando monologava, descrevendo cenas nas trincheiras, ataques e cargas de baioneta, bombardeamento, socorro de feridos em pleno lamaçal das valas de defesa e acabava gritando e tremendo, transido de medo, com a cabeça entre as mãos e os cotovelos sobre os joelhos.
Metia dó o pobre homem, que, naquelas alturas, mais parecia uma fera acossada. Parecia acometido por ataques de pavor.
Às vezes, apertava, contra o peito, uma fotografia metida num caixilho, e chorava…
Viam-se os destroços de viaturas e equipamentos, após um bombardeamento, no meio de lama e um soldado, de capacete e farda toda enlameada, sentado no chão, triste e só.
Estava sozinho.
Quem o viu a olhar para aquela fotografia diz que nunca imaginou alguém tão abandonado, tão desiludido e tão derrotado como o homem ali retratado.
Afinal, a foto, segundo informação do João da Serra que soube do que se passou, foi tirada após um bombardeamento inimigo, em que o soldado Severino Mendes, com desprezo pela própria vida, socorreu e roubou à morte mais de meia dúzia de camaradas que, isolados na trincheira, estavam a ser alvo descoberto das rajadas inimigas.
De rastos na lama, o Severino arrastou os camaradas feridos para local abrigado e usando a arma de um ferido, atingiu mortalmente o inimigo que alvejava as seus camaradas e os outros do grupo acabaram por pôr-se em fuga, retirando para as linhas mais recuadas do inimigo.
Por este acto de coragem, abnegação e desprezo pela vida, foi o Severino louvado e condecorado com a Cruz de Guerra de 3ª classe. E, depois de socorrido e tratados os ferimentos foi-lhe concedido o lugar de zelador no cemitério dos portugueses de que foi reformado pouco antes de voltar para a terra natal, na companhia da mulher.
Da surdez em elevado grau nunca mais se livrou e por isso, quando lhe perguntavam alguma coisa, respondia mais de acordo com o seu pensamento de ocasião do que consoante as perguntas que lhe faziam e não ouvia.
Depois, viúvo da madame que uma apoplexia lhe levou por volta dos sessenta anos, tudo se complicou.
Sem saber ler nem escrever e com o mundo sempre ausente, ia-se apagando aos poucos o seu fio de vida.
Os gases que nunca foram motivo de faltas ao trabalho começaram a provocar carências respiratórias e perdas muito acentuadas de memória, sobretudo recente, pois ainda ia buscar cenas dos tempos em que, de aldeia em aldeia, acompanhava os pais, caldeireiros, nos trabalhos que iam aparecendo.
Nascido, em 1894, nuns casebres no Pedrógão, não longe da estrada Penhascoso-Mouriscas, cedo acompanhou os pais, nas andanças de terra em terra, como latoeiros e caldeireiros, quer consertando tachos e panelas, quer gateando e soldando, ou compondo guarda-chuvas com varetas avariadas ou partidas.
Aos treze ou catorze anos era um zagalote desenvolto e bastante trabalhador. Assentou arraiais na Queixoperra, em casa do Tio Jerónimo Barreirinha, um dos homens mais abastados da terra, senhor de duas juntas de bois e da maior parte das terras da Lameira Cimeira e parte do Pedrógão que repartia com os Lourinhos.
Quando no início dos anos 50 estive um ano em casa dos meus avós paternos para fazer a 2ª classe – o Posto Escolar da Serra esteve fechado naquele ano, por falta de frequência-, o Ti’Severino andaria nos sessenta e muitos anos e era um dos homens mais velhos da terra.
Ouvi muitas histórias a respeito dele e recordo, perfeitamente que era mouco de todo e tinha muito pouca paciência para aturar a garotada.
Dizia-se que tinha uma boa reforma dos franceses e quando estava mais lúcido falava de Deus e do céu, lembrando que as coisas boas e más vêm todas lá de cima e qualquer um tem de estar sempre preparado para o que der e vier.
Depois da morte da madame o estado do velho Severino foi-se agravando, começou a beber sozinho, dizia que para esquecer. E repetia, vezes sem fim: Para esquecer!... Para esquecer!... Para esquecer!...
Depois perguntava pela madame, repetidamente e voltava a ladainha: Os céus da França não prestam! As águas também não! E chove de mais!…
Segundo diziam os mais velhos, só uma vez o Ti’Severino se referiu a um conterrâneo que ficou lá na França, depois de ter estado com ele nas trincheiras.
Mal se lembrava disso começava logo o monólogo: Eu sei onde ele está! Nunca deixei acabar as flores na campa dele e nunca deixei que as ervas ruins lhe comecem o chorume. Nunca! Nunca! Nunca!...
Passados uns anos, num fim de semana em que meu pai foi a Mação visitar-me e levar as provisões, disse-me:
Lembras-te do Ti’Severino, da Queixoperra? Aquele que morava lá no Pito de Horta e parece que foi colega do “francês” da Serra, na guerra, na França?
Sim, lembro-me bem, chamávamos-lhe “Batalha”. Porquê pai?
Foi enterrado ontem. E numa mala que tinha debaixo da cama foi encontrada uma medalha da guerra e uma caixa com bastantes notas de dinheiro francês e português. Parece que está ali bastante dinheiro e não se sabe, ao certo, quem são os herdeiros dele, pois há mais de dez anos que não se sabe nada sobre família ou herdeiros.
Se calhar é mais uma herança para a Misericórdia!?...
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