O fidalgo da Torre era senhor das terras de umas duas léguas à roda do Tejo – nateiros e olivais, que se estendiam a perder de vista –, na margem direita.
No lado de lá, já no Alentejo Alto, tinha herdades maiores que muitos concelhos e, se bem que a maior parte das terras fossem de pouca funda, só nos baixos e terras de regadio, alimentavam-se centenas de cabeças de gado.
Mas a cortiça – tirava, todos os anos, para cima de mil arrobas –, era a sua maior riqueza.
Na Torre tinha o solar, umas jeiras de terras boas e o lagar de azeite que, em cada safra, trabalhava, só na azeitona da casa, para cima de dois meses e meio.
Uma bela ocasião – como contava o meu avô – o senhor Lavrador comprou um casal, no termo de Belver, e, a pedido do vendedor, a escritura foi marcada no Tabelião de Mação.
O senhor Lavrador não tinha muito hábito de frequentar aquela vila, mas avisou o feitor que tal dia, ao romper da manhã, tivesse o seu cavalo pensado e aparelhado e que ele e mais dois homens, de confiança, armados, estivessem prontos para o acompanharem.
Adiantou, com a menção de segredo, que iria fazer uma escritura e levaria, consigo, bastante dinheiro.
Na hora e dia marcados, estava tudo pronto e, depois de uma bucha, oferecida pelo senhor Lavrador, montaram e seguiram para a vila.
Um dos homens na frente, atrás o senhor Lavrador e o feitor e a fechar a coluna, o outro homem.
O fidalgo era homem simples, gostava de andar sem ser reconhecido – no que tinha certas dificuldades – e gostava muito de ouvir, e contar, chalaças.
No caminho, sem perderem o sentido da guarda, Lavrador e feitor, foram quase sempre de prosa.
Chegados à vila, os dois homens tomaram as rédeas das montadas do Lavrador e do feitor e quedaram-se ali pela taberna, aguardando que os senhores voltassem.
Ao certo não sabiam aonde iam nem quanto tempo demorariam. Beberiam uns copos e esperariam…
Na frente o senhor Lavrador, com calças e jaqueta, alentejanas, capote sobre os ombros e, na mão, uma bolsa de trapos, cujo cordão enfiara no braço.
Atrás dele, com indumentária idêntica, seguia o feitor que tomou a dianteira, ao entrar na sala, e, dirigindo-se à secretária, pediu para avisar que vinham para uma escritura, marcada para as nove horas.
Depois fez menção de se sentar numa cadeira que estava ao canto da sala, ao lado de outra já ocupada pelo senhor Lavrador.
A senhora, com ar de poucos amigos, num tom de comandante de qualquer coisa; tudo, menos pessoa correcta e educada – na expressão do meu avô –, disse, apontando o dedo ao fidalgo:
Eh! Você aí, levante-se lá, que essas cadeiras são para os senhores que hão-de vir – testemunhas e acompanhantes ficam de pé. Ou será que já está cansado, logo pela manhã!?
O Tabelião, esquecera-se de avisar quem eram os intervenientes no negócio, apesar de conhecer o fidalgo, que, aliás, cumprimentou, respeitosamente, ao chegar ao cartório e convidou a entrar, de imediato, para a sala das escrituras.
No interior, a secretária foi puxar um cadeirão e com a cerimónia que seria difícil adivinhar-lhe, momentos antes, na sala de espera, convidou o senhor fidalgo a sentar-se.
Porém, perfilado ao lado do cadeirão, o senhor D. Jorge de Meneses de Sá e Boaventura Falcão, pegou, com cuidado, na bolsa e, pondo-a no assento, disse:
- Senta-te aí, senhor dinheiro!... E manteve-se de pé.
A secretária, mais encarnada que uma romã madura, ia a pedir desculpa, quando o senhor Lavrador, dirigindo-se ao Tabelião, pediu que se começasse, de imediato, a função.
Podiam estar para chegar alguns senhores, que não deveriam fazer esperar, acrescentou, ironicamente.
Finda a escritura, o senhor Lavrador e, no acto, comprador, pegou na bolsa e abrindo-a, tirou as centenas de notas suficientes para fazer o pagamento da escritura de maior valor alguma vez realizada, até então, por aquele Tabelião.
Assinados todos os papéis e feitas as despedidas o senhor Lavrador cumprimentou e saiu, seguido do feitor.
Tabelião e secretária, olharam-se e, assumindo o erro, perceberam a lição: as pessoas passaram a sentar-se, na sala de espera, pela ordem de chegada.
Moral da história, como, sempre dizia o meu avô, a fechar:
O saber, a educação e o respeito, não ocupam lugar!
Tanto podem esconder-se atrás dum capote alentejano, como numa simples bolsa de pano!