quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

O “senhor” dinheiro


O fidalgo da Torre era senhor das terras de umas duas léguas à roda do Tejo – nateiros e olivais, que se estendiam a perder de vista –, na margem direita. 

No lado de lá, já no Alentejo Alto, tinha herdades maiores que muitos concelhos e, se bem que a maior parte das terras fossem de pouca funda, só nos baixos e terras de regadio, alimentavam-se centenas de cabeças de gado. 

Mas a cortiça – tirava, todos os anos, para cima de mil arrobas –, era a sua maior riqueza.

Na Torre tinha o solar, umas jeiras de terras boas e o lagar de azeite que, em cada safra, trabalhava, só na azeitona da casa, para cima de dois meses e meio.

Uma bela ocasião – como contava o meu avô – o senhor Lavrador comprou um casal, no termo de Belver, e, a pedido do vendedor, a escritura foi marcada no Tabelião de Mação.

O senhor Lavrador não tinha muito hábito de frequentar aquela vila, mas avisou o feitor que tal dia, ao romper da manhã, tivesse o seu cavalo pensado e aparelhado e que ele e mais dois homens, de confiança, armados, estivessem prontos para o acompanharem. 

Adiantou, com a menção de segredo, que iria fazer uma escritura e levaria, consigo, bastante dinheiro.

Na hora e dia marcados, estava tudo pronto e, depois de uma bucha, oferecida pelo senhor Lavrador, montaram e seguiram para a vila. 

Um dos homens na frente, atrás o senhor Lavrador e o feitor e a fechar a coluna, o outro homem.

O fidalgo era homem simples, gostava de andar sem ser reconhecido – no que tinha certas dificuldades – e gostava muito de ouvir, e contar, chalaças. 

No caminho, sem perderem o sentido da guarda, Lavrador e feitor, foram quase sempre de prosa.

Chegados à vila, os dois homens tomaram as rédeas das montadas do Lavrador e do feitor e quedaram-se ali pela taberna, aguardando que os senhores voltassem. 

Ao certo não sabiam aonde iam nem quanto tempo demorariam. Beberiam uns copos e esperariam…

Na frente o senhor Lavrador, com calças e jaqueta, alentejanas, capote sobre os ombros e, na mão, uma bolsa de trapos, cujo cordão enfiara no braço. 

Atrás dele, com indumentária idêntica, seguia o feitor que tomou a dianteira, ao entrar na sala, e, dirigindo-se à secretária, pediu para avisar que vinham para uma escritura, marcada para as nove horas. 

Depois fez menção de se sentar numa cadeira que estava ao canto da sala, ao lado de outra já ocupada pelo senhor Lavrador.

A senhora, com ar de poucos amigos, num tom de comandante de qualquer coisa; tudo, menos pessoa correcta e educada – na expressão do meu avô –, disse, apontando o dedo ao fidalgo:

Eh! Você aí, levante-se lá, que essas cadeiras são para os senhores que hão-de vir – testemunhas e acompanhantes ficam de pé. Ou será que já está cansado, logo pela manhã!?

O Tabelião, esquecera-se de avisar quem eram os intervenientes no negócio, apesar de conhecer o fidalgo, que, aliás, cumprimentou, respeitosamente, ao chegar ao cartório e convidou a entrar, de imediato, para a sala das escrituras.

No interior, a secretária foi puxar um cadeirão e com a cerimónia que seria difícil adivinhar-lhe, momentos antes, na sala de espera, convidou o senhor fidalgo a sentar-se. 

Porém, perfilado ao lado do cadeirão, o senhor D. Jorge de Meneses de Sá e Boaventura Falcão, pegou, com cuidado, na bolsa e, pondo-a no assento, disse:

- Senta-te aí, senhor dinheiro!... E manteve-se de pé.

A secretária, mais encarnada que uma romã madura, ia a pedir desculpa, quando o senhor Lavrador, dirigindo-se ao Tabelião, pediu que se começasse, de imediato, a função. 

Podiam estar para chegar alguns senhores, que não deveriam fazer esperar, acrescentou, ironicamente.

Finda a escritura, o senhor Lavrador e, no acto, comprador, pegou na bolsa e abrindo-a, tirou as centenas de notas suficientes para fazer o pagamento da escritura de maior valor alguma vez realizada, até então, por aquele Tabelião. 

Assinados todos os papéis e feitas as despedidas o senhor Lavrador cumprimentou e saiu, seguido do feitor.

Tabelião e secretária, olharam-se e, assumindo o erro, perceberam a lição: as pessoas passaram a sentar-se, na sala de espera, pela ordem de chegada.

Moral da história, como, sempre dizia o meu avô, a fechar: 

O saber, a educação e o respeito, não ocupam lugar! 

Tanto podem esconder-se atrás dum capote alentejano, como numa simples bolsa de pano!

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Os camelos do Sheik


 Nos dias de hoje, grande parte da riqueza do mundo pertence aos sheiks e outros chefes das regiões onde se explora o petróleo, nomeadamente dos árabes. 

Daí que poucas dezenas controlem fortunas de biliões de dólares, materializadas em contas bancárias, cadeias de hotéis de luxo, palácios, ilhas artificiais, frotas de carros “topos de gamas” e até exércitos. 

E essas fortunas aumentam, em progressão geométrica, a ritmo incontrolado, estendendo-se a poderes, até agora insuspeitos e estruturas inimagináveis, da ciência à política, com ramificações em todo o mundo.

Porém, nem sempre assim foi. 

No tempo em que se situa a nossa história, a riqueza dos sheiks era calculada pelo número de camelos das suas cáfilas (manadas de camelos), pelas mulheres que decoravam os palácios e haréns e até pelo número de palmeiras, ou arrobas de tâmaras que colhiam, ou recebiam, dos contributos dos seus súbditos.

Um desses sheiks, de nome Mohammed Saud-Bin, habitava num palácio da Arábia, perto das margens do mar Vermelho. Tinha ao seu serviço uma meia dúzia de sábios: médicos, astrónomos, magos, físicos e matemáticos, entre outros menos cultos, como operários de construção e pessoal de defesa. Acima de todos estes estavam os encarregados das rezas e dos ritos diários e serviços das mesquitas. 

No polo oposto - os de mais baixa condição - estavam os guardas, entre os quais os eunucos, que guardavam as concubinas dos haréns. A guarda pessoal do sheik chegava a ser um autêntico exército.

Ao sentir-se envelhecer, o sheik foi tomando as suas precauções e mandou que os cientistas que sempre o acompanhavam e serviam, começassem a registar as suas vontades, relativas às suas diversas comunidades, para que, por sua morte, não restassem quaisquer dúvidas. 

Naquele palácio e região dependente, o sheik tinha três filhos homens e sete filhas mulheres. 

Como era hábito e segundo os preceitos religiosos, a maior parte dos seus bens seriam para o filho herdeiro – o mais velho -, ficando duas partes menores para os mais novos homens. As filhas seriam entregues à guarda do filho mais velho.

A cáfila do palácio tinha dezassete camelos que, segundo a vontade do sheik seriam distribuídos pelos três irmãos, na proporção seguinte: metade para o mais velho, um terço para o do meio e um nono para o mais novo. 

Não poderiam ser comprados ou vendidos camelos, pois pela crença do sheik no palácio teria que haver sempre aquele número de camelos – 17 -.

Ao tomar conhecimento das vontades do sheik, o matemático começou a resolver a partilha para que na altura própria tudo estivesse preparado. 

A maior parte dos bens não levantava quaisquer problemas, mas quando chegou à cáfila é que se pôs um problema insuperável: como havia de se dar metade de dezassete camelos? E um terço? E um nono? E com a vontade do sheik que impedia a compra ou venda de camelos e exigia que a partilha fosse rigorosa não prejudicando nem beneficiando ninguém. 

Passado algum tempo o sheik foi chamando, um por um, todos os seus cientistas, para se inteirar da forma como pensavam dividir os seus bens quando um dia faltasse. 

Todos iam enumerando as decisões e o sheik ia aprovando, até que ao chegar ao matemático não obteve qualquer resposta positiva: ainda não tinha encontrado maneira de dividir a cáfila segundo a vontade do senhor.

Pois dou-te mais dezassete dias para resolver o problema. Depois serás demitido e castigado. Caso não tragas a resposta, será feita a pergunta em todo o território e quem trouxer a resposta tomará o teu lugar e os teus bens.

O tempo foi passando e ao fim dos dezassete dias dados pelo sheik, o sábio matemático reconheceu a sua incapacidade de fazer a divisão dos camelos da cáfila. 

Foi imediatamente suspenso das suas funções e, por ordem do sheik, foram publicados avisos, em todo o território, sobre a forma a aplicar para distribuir os camelos pelos três filhos do sheik:

- “No prazo máximo de dezassete dias, qualquer cidadão poderá apresentar uma resolução para dividir os 17 camelos da cáfila pelos três filhos, dando metade ao mais velho, um terço ao do meio e um nono ao mais novo. O prémio pela resolução do problema será muito generoso.”

Não faltaram respostas com partidas de camelos ao meio, com compras de camelos ou vendas, etc.. Mas ninguém tinha apresentado uma solução, até que ao 17º dia, um cameleiro se apresentou na entrada do palácio, para apresentar a resolução do problema, respeitando todas as vontades do sheik.

Levado à presença do sábio de matemática e outros colegas, o cameleiro pediu que o levassem junta da cáfila. 

Ali chegado, mandou prender o seu camelo, no fim dos 17 do sheik, após o que começou a fazer a divisão, sempre com a confirmação do sábio: 

Metade para o filho mais velho: 18:2=9 e pediu a confirmação ao sábio, que acenou afirmativamente com a cabeça. 

Um terço para o do meio: 18:3=6. 

E, por fim, um nono para o mais novo: 18:9=2. 

Ora somando as três partes: 9+6+2=17. Podem mostrar a todos os presentes os três grupos, para que verifiquem que está certo e considero o problema resolvido.

Mas não podem sobrar nem faltar camelos e ficou um preso, depois de retiradas as partes para os três filhos do nosso sheik, disse um dos presentes. 

Foi a vez do cameleiro, calmamente, se dirigir ao seu camelo e dizer-lhe: este é meu e cumpriu bem o seu trabalho, por hoje.

Chamado à presença do sheik, o cameleiro explicou como resolveu o problema e que o seu saber lhe vinha da vida já longa, ao serviço do Seu Senhor, que sempre serviu com lealdade. 

Perguntando-lhe o que esperava como recompensa, o cameleiro respondeu: ir dar de comer ao meu camelo que me ajudou a prestar um serviço ao meu senhor e descansar, pois a idade já não me permite grandes emoções.

Decretou o sheik: 

O cameleiro Habib Munir passa a ter morada no palácio e será elevado à dignidade de Conselheiro do Califado, fazendo parte da minha guarda pessoal. A sua família trabalhará em terras perto do palácio que lhe serão imediatamente entregues e serão retiradas ao sábio matemático, que será poupado apesar da incompetência manifestada, deixando de fazer parte do Conselho Especial do Sheik.

  

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

O Ti’Carloto


Sempre presente, atrás do balcão da pequena tasca, com um reservado onde se comia uma bucha e, nos fundos, uma mercearia, o Ti’Carloto, tinha uma postura inconfundível. 

De falas mansas, com o sotaque maçanico mais timbrado que guardamos na memória, atrás da sua barriga imponente, ouvia muito atentamente e falava com suavidade.

A mulher, ti’Perpétua, surda que nem um penedo, estava sempre à coca, desconfiando que lhe bebessem algum copo sem pagar, ou comessem alguma coisa, à socapa. E o ti’Carloto, puxava por ela!...

Ali, paredes-meias com a igreja da Misericórdia, estava a recato das vistas dos transeuntes, por uma porta “tipo Texas”. 

Fechava cedo e, depois de fechar, sempre vi o ti’Carloto, fora da loja, sentado num banco.

Aos domingos, encontravam-se lá na tasca, os pais dos garotos que frequentavam o colégio e estavam aboletados em casas da vila. 

Reuniam-se, ali, com uma dupla finalidade: comer a bucha que levavam, acompanhada de uma “preta” ou “uma metade com gasosa”e pagar os avios de mercearia que as hospedeiras dos filhos tinham levado, a crédito.

Recordo mais de uma dezena de pais de colegas meus que acabaram por se conhecer uns aos outros, nestas andanças da vida.

E, como era delicioso ouvi-los!... 

Alunos que poucas notas positivas terão tirado, eram barras; outros, que não eram maus alunos, nem referidos eram. 

Meu pai sempre se orgulhou dos filhos, mas não se excedia em elogios. Era, até nisso, um homem ponderado e sensato. Direi mesmo, um homem inteligente.

O ti’Carloto, bem informado sobre os seus “fregueses”, entrava, às vezes, nas conversas e lá ia pondo água na fervura quando alguém, assim mais no fim do “repasto”, se exaltava por não ver elogiado o seu filho. Olhava para mim, sorria, piscava-me o olho, em ar de intimidade, e seguia em frente…

Bem, Ti’Amorim, esta semana a Mari’Bela não se alargou: temos aqui só três mil réis. As personagens eram meu pai e a dona da casa, em que eu estava, à entrada da rua de S. Pedro, quase ao lado da torre do relógio, lá junto da Praça.

Para aligeirar, um ou outro, mais bem disposto, lá adiantava alguma pachouvada, como dizia o Ti’Carloto, quando entrava nas suas histórias. 

Foi assim que ouvi, pela primeira vez, e ainda hoje sorrio, o célebre episódio que lhe é atribuído. 

E, verdadeiro ou fictício, convenhamos que assenta nas figuras e personalidades do Ti’Carloto e da Ti’Perpétua, que nem sopa no mel.

Então lá vai, atirou o Joaquim Moleiro: Ó Ti’Carloto, sempre é verdade que um dia destes foi à loja pensar a burra e, às tantas, gritava para a sua mulher que chegasse depressa uma luz, pois a burra dera um coice e ainda não sabia se tinha acertado em si, ou na parede?!...

Mas santo homem de Deus, tão certo como estares a ver-me!...

O dianho da bicha desatou aos coices e eu, consegui segurá-la pelo pescoço.

Eram coices que ferviam e eu, de facto, já nem sabia se acertavam em mim, se na parede.

Gritei para a mulher, claro!... Mas ela nem assim ouvia, mouca como é!...

Esta e outras histórias contava-me o Ti’Carloto quando, depois do jantar, passava lá pela loja para comprar três tostões de castanhas, de amendoins, ou de bolachas Maria.

Dentro destes valores o meu pai autorizava a venda para pôr no role, desde que as notas fossem boas – e, felizmente, por esse motivo, nunca deixei de poder comprar as gulodices –.

Como nos entendíamos!...

Não é verdade, Ti’Carloto?!... 

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

O “Batalha”


                                                                       Cemitério dos Portugueses em França

O Ti’Severino “Batalha”, andava na casa dos setenta anos – idade que naqueles meados do século XX era considerada bastante avançada – e demorava mais de uma hora para chegar da taberna do Ti’Zé Maia, na Bica, ao Pito de Horta, onde tinha morada numa velha casa.

Seco de carnes e muito inclinado para a frente devido à curvatura da coluna vertebral, tinha estatura abaixo de meã e mantendo ainda um olhar vivo, era surdo que nem um penedo. 

Para uns era o “Batalha” e, para outros, o “Mouco da França”.

Nunca se sabia como teria acordado, pois alternava dias de profunda prostração e pasmaceira com outros em que se metia com tudo e com todos, blasfemando e praguejando, numa linguagem muitas vezes imprópria e agressiva. 

Todos lhe desculpavam os excessos, pois diziam que o homem não voltara bem da guerra e os gases lhe tinham dado cabo da cabeça e acabara por perder o tino em muitas ocasiões.

Estivera ausente da aldeia quase cinquenta anos, desde que assentou praça em Abrantes até que regressado de França, onde ficou depois da guerra, primeiro a tratar-se de uma enfermidade indeterminada contraída em campanha e depois como zelador de um cemitério de portugueses, onde em conjunto com outros ex-militares, trabalhou até aos sessenta e muitos anos em que atingiu a idade de reforma.

Chegou um dia à aldeia, acompanhado por quatro malas e uma senhora que disse ser a sua madame e passou a morar na casa que comprou, lá nos fundos da terra. 

Semeava um quintalito junto do ribeiro e passava a maior parte do tempo sentado, com a cabeça entre as mãos, os cotovelos sobre os joelhos, dormitando ou falando sozinho. 

E desde que a madame morreu tornou-se ainda mais solitário. 

Todos acabaram por convencer-se que o homem não estava bem: uma de cada duas ou três palavras que dizia, era “guerra”.

Conhecia todas as pessoas mais velhas – do seu tempo – e, ora mantinha uma conversa direitinha com quem o interpelava, ora se mostrava completamente alheio a tudo e entrava em excitação, com sinais de sofrimento, pelo que as pessoas evitavam prosseguir na conversação e acabavam por deixá-lo em paz.

Dos tempos de França pouco dizia e muitas coisas foram conhecidas através de um camarada da Serra que com ele foi zelador do cemitério e o visitara algumas vezes depois de ter também regressado às origens. 

Tinha, afinal, dois filhos, que não terá tido muita dificuldade em deixar, quando regressou à Queixoperra acompanhado da madame e dos haveres que transportou. 

Vinha procurar paz, mas estava, permanentemente, a pronunciar a palavra guerra, que repetia até à exaustão.

Ao longo da Azinhaga da Bica, no Casal, à porta do Ti’Adriano Pereira, no Ribeiro da Bica e na vizinhança lá no Ougueiro, não havia cão nem gato que tivesse sossego, quando passava o velho “Batalha”. 

Revivia cenas das trincheiras, blasfemava contra os “boshes”, tapava os olhos e os ouvidos e gritava para que se deitassem no chão. 

Depois, caía em si e entrava na maior quietude deste mundo e sentava-se até que outra fúria o tirasse do sério.

De vez em quando monologava, descrevendo cenas nas trincheiras, ataques e cargas de baioneta, bombardeamento, socorro de feridos em pleno lamaçal das valas de defesa e acabava gritando e tremendo, transido de medo, com a cabeça entre as mãos e os cotovelos sobre os joelhos. 

Metia dó o pobre homem, que, naquelas alturas, mais parecia uma fera acossada. Parecia acometido por ataques de pavor.

Às vezes, apertava, contra o peito, uma fotografia metida num caixilho, e chorava… 

Viam-se os destroços de viaturas e equipamentos, após um bombardeamento, no meio de lama e um soldado, de capacete e farda toda enlameada, sentado no chão, triste e só. 

Estava sozinho.

Quem o viu a olhar para aquela fotografia diz que nunca imaginou alguém tão abandonado, tão desiludido e tão derrotado como o homem ali retratado.

Afinal, a foto, segundo informação do João da Serra que soube do que se passou, foi tirada após um bombardeamento inimigo, em que o soldado Severino Mendes, com desprezo pela própria vida, socorreu e roubou à morte mais de meia dúzia de camaradas que, isolados na trincheira, estavam a ser alvo descoberto das rajadas inimigas.


De rastos na lama, o Severino arrastou os camaradas feridos para local abrigado e usando a arma de um ferido, atingiu mortalmente o inimigo que alvejava as seus camaradas e os outros do grupo acabaram por pôr-se em fuga, retirando para as linhas mais recuadas do inimigo. 

Por este acto de coragem, abnegação e desprezo pela vida, foi o Severino louvado e condecorado com a Cruz de Guerra de 3ª classe. E, depois de socorrido e tratados os ferimentos foi-lhe concedido o lugar de zelador no cemitério dos portugueses de que foi reformado pouco antes de voltar para a terra natal, na companhia da mulher.

Da surdez em elevado grau nunca mais se livrou e por isso, quando lhe perguntavam alguma coisa, respondia mais de acordo com o seu pensamento de ocasião do que consoante as perguntas que lhe faziam e não ouvia.

Depois, viúvo da madame que uma apoplexia lhe levou por volta dos sessenta anos, tudo se complicou. 

Sem saber ler nem escrever e com o mundo sempre ausente, ia-se apagando aos poucos o seu fio de vida. 

Os gases que nunca foram motivo de faltas ao trabalho começaram a provocar carências respiratórias e perdas muito acentuadas de memória, sobretudo recente, pois ainda ia buscar cenas dos tempos em que, de aldeia em aldeia, acompanhava os pais, caldeireiros, nos trabalhos que iam aparecendo.

Nascido, em 1894, nuns casebres no Pedrógão, não longe da estrada Penhascoso-Mouriscas, cedo acompanhou os pais, nas andanças de terra em terra, como latoeiros e caldeireiros, quer consertando tachos e panelas, quer gateando e soldando, ou compondo guarda-chuvas com varetas avariadas ou partidas.

Aos treze ou catorze anos era um zagalote desenvolto e bastante trabalhador. Assentou arraiais na Queixoperra, em casa do Tio Jerónimo Barreirinha, um dos homens mais abastados da terra, senhor de duas juntas de bois e da maior parte das terras da Lameira Cimeira e parte do Pedrógão que repartia com os Lourinhos.

Quando no início dos anos 50 estive um ano em casa dos meus avós paternos para fazer a 2ª classe – o Posto Escolar da Serra esteve fechado naquele ano, por falta de frequência-, o Ti’Severino andaria nos sessenta e muitos anos e era um dos homens mais velhos da terra. 

Ouvi muitas histórias a respeito dele e recordo, perfeitamente que era mouco de todo e tinha muito pouca paciência para aturar a garotada.

Dizia-se que tinha uma boa reforma dos franceses e quando estava mais lúcido falava de Deus e do céu, lembrando que as coisas boas e más vêm todas lá de cima e qualquer um tem de estar sempre preparado para o que der e vier. 

Depois da morte da madame o estado do velho Severino foi-se agravando, começou a beber sozinho, dizia que para esquecer. E repetia, vezes sem fim: Para esquecer!... Para esquecer!... Para esquecer!... 

Depois perguntava pela madame, repetidamente e voltava a ladainha: Os céus da França não prestam! As águas também não! E chove de mais!…

Segundo diziam os mais velhos, só uma vez o Ti’Severino se referiu a um conterrâneo que ficou lá na França, depois de ter estado com ele nas trincheiras. 

Mal se lembrava disso começava logo o monólogo: Eu sei onde ele está! Nunca deixei acabar as flores na campa dele e nunca deixei que as ervas ruins lhe comecem o chorume. Nunca! Nunca! Nunca!...

Passados uns anos, num fim de semana em que meu pai foi a Mação visitar-me e levar as provisões, disse-me: 

Lembras-te do Ti’Severino, da Queixoperra? Aquele que morava lá no Pito de Horta e parece que foi colega do “francês” da Serra, na guerra, na França? 

Sim, lembro-me bem, chamávamos-lhe “Batalha”. Porquê pai?

Foi enterrado ontem. E numa mala que tinha debaixo da cama foi encontrada uma medalha da guerra e uma caixa com bastantes notas de dinheiro francês e português. Parece que está ali bastante dinheiro e não se sabe, ao certo, quem são os herdeiros dele, pois há mais de dez anos que não se sabe nada sobre família ou herdeiros. 

Se calhar é mais uma herança para a Misericórdia!?...

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

A sabedoria move o mundo


Sempre tive a sensação que quanto mais se ensina mais se sabe, porque o artista não trabalha para si mas para a sua arte e o ensino é uma verdadeira arte – uma das mais sublimes entre as diversas formas de arte!...

Como sabe isso? Porque sabe isso? São perguntas que incomodam, não pela dificuldade da resposta dada, ou possível; antes pelo conteúdo da pergunta. “O como e o porquê” estão implícitos na vontade, oportunidade e consequência da consulta às fontes. 

Os livros e, mais recentemente, outras formas de conhecimento, estão ao alcance de qualquer um; porém é preciso que o ensino desperte e desenvolva o querer, a criação de hábitos e o convívio sistemático com as fontes.

As oportunidades não se repetem. O seu não aproveitamento terá consequências irreversíveis e, por isso, uma das piores deficiências do ensino que se pratica nas escolas é o seu desenquadramento da realidade, da utilidade que deveria presidir ao estabelecimento dos programas e do cuidado a ter com os factores de ordem motivacional dos estudantes. Não se estuda o que não interessa e o interesse é desenvolvido e estimulado pela consequência do estudo. 

O ensino deve ter sempre uma finalidade. Deve visar a excelência.

Basear o trabalho dos alunos no armazenamento e exibição de teorias, com a finalidade de desenvolver a melhor forma de conseguir uma expressão numérica que se coadune com os valores necessários e suficientes para aceder a uma determinada Universidade, ou curso, é restringir e não expandir.

Desprezar capacidades e tendências, ignorar perfis psicológicos e suprimir objectivos de excelência é robotizar os alunos, é estimular poços de conhecimento, com muito pouca utilidade na vida prática.

O “vale-tudo” nas Escolas Superiores Oficiais ou Privadas, sem atender às reais necessidades da Sociedade, gera diplomas, de cursos sem qualquer valor na vida real, mas trabalhados nas estatísticas para angariar clientes, ou render subsídios. 

As consequências destas práticas geram os poli-diplomados e multi-competentes que afinal vão acabar empurrados para onde nunca pensaram e onde, dificilmente se sentirão realizados e, muito menos, felizes.

Se o licenciado, mestre ou doutorado, tem ou não o perfil desejado para desempenhar actividade útil ao bem comum e à Sociedade, que na maioria dos casos lhe custeou o curso, é de somenos importância, em muitos casos.

Se não, como se compreende que uma Universidade conceda um grau académico, suficiente para o desempenho duma determinada actividade e logo a seguir se exija ao detentor dessa qualificação novo exame para provar que está apto ao desempenho para que foi preparado? 

Mas como podemos condenar, ou simplesmente questionar a condição acima descrita, se vemos licenciados verdadeiramente fora de contexto, quando confrontados com a realidade. 

Para se ser jornalista é, certamente, necessário que se domine a língua portuguesa; para se atender público, num qualquer serviço, é exigível que se saiba ouvir, perguntar e corresponder às expetativas dos consulentes; para se ensinar uma qualquer matéria é elementar, entre outras coisas, que se domine a matéria. E convenhamos que não é a apresentação de diplomas roçando as notas máximas que qualificam os seus possuidores.

No desempenho profissional tudo é diferente e geram-se multidões de desadaptados, que acabam por ir parar a cargos de influência, onde, devidamente protegidos, são conservados para as necessidades estatísticas. 

E enquanto não encaminharmos as pessoas para a felicidade, enquanto não proporcionarmos meios e ferramentas para a satisfação das necessidades básicas, enquanto não considerarmos as pessoas como a maior e mais importante riqueza, não saberemos planear a Educação, não atingiremos a Cidadania responsável, nem o limiar do Desenvolvimento. 

Mas voltemos ao saber, porque é a verdadeira mola da vida. E embora não passando duma consequência – nem mais nem menos que aprender, saber, conhecer e ensinar -, tem uma importância fundamental em toda a dinâmica motivacional de qualquer Sociedade.

É muito gratificante ler uma coisa que escrevemos há algum tempo, ou que estudámos em tempo oportuno, e sentirmo-nos perante uma coisa que não reconhecemos, imediatamente, mas conhecemos. A nossa memória guarda as nossas recordações e umas vezes mais pronta, outras com maior dificuldade, acaba sempre por ir buscar o que nos é preciso.

Aqui funcionou o mecanismo do conhecimento; aprendemos em consequência duma oportunidade, registámos o conteúdo e deixámo-lo como fruto de ensino e fonte da nossa arte. O conhecimento suporta, e qualifica, a nossa actividade.

A história seguinte, com extractos de conversas com o sapateiro onde eram feitos os meus sapatos quando se aproximava uma ida a exames, ou para qualquer outro evento, é-me de grata recordação e ao longo da vida foi utilizada para documentar passagens dos cursos de formação que dirigi.

- Então e eu que passo a vida a bater a sola, para a esticar como convém, e que na minha actividade pouco falo, que não leio livros, porque não os tenho e se tivesse não saberia tratá-los, não sou um artista? Já que não ensino e por isso não pratico a arte, perco a oportunidade da vida porque não estudei e também não aprendi, o que sou eu afinal?

- É, Ti’António! O sapateiro que sabe tratar a sola, como deve ser; que prepara os componentes de um par de sapatos como ninguém; risca a sola e corta-a; desenha as gáspeas, cose os contrafortes, ajeita a língua, aplica os ilhós, estende e fixa as palmilhas e, a rematar tudo isso, dá um tratamento ao cabedal, deixando-o luzidio, macio, confortável e duradouro, é o produtor de uma obra digna de se apresentar em qualquer lado – é um artista-.

E tudo isso o que é senão arte? Então como poderia eu descrever-lhe a preparação de um par de sapatos se não tivesse aproveitado a oportunidade que me deu de aprender? Acha que o tempo que gastei a ouvi-lo não foi um verdadeiro estudo? Quando encontrarei outro mestre a fazer sapatos?

Mas não fica por aqui, Ti’António, o que penso. Se quiser ter a paciência para me ouvir mais alguns minutos, porque ainda não acabei, vai ver que não fica aqui dentro destas paredes, atrás dessa banqueta, a sua arte. Vamos lá a ver: 

Então não semeia ali o quintal? Estamos a ver ali milho, hortaliças, flores, árvores…Quem as plantou, cuidou, acarinhou? Foi só a sua mulher? Foi ela que cavou a terra, que fez os regos e as covas, que espalhou o estrume das capoeiras, que espetou as empas onde se enrolam os feijoeiros?...

E diga-me cá: uma pessoa que fez já muitas vezes todas estas coisas, não ensinou já outros a fazê-las? Não coordena e administra o trabalho dos outros mestres que trabalham consigo? 

Continua a achar que uma pessoa que não sabe ler, que por isso pensa que pouco sabe, não terá ainda outras artes que ainda não foram faladas? Então quem poda as suas árvores, quem enxerta as suas videiras, quem pesca uns bons peixinhos na ribeira, quem põe uma panela ao lume e cozinha uma refeição, se for necessário? E, por aí adiante…

Com franqueza, diga pois, Ti’António: dentro de algum tempo terá também um filho que sabe muitas coisas que os pais nunca aprenderam. Acha que será por isso mais artista que todos os outros artistas que representei nestas palavras desta nossa conversa? Não, não será!... É preciso que no que fizer seja tão bom como o senhor é nas suas actividades e a mãe dele, nas dela.

Um grande sábio, que inventa coisas extraordinárias; um médico que salva pessoas; um bombeiro que emprega toda a sua coragem; um sapateiro, um padeiro, um agricultor, não vivem se os outros artistas os não ajudarem. 

Olhe que sem sapateiros andariam descalços, sem alfaiates não teriam que vestir e sem agricultores não teriam que comer. Dependemos uns dos outros e o que devemos fazer é ajudar todos aqueles que precisam dessa ajuda.

O T’i António, o meu pai e todos os pais, que com maiores ou menores sacrifícios, mandaram os filhos para o colégio, são os verdadeiros artistas, pois dão tudo o que podem, alguns com que dificuldade, para que os filhos adquiram ferramentas que eles nunca tiveram. Também há aqueles que não quiseram fazê-lo, embora podendo. Só temos que lamentar, mas o mundo não acaba e há muitas vidas para além do colégio.

Tenha a certeza, Ti’António, que a sabedoria move o mundo!... 

Mas a sabedoria não é só dos sábios, porque os mais simples sapateiros é que lhes fazem os sapatos e os mais humildes operários é que cozem o pão que eles comem.