quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O TRUTA DO CÔA

Capítulo I

Desde que naquele fim da tarde de quarta-feira – último dia da feira de Trancoso – deram pela falta da Rosa, não mais houve sossego entre os ciganos do arraial e, muito menos, no clã dos Mendes, a que a moçoila pertencia.

As respostas à pergunta “viste a minha Rosa?”, repetida até à exaustão, de barraca em barraca, por todo o campo da feira, não foram além de negativas redondas, do “não me lembro de a ter visto”, “ainda hoje não dei por ela”.

A mãe, que pai já não havia na família, mobilizou os três filhos mais novos, recorrendo aos impropérios que encontrou e ameaçando que os rachava se voltassem sem a irmã.

Os três rapazes, cada um por seu lado, revistaram todo o acampamento, mas da irmã, cigana na casa dos vinte e cinco anos, sempre próxima da família e com porte a que não havia nada a dizer, nem sinal – não era tida nem achada e nenhuma boca se abriu, quanto a tê-la visto sair do acampamento, ou do recinto da feira –.

Os mais chegados, vieram com os consolos do costume – “pode ter-se sentido mal e estará a dormir para qualquer lado”, “estará para aí, de derriço, com algum farsola”, “o que for, soará! … a terra há-de dá-la! …”

A ti’Amélia, pareceu mais sossegada, quando os filhos voltaram e garantiram que não faltava nenhum cigano no arraial; sozinha não iria longe e com alguém fora da sua raça não acreditava que fosse a algum lado.

Porém, ao aperceber-se que faltavam algumas roupitas da cachopa, entrou em transe; ao conferir que também uns dinheirinhos que a Rosa tinha de seus, não estavam no esconderijo, quase explodiu; e quando confirmou que algumas das poucas peças de ouro, da família, não estavam na trouxa, inquietou-se ainda mais e lançou o pânico pelo arraial cigano de Trancoso. Fez constar que a Rosa se tinha ido embora e levado arranjo.

Nas feiras seguintes – Sernancelhe, Meda, Pinhel, Celorico, Moimenta, Lapa e Aguiar da Beira – ainda se falou bastante do desaparecimento da Rosa cigana, mas, com o passar dos meses e como ficou certo que nada de grave sucedera, uma vez que nada de anormal foi referido, o caso acabou por ser esquecido.

Só a mãe nunca se conformou e manteve sempre a esperança de voltar a ver a filha e talvez poder retribuir-lhe todo o desgosto que não esquecera e não perdoara nunca à rapariga.

Chegaram, ao longo dos anos, muitos boatos, muitas notícias não confirmadas e até muitos falsos alarmes e pistas, anunciando a presença da Rosa, na companhia de alguém, na próxima feira, de aqui ou acolá.

Porém, a ti’Amélia acabou por morrer sem voltar a ver a filha, ou dela ter notícias concretas.

Acrescente-se, apenas para sossego do leitor, que mãe e filha se cruzaram algumas vezes, nas estradas e andaram por perto, embora sem nunca se terem encontrado; melhor dizendo, a Rosa nunca se tenha dado a conhecer.

A Rosa, que não mais usou o apelido Mendes e deixou de vestir os trajes ciganos, viveu sempre perto do local do seu desaparecimento – Trancoso –.

Nas terras da alta Beira e ao longo de toda a fronteira, a vida era muito difícil naqueles primórdios do século passado; o dinheiro escasseava, embora, por vezes, as arcas e os celeiros estivessem atulhados de centeio e batatas e a castanha, em anos de boa novidade, ajudasse também a cobrir as necessidades alimentares básicas, de homens e animais.

Escasseava o trabalho: as minas, por um lado, e uma ou outra obra pública nas estradas e nos caminhos-de-ferro, por outro, não chegavam para ocupar toda a força de trabalho disponível na região.

A pastorícia e o arroteio das terras, a par das escapadelas aos trabalhos agrícolas de Castela, ou das ocupações ligadas ao contrabando e à candonga de produtos de e para Espanha, mal chegavam para matar a fome da família e comprar alguma coisa para vestir.

Era nestes ambientes de penúria que decorriam as feiras nos concelhos e comarcas, onde o refúgio nas tabernas e uns negociozitos de bestas e bois, a par da venda de castanhas, batatas e centeio, movimentavam muitas gentes, nomeadamente de raça cigana, que quase detinham o exclusivo das bestas, muares e cavalares, sem esquecer os burros.

Havia ainda as barracas de capotes e samarras, com pele de raposa, na gola, safões e outros agasalhos, que, naquelas terras, bem justificados eram, pois o frio e a neve caíam, impiedosamente, no princípio de cada Outono, cheios de rigor, qual castigo para os mais pobres e sem abrigo.

O Jaime, nos seus trinta e poucos anos, mexia, melhor que ninguém, o “junco”, ou a naifa de ponta e mola, que comprara perto de Cidade Rodrigo.

Nunca se separava da “fusca” que, por mais de uma vez, já tivera de exibir, embora sem nunca ter dado um tiro. Adquirira-a, um belo dia, a uns ciganos amigos e apesar de já ter ouvido bom dinheiro por ela, não era sua intenção separar-se dela, enquanto vivesse.

Vivia, de terra em terra, desde a margem do Douro, até ao termo do Sabugal e recantos da Malcata, por todo o vale do Côa. Fazia biscates da sua arte, como dizia, e não rejeitava um ou outro negócio de besta, ou burrito. Nunca se lhe conheceu companheira, embora caminhasse para os quarenta.

Batia toda a raia e ia até aos contrafortes da Marofa, onde, segundo constava, teria nascido, de mãe cigana e pai espanhol, que bem cedo o entregaram aos cuidados de um morgado da zona de Almeida.

Aí, nas terras de D. Mendo, aprendeu a arte de pastorícia, da tosquia, de que viria a ser um verdadeiro artista, e sabia ferrar uma besta. 

Antes da idade das sortes, agradeceu ao seu senhor e fez-se à vida, errante e nómada, de caldeireiro, tosquiador e ferreiro, percorrendo todo o vale que considerava a sua casa e que conhecia melhor que ninguém. 

Sempre que lhe calhava visitava o maioral de D. Mendo e, às vezes, ficava uns dias a ajudar, mas o seu espírito errava constantemente e não aceitava prisões, ou quaisquer constrangimentos de disciplina.

Não se entende, pois, muito bem, que tenha aguentado quase cinco anos na marinha mercante, embarcado num petroleiro, a bordo do qual percorreu uma boa parte do mundo e, na condição de servente-ajudante do oficial de máquinas e manutenção do navio, aprendesse tantas coisas e técnicas que tanto influenciaram a sua vida e vivência no vale do Côa.

Provavelmente aguentou todo aquele tempo, porque queria saber coisas que noutras circunstâncias nunca teria sequer imaginado. Para ele era como se estivesse internado numa qualquer escola superior.

Segundo o comandante Santos, o Jaime era um rapaz muito interessado e muito estudioso. Tinha muitas qualidades a nível intelectual e, se tivesse estudado, teria sido um brilhante engenheiro de máquinas e manutenção, mecânico, ou especialista de materiais e equipamentos.

A bordo leu tudo o que apanhou a jeito e bebeu, com extraordinária avidez, tudo o que lhe foi ensinado pelos camaradas da tripulação, pelos oficiais e, particularmente, pelo seu chefe, de quem sempre foi pupilo dilecto.

Aprendeu, além das artes de mareante, Física e Geografia. Interessava-se, particularmente, por medidas, grandezas e instrumentos; materiais, especialmente metais e equipamentos electromagnéticos; técnicas de chaparia, caldeiraria, soldadura, rebitagem e tratamento e manutenção; as comunicações e instrumentos de marear, foram-lhe explicados pelo seu chefe e a técnica de atracagem, lançamento e amarração de cabos, verificação de forças e tensões, bem como as técnicas de emergência e primeiros socorros, foram estudadas e perfeitamente assimiladas pelo tripulante.

Conseguia localizar outras embarcações que navegavam à vista e aprendeu a determinar as coordenadas, distâncias, velocidade de deslocação e rumo seguido. Parecia que tinha nascido para o mar, gracejava o oficial de máquinas.

Orientava-se tão bem de dia como de noite, nunca perdia o “norte” e detectava, imediatamente, qualquer batida anormal das máquinas.

Nunca adoeceu e era particularmente resistente a enjoos e males de mar, mesmo nas condições mais agressivas, caso das passagens pelo Cabo, ou por alturas da Gasconha, rumo a Roterdão. A única vez que se sentiu meio tonto, cruzava o Estreito de Magalhães, rumo ao Chile. Numa palavra gostava de mar e sentia-se muito bem na solidão dos oceanos e, dias e dias, na companhia e convivência de uma pequena comunidade.

O comandante Santos, velho lobo-do-mar, tirou-lhe as medidas e convidou-o para se inscrever na escola e vir a ser alguém na marinha mercante. Porém a resposta do Jaime foi elucidativa: 

Agradeço ao Senhor Comandante, aos Senhores Oficiais e a todos os tripulantes presentes e aos que foram passando; porém a minha vida não há-de acabar aqui e o que queria aprender já vai chegando ao fim. Na próxima vez que atracarmos em Lisboa, deixo o seu navio e faço-me à vida. Nunca esquecerei, nem lamentarei o tempo que aqui passei, mas também não voltarei a falar destes tempos… É melhor assim!...

O Comandante comentou a atitude do tripulante que, ao jantar, foi gabado por todos os oficiais e, mandou que se apressasse a lembrança que queria que fosse oferecida ao Jaime quando ele deixasse o navio – um conjunto de livros, sobretudo de Física e Geografia, que há muito vinha a ser adquirido, por sugestão do oficial de máquinas e com a completa concordância e a expensas do Comandante. 

Segundo um manuscrito encontrado, mais tarde, pelo Jaime dentro de um dos livros, foram as seguintes as palavras do comandante, ao jantar:

O Jaime é o que se conhece. Uma força da natureza, que ama como sua mãe, acima de tudo. É cioso da sua liberdade, se bem que nunca tenha posta em causa a ordem e a disciplina a bordo. Não é ave para ficar sempre no ninho. Quer fazer experiências, voar, conhecer, experimentar, viver.

Vai partir, não sem antes estar já a deixar saudades; pela forma como sempre se portou a bordo, particularmente nos momentos mais difíceis. Será capaz de viver em qualquer lado, em qualquer ambiente, por mais hostil que seja.

Vai levar a prenda que mais deseja na vida: estamos a preparar-lhe uns trinta ou quarenta livros de Física e Geografia, entre outros. Não vamos fazer cerimónia na sua despedida – não seria do seu agrado –, porém todos ficam como testemunhas que vai sair desde navio um dos homens que mais me impressionaram durante a minha já longa carreira.

Mas, voltemos ao Côa. Ali, junto do seu “deus”, passava o seu tempo. Não dava pelo passar dos dias e qualquer gruta, ou abrigo, lhe dava melhor sono que a malhada do morgadio, ou o celeiro do solar. 

Conhecia as golas, os vaus, os pegos, as solapas e as alpoldras de todo o rio. Acompanhava as trutas que, aos saltos, subiam a corrente e apenas pescava quando a fome o obrigava.

Acamaradava com os pescadores e vivia quer com os contrabandistas, quer com os carabineiros, quer com os nossos republicanos. Comia com os pastores, de quem conhecia a maior parte dos cães e orgulhava-se de dizer que respeitava e era respeitado pelos lobos. Numa palavra, nunca constou que tivesse feito mal a alguém, ou que alguém o tivesse molestado.

Havia, todavia, uma relação que merece ser mais aprofundada: a sua maneira de “estar bem com gregos, troianos e ciganos”, de que se orgulhava.

Por mais de uma vez foi tentado pelas polícias de Espanha e de Portugal, quer para servir de guia, quer para ajudar a capturar contrabandistas. Sempre se manteve neutro, salvo nas ocasiões, aliás raras, em que andava mais necessitado e aceitava, levar e trazer, umas cargas de contrabando. Nesses casos, é claro, até actuava como guia de contrabandistas e, orgulhava-se de nunca ter deixado apanhar qualquer elemento dos seus grupos.

Homem de poucas conversas e bom vinho, isolava-se, nas malhadas, ou andava só, pelos caminhos, de terra em terra, e, sempre que podia, junto “da sua Côa”, como sempre dizia. De preferência andava durante o dia e passava horas deitado nos lameiros, junto dos açudes, durante as horas de calma, ou pela noite dentro. No Inverno era um autêntico homem das cavernas, onde não tinha frio nem fome – atempadamente guardava lenha e víveres –.

Nunca se lhe ouviram referências à sua passagem pela marinha mercante. Durante os anos que andou embarcado, nunca recebeu, nem enviou correio e, nos seus pertences não tinha nada que o ligasse a terra. Pouco dinheiro gastou, nas raras saídas a terra.
Desse tempo, ficaram os livros que eram, religiosamente guardados e bastas vezes consultados.

Trigueirão, de cabelos muito pretos, olhos grandes e avantajado de estatura. Tinha uma força hercúlea e, dada a vida que levava, era muita ágil de movimentos e tinha sentidos muito apurados – via muitíssimo bem, ouvia o mais pequeno ruído e distinguia os sons de todos os animais, com quem convivia –. Tinha um olfacto apuradíssimo e seguia o rasto de qualquer animal, ou pessoa, até aos confins do mundo, se preciso fosse.

Falava bem português e castelhano e seguia, à risca, os dialectos. Durante os anos em que frequentou a escola, em Almeida, aprendeu muito bem o que lhe ensinaram e era mesmo dos melhores da aula; depois do exame da quarta classe cansou-se e disse que queria guardar gado e não estudar, como seria gosto de D. Mendo.

Dizia-se que nascera junto ao Côa e a mãe, de origem cigana o teria levado para Espanha e aí lhe fez o registo, já o ganapo teria à volta de seis meses. Mas, para as más-línguas, tinha também papéis portugueses, que o dariam como nascido no termo de Almeida, junto à fronteira. Esta conjectura, uma vez que ao certo não se saberá, livrou o Jaime nas “sortes”, para o serviço militar, em ambos os países.

Ninguém se metia com ele, nas festas e arraiais; mirava tudo e todos. De aspecto tímido e respeitador, aceitava um copo e uma bucha, que lhe oferecessem e agradecia, educadamente. Tinha os seus locais próprios de pernoita e não se misturava com os mendigos que andavam pela zona. Cuidava do seu próprio vestuário, que lavava regularmente; barbeava-se todas as semanas e, às vezes, assistia à missa, nas capelas dos povoados. Trazia, invariavelmente, nos seus parcos haveres, jornais e livros que lhe davam os que sabiam que gostava muito de ler e escrever.

Cosido com um barroco, camuflado num tufo de amieiros, ou encostado a um carvalho, não havia quem conseguisse lobrigá-lo. Surpreendia os próprios bichos e era bem recebido em todos os locais por onde passava.

Constava-se que, para os lados de Roque Amador, um lavrador de Rapoula do Côa, fora salvo da fúria das águas pelo Jaime, numa noite de Inverno, em que ambos vinham da Ruvina, depois de terem estado na feira de Alfaiates. 

Também se dizia que, numa tempestade, salvara do Côa três cabeças de gado que eram arrastadas pela torrente; o Jaime agarrou uma com a mão direita, outra com a mão esquerda e a terceira com os dentes.

Esta e outras histórias alimentavam o imaginário popular sobre a vida do Jaime; certamente, na maior parte das vezes, mais por imaginação e, quiçá, fantasia das gentes, que por qualquer acção, ou intervenção, do próprio.

Com passagens mais ou menos regulares, subia e descia o Côa, ganhando uns patacos quando não era por amor de Deus a paga do seu trabalho. Mas, suspeitava-se que tinha pé-de-meia, uma vez que não se via gastar os dinheiros que recebera, durante mais de vinte anos que vivera e biscateara por terras do Côa e da raia. E era muito solicitado para os trabalhos das suas artes.

De qualquer modo o Jaime era desprendido e desinteressado dos bens materiais; vivia com frugalidade, vestia o que lhe iam dando e o que tinha estava distribuído e guardado, discreta e recatadamente, em diversos locais que só ele conhecia.

Até que um dia…
(continua)

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