Capítulo II
O Côa é um rio de margens rochosas e alcantiladas, traiçoeiro, para quem não o conhece e respeita. Nos Invernos leva tudo o que encontra, num tropel de forças hercúleas que arrastam paus e pedras de muitas toneladas; nos Verões quase se extingue e deixa ao abandono parte da moldura verde, das margens, que aproveitou alguma nesga de terra para brotar.
Nascido na serra das Mesas, um dos contrafortes portugueses da serra espanhola da Gata, lá para os lados dos Fóios, tem uma infância feliz e calma, mesmo quando atravessa as abas da Malcata, até jusante da sua primeira grande referência – o Sabugal – que deixa na margem direita, dirigindo-se para norte, onde vai entregar-se ao soberbo Douro, depois de percorridos os seus cento e trinta e cinco quilómetros.
Recebe, na passagem, o contributo, por vezes generoso, de algumas ribeiras – de Alfaiates, de Adão, de Noemi, de Gaiteiros, das Cabras, de Massueimi – as duas primeiras na margem direita, o lado de Espanha, e as restantes na margem esquerda.
Faz a delimitação das terras de Ribacôa, entregues, definitivamente, pelos Castelhanos, a Portugal e ao rei D. Dinis, no ano de 1297, com a assinatura do tratado de Alcanizes.
Durante o seu acidentado percurso, desce de uma altitude de 1.060 metros – na nascente –, até 180 metros – na confluência com o Douro –.
Serviu de protecção natural a muitas vilas acasteladas, das suas imediações. Estão neste caso, para apenas referirmos algumas mais conservadas na actualidade, Castelo Mendo, Almeida e, menos próximas, Pinhel e Vila Nova de Foz Côa.
Habitado desde tempos imemoriais, o vale do Côa apresenta um vastíssimo e não menos rico espólio cultural de que um dos maiores conhecedores será personagem central desta obra, necessariamente ficcionada sobre o imaginário de gentes e legados daquelas terras.
No tempo dos Romanos, a região foi cobiçada pelas possibilidades de utilização de águas e explorações mineiras, mas os Cudanos e Transcudanos – como eram chamados os povos que por ali viviam –, sempre se mostraram pouco permeáveis e difíceis de dominar e, muito menos, domar, pelas legiões dos César e de outros invasores.
De uma agressividade telúrica, as margens do Côa, por alturas de Castelo Mendo, entre a ponte de caminho de ferro e a rodoviária ponte do Côa, nas imediações de Leomil, antes de Castelo Bom, quando se vai, pela velha estrada, da Guarda para Vilar Formoso e Espanha, eram o habitat do Jaime.
A água corre em goleiras, projectada de pedra em pedra, com vigor e força de corrente. Ali, entre pedras soltas e bulideiras, é o local ideal para as trutas que aos saltos de vários metros se projectam rio acima, no sentido contrário ao da corrente. São raros os açudes e represas, pois a sua necessidade e justificação não existem neste troço – não há veigas e lameiros nas margens, formadas, apenas, por barrocos, penedias e escarpas alcantiladas –. São bastas as zonas onde o único percurso possível é o leito do rio.
Os freixos e amieiros, os tufos de juncos e as touças de castanheiros, cresceram sob os olhares do Jaime, para quem aqueles quilómetros de rio serviram de berço e horizonte e são, além disso, ícones do seu culto pela Natureza, partes de um todo ao qual pertence, com o qual vive e respira, do qual se alimenta, física e mentalmente.
Povoam este cenário, fantasmagórico e feérico, diversas aldeias, inclinadas sobre o Côa e que milagrosamente se mantêm sobre as escarpas, vendo as poucas terras aráveis de que dispõem ser arrastadas lá para baixo, indo jazer e alimentar os lameiros das margens do rio. Essas terras ribeirinhas são bastante férteis, pois a essência, maioritariamente arenosa, que as compõe, é rica em detritos, estrume, húmus e dejectos, arrastados pelas águas.
Gentes e animais vivem ali desde a mais remota antiguidade; sobrevivendo no limite das leis da natureza e a sua subsistência vai além, muitas vezes, da destreza humana e animal. São, porém, muito raros os casos de acidentes ocorridos em tão inóspitos cenários. Descer do cimo dos morros até ao rio exige arte e equilíbrio, por veredas ou caminhos usados por carros e animais, onde não há qualquer margem para desvios, distracções ou erros.
Todos aqueles percursos eram familiares ao Jaime que, sem distinguir noite e dia, se movimentava pelos trilhos usados por pastores e feras, conhecendo pelo toque a solidez duma pedra dura, ou a consistência de um carreiro arenoso. Por vezes, descalçava as botas e pendurava-as ao pescoço, aumentando a sensibilidade dos pés, na determinação da dureza, secura, vegetação e temperatura do que ia pisando. Todas essas componentes eram determinantes para definir os trilhos que o levariam a este ou aquele patamar e às grutas onde se acolhia, onde habitava e onde guardava os seus pertences: roupas, vitualhas, livros, lenha e outros combustíveis. Dois ou três desses locais privados do Jaime eram verdadeiras casas fortes, protegidas por sistemas de defesa e detecção de intrusos, altamente eficazes.
A par destes santuários, onde guardava os haveres e onde pernoitava em tempos de maior rigor meteorológico, o Jaime tinha, mas margens do Côa, entre as duas pontes, uma meia dúzia de locais de repouso e contemplação. Dali via a outra margem, os amieiros e freixos que cresceram sob os seus olhos, os pássaros que voaram, pela primeira vez, à sua frente, ainda que a centenas de metros e no local menos previsível.
Um dos seus observatórios, num ponto avançado, a uns quinhentos metros da muralha de Castelo Mendo, sobre os barrocos que faziam a guarda a norte de Paraizal e protegido a nor-noroeste pelas cercaduras da Misarela, dispunha mesmo de um instrumento óptico, baseado em lentes, tubos e espelhos, de construção rudimentar, com que olhava o céu e podia observar todos os movimentos de qualquer animal ou pessoa, na margem direita do rio, no seu leito e nos lugares mais expostos da própria margem em que estava.
Nunca conseguiu dotar o dispositivo de meios e capacidade de visão nocturna e lutava com dificuldades em dias de maior luminosidade.
Os locais que queria controlar, onde tinha guardados os seus haveres, estavam enquadrados por um sistema de espelhos reflectores, para ver e não ser visto, cujo principal objectivo consistia em ver o que se passava e também criar reflexos e luzes dissuasoras de qualquer humano, ou bicho, que se acercasse.
Tinha um sistema de enxames nas entradas de alguns locais e podia provocar a fúria das abelhas, por mecanismos e armadilhas que qualquer intruso accionava, inadvertidamente, quando se aproximasse.
Pescadores e caçadores furtivos, viandantes duvidosos, casalinhos amorosos, vítimas de estupros e violências diversas, assaltos e tantos outros cenários, próprios e impróprios do ser humano, estiveram sob a observação do Jaime.
Lutas entre animais, artes de pesca e caça, sementeiras, bens legais e ilegais escondidos, cargas de contrabando e patrulhas de guardas, assaltos e bandos de malfeitores, foram seguidos pelo Jaime, durante horas.
Mas a natureza era o motivo da maior parte das observações e ocupações do Jaime: via brotar nas fontes a água que bebia, lavava-se sempre com água na mesma temperatura, comia frutos acabados de colher, seguia as tarefas dos animais, desde a formiguita ao predador, descia às aldeias para ganhar alguma coisa, para arranjar algo que comer, para aceitar um prato de sopa ou um naco de pão. Trabalhava nas suas artes e não enjeitava qualquer ajuda que lhe pedissem, recebendo fraca paga – preferia os créditos às dívidas, como dizia –. Nos trabalhos da ponte, lá ao horizonte do Paraizal, acompanhou o movimento anormal de homens e equipamentos. Foi lá que conseguiu recolher uns binóculos, esquecidos no chão, e um aparelho com manual de instruções, que leu cuidadosamente e permitia calcular a distância até aos objectos que focava. Nunca conseguiu, porém, saber a que distância estava da Freineda, ou quantos metros distava a nova ponte do seu local de observação. Também nunca chegou a saber o estado do tal telémetro.
Depois das máquinas cavarem num e no outro lado do rio, foi estendida a linha de comboio até às proximidades das duas margens e começaram a chegar os milhares de blocos de pedra, cortados nas pedreiras, desde o Rochoso, no lado da Guarda e para lá de Freineda, no lado da fronteira.
Apesar de não ser pedreiro, canteiro ou carpinteiro, o Jaime conseguiu arranjar trabalho nas obras da nova ponte, chegou a capataz e manteve-se ali durante quase dois anos. Acumulou um razoável pé-de-meia e arrendou uma casita, no Paraizal – a sua eleita entre as aldeias das margens do Côa –.
No final da obra, o Jaime assistiu à passagem do primeiro comboio sobre a nova ponte, rumo a Espanha e, a partir de então, todos os dias a nova passagem ferroviária era atravessada, nos dois sentidos, por vários comboios, carregados de passageiros e mercadorias. O Jaime tinha, assim, nova vida no seu cenário habitual; havia comboios e gente, onde antes só o mais atrevido dos animais quebrava a quietude da paisagem agreste e pedregosa.
A passagem pelos trabalhos da ponte e a vida gregária que partilhou com os companheiros, nas malhadas, nas refeições, nas tarefas de grupo, nas escalas de trabalho, na conjugação de esforços e na orientação de grupos, começaram a desenvolver no Jaime um sentimento de solidão, a necessidade de arranjar uma companheira e a vontade de ter um filho a quem ensinaria as artes de viver nas margens do rio e os segredos do seu mundo, dos seus “deuses”, da sobrevivência e da sua felicidade.
E tinha agora um meio de transporte para poder sair dali e voltar quando lhe apetecesse…
(Continua)