Igreja de Santa Clara - Alcaravela
A festa de Alcaravela, que, em cada ano, tinha lugar num fim-de-semana de Agosto, era um dos pontos altos na vida da aldeia, sobretudo entre os mais jovens, que ali começavam, ou continuavam, os seus derriços.
De cariz, genuinamente, popular, tinha início no sábado, com os encontros entre familiares e amigos. Continuava, com uma forte "alvorada", de foguetes e morteiros, ao pôr-do-sol e, depois, à chegada do conjunto musical que, se revezava com o acordeonista, começava o baile.
No domingo, durante a manhã, percorriam-se as ruas, ao som da Filarmónica de Sardoal, fazendo o peditório, para a igreja. Seguia-se, a missa, na igreja matriz, de Santa Clara, apinhada de gente.
Terminada a procissão, que se seguia à missa, fazia-se o leilão das fogaças e comiam-se as merendas, levadas por cada grupo de romeiros.
Da Serra ia sempre uma grande comitiva: uns com destino à missa e procissão, outros para encontrar familiares e amigos, beberem uns copos e falarem de negócios. Os mais jovens esperavam, com impaciência, a animação e o baile.
Os rapazes compravam os bilhetes para as séries de três danças, tomavam lugar junto ao estrado e logo que se iniciava a música convidavam, por sinais, ou de viva voz, as raparigas que mais lhes interessavam. Quando se notava insistência na escolha de um par, os outros afastavam-se, discretamente.
Nas mesas, à volta do "dancing", as mães, tias, mirones e raparigas não convidadas, nessa dança, seguiam, atentamente, tudo o que se passava e iam coscuvilhando. Os homens bebiam cervejas e copos de vinho, enquanto conversavam com os amigos.
Alta madrugada, organizavam-se os grupos, de regresso às aldeias: os "moços soltos", os "casalinhos apalavrados" e os que aproveitavam a calada da noite para "pedidos de namoro".
Num dos regressos das festas de Alcaravela, um par de namorados – a Maria do Cimo da Eira e o Zé, da Tojeira –, afastaram-se do grupo, para irem à vontade. Queriam começar naquela noite uma fuga de vinte e cinco anos.
No Vale das Onegas, os rapazes deram pela falta do “casalinho”, mas não ligaram ao assunto; a terra havia de dá-los. À chegada à Serra, não apareceram.
De manhã, espalhou-se a notícia: a Maria do Cimo da Eira não voltara para casa. Vieram, mais tarde, notícias da Tojeira que confirmavam a falta do Zé.
Ao fim de uma semana, o padrasto da rapariga comunicou na GNR o desaparecimento da enteada, que tinha sido vista, pela última vez, no regresso das festas de Alcaravela, na companhia do namorado, um rapaz da Tojeira, que também estava desaparecido. Passaram anos sem sinais dos desaparecidos. Acabaram por cair no esquecimento.
Vinte e cinco anos depois, apareceu, na festa de Alcaravela, um casal de meia-idade, num imponente automóvel de matrícula estrangeira e sinais ostensivos de luxo: anéis, pulseiras, relógios, cordões, brincos e correntes de ouro.
Todos olhavam, deslumbrados e interrogavam-se: Quem serão? De onde virão? O que os traz até aqui?
Por entre a agitação e falatório, um irmão da Maria do Cimo da Eira olhou a estrangeira de frente e exclamou: Por onde tens andado, Maria?!... Afinal, és tu e estás viva!... Dá cá um abraço, mulher!...
Espalhou-se a notícia, juntou-se o povo e todos afirmavam ter já desconfiado que se tratava do Zé da Tojeira e da Maria do Cimo da Eira - os desaparecidos de há vinte e cinco anos.
Os forasteiros, entre beijos e abraços, explicaram que acabavam de chegar, da Argentina, onde estavam há mais de vinte e três anos. Lá, no outro lado do Mundo, Don Pepe & Doña Maria – como eram conhecidos –, tinham mais terra que toda a freguesia de Alcaravela, mais de três mil cabeças de gado e uma "finca" nos arredores de Córdoba, no centro do país. Nunca tiveram filhos e resolveram vir agora a Portugal, agradecer a Santa Clara e ao Senhor dos Aflitos, da Serra, as ajudas nas horas difíceis.
Nos dois meses de férias, que repartiram entre as aldeias da sua naturalidade e diversos passeios pelo país, fizeram bem a muita gente. Regressaram à Argentina sem falar no seu desaparecimento. Levaram dois sobrinhos que iriam preparar para lhes suceder na administração da firma de Import & Export, Pepe & Maria , S.A., nos arredores de Córdoba, na Argentina.
Antes de partir, deram meios e instruções ao irmão da Maria do Cimo da Eira para que mandasse construir uma imponente vivenda, na Serra, onde pensavam voltar para passar o resto dos seus dias.
Muitos anos mais tarde, foi encontrado, nas ruínas da casa, um caderno de duas linhas, com uma série impressionante de nomes de localidades, de diversos países, contas de transportes e até uma caixa, de lata, com um rolo de notas de dólares e pesos argentinos, que havia ali ficado por esquecimento.
Os apontamentos acabaram por desaparecer e as notas extraviaram-se, pois, um pedreiro, que trabalhava em Lisboa, levou-as para tentar cambiá-las no Banco de Portugal e não deu mais conta delas. Exibiu um recibo, dizendo que se tratava de notas sem curso legal e já sem qualquer valor.
Ninguém mais se interessou pelo caso, não passando, hoje, de uma história que todos vão esquecendo.
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