terça-feira, 15 de outubro de 2013

Os miseráveis


Ali, bem no centro de Portugal, nasce o pequeno arroio que, já baptizado de ribeira, ladeia a minha aldeia pelo lado poente e, engrossando aos poucos, por obra e graça de muitos outros irmãos que se lhe vão juntando, acaba por entregar ao grande Tejo, uns trinta quilómetros a sudeste, no termo de Mouriscas, um caudal razoável, sobretudo no Inverno.

A ribeira buliçosa e fervilhante em cujas margens não havia um palmo inculto e se viam os batatais, os milheirais e toda a variedade de mimos, cultivados em estreitas leiras, ladeadas por extensas filas de videiras do lado da ribeira e pelas levadas do lado dos outeiros que davam forma ao longo vale por onde corria a água pura e límpida, saltando de pedra em pedra, deu lugar a uma mancha verde, incaracterística, que se estende de uma a outra levada, cobrindo hortas e ribeira e amarfanhando árvores e arbustos, praticamente inacessíveis aos poucos idosos da terra e que só os pássaros e outros animais desfrutam. 

É um lugar viçoso e fervilhante de vida, mas triste e melancólico: falta-lhe o elemento humano, o arranjo carinhoso das pessoas que acaba por dar a plantas e animais a beleza e colorido do amanho das terras, dos pequenos canteiros de flores, das frutas e dos muitos tons de verde que as pequenas hortas deixaram de desenhar no fresco e acolhedor aroma das árvores bem tratadas e viçosas de cada pequena leira.

As lágrimas da ribeira, guardadas ciosamente em açudes ou pequenas represas, eram o sangue que fazia crescer e dava sabor a frutas e legumes, eram o regulador das quentes tardes de Verão e o alimento líquido que o sol impiedoso e criador reclamava. 

Quem nunca molhou os pés, nos tanques das belgas de milho, regando a água da represa no cair da tarde de Verão, nunca sentiu o significado da partilha, o justo valor de cada bago de milho que aquela água fez crescer nem o sabor daquela salada de alface, comida poucos minutos após a chegada da horta.

Agora, na ponte do Machoso, que já não está num caminho, mas numa estrada, sentado na guarda do lado sul, ainda podia ver as pedras onde as mulheres lavavam a roupa e os pequenos lameiros onde, depois, a estendiam a corar e secar. 

Mas ao fundo da lavagem só uma pequena praia restava do antigo açude da ribeira. 

E, mais ao longe, em vez das levadas, começavam os maciços de balças, estevas, torgas, juncos e restos de videiras e outras árvores de fruto. Todo um emaranhado de verdes que faziam perder de vista o leito que se adivinhava sob todo aquele manto.

Também o caminho de outros tempos, hoje estrada, continuava deserto desde que ali cheguei, uma boa hora atrás. 

Mem carros, nem carroças, nem pessoas ou animais por ali transitavam naquela manhã de finais de Verão.

Mas ali, no meio do nada vive alguém. 

Normalmente gente que já calcorreou os longos caminhos da vida; mais simples para uns e mais agrestes para outros; todavia diferentes dos que um dia deixaram e, seguramente, nunca esqueceram, durante as suas andanças pela vida. 

E também os que nunca dali saíram e continuam a viver à sombra do desconhecido, nem sequer saudades sentindo de tempos que já passaram. 

Esperam o Outono e depois o Inverno, ano após ano, até que chegue o fim. Muitos, sem esperança em melhores dias.

Há também os que regressaram às origens, como é costume dizer-se. 

Ou porque uma força imanente os empurrou, ou porque a sorte se lhes revelou madrasta e os empurrou para o lugar natural das suas crenças, dos hábitos simples e frugais e da serenidade pedida pelo peso dos anos. 

Dizem que pela graça de Deus, quando a Ele se dirigem, quer seja na missa ou simplesmente na fé, traduzida nas orações singulares ou colectivas, em que se encomendam na sobrevivência, ou na esperança da vida eterna que possa recompensar o que cá em baixo nunca tiveram. 

Nestas cogitações, revivendo tempos difíceis mas felizes, vindo do nada, aparece o António, que há bons pares de anos não via e deixara de estar dentro dos meus contactos depois da escola quando cada um seguiu o seu caminho. 

Trazia debaixo do braço um livro, vestia roupa bem cuidada e cobria-se com um belo chapéu de feltro preto. Ah! Usava óculos graduados e ligeiramente escurecidos.

Olá senhor professor! Então por cá? Espero que esteja bem, com a família….

Mas, António, que é lá isso de senhor? Lembras-te que andámos os dois na escola, que aqui onde estamos começava a horta do teu pai – o tio Joaquim, que me fez as primeiras botas e que muitas vezes ia lá a casa do meu avô remendar ou fazer de novo o calçado da família. 

Tu, seguiste a tua vida e segundo fui sabendo sempre te governaste bem e acabaste por ir para França onde as coisas também te correram menos mal. 

Tenho muito prazer em ver-te e dá cá aquele abraço, pois só nele trocaremos todas as saudades que levariam anos a descrever.

É verdade que como pedreiro aqui e depois de casado na Fortaleza sempre me governei menos mal. 

Sempre tive pena que na terceira classe tenha saído da escola, mas mais tarde, em França, pude aprender a ler, escrever, fazer as escritas das minhas vidas e aprender um pouco mais sobre cultura geral. 

Sempre gostei de ler e tenho pena de não poder dedicar mais tempo à leitura, pois os meus olhos não me permitem grandes aventuras.

Muito bem António, e lá em França por onde andaste? 

Eu sempre gostei da minha arte e quando uns cunhados me desafiaram para ir para a França, ainda hesitei. Tinha medo de alguma coisa correr mal e já tinha dois filhos pequenos… 

Mas, encorajado pela mulher, fui sozinho para Paris, deixando cá mulher e filhos. Acompanhei os cunhados, fui morar para Champigny, ali nas barbas de Paris e comecei a trabalhar nas obras que apareciam, por conta de um português de Trás-os-Montes. 

Ao fim de seis meses, vim cá a Portugal, com duas finalidades: levar a mulher e os filhos e ver se conseguia uns dinheiros emprestados para propor uma sociedade a meus cunhados – restauração de edifícios, recuperação e arranjos de jardins-.

Nessa altura já conhecia suficientemente o meio, já tinha aprendido a ouvir e falar qualquer coisa de francês e os meus futuros sócios, tal como eu, eram muito trabalhadores e gente muito orientada... E séria…

Tomámos a primeira obra: restaurar um edifício de quatro pisos, numa rua muito perto da Gare du Nord. 

Fizemos o trabalho a contento do dono, em menos dois meses que o previsto e fomos logo convidados para continuar a trabalhar noutras obras daquele senhor, dono de bastantes prédios em Paris e arredores. Olha, já lhe recuperámos mais de trinta prédios e os meus filhos e os seus primos continuam a trabalhar para ele.

Mais tarde a minha mulher, quando já se desenrascava no francês, empregou-se como porteira em Ivry e os meus filhos estudaram até ao fim do liceu e já depois de começarem a trabalhar nas empresas, fizeram cursos profissionais no nosso ramo. 

Hoje dirigem os negócios, com os primos. 

Eu e minha mulher voltámos ao ponto de partida, quarenta anos depois. 

Temos casa na Fortaleza e, graças a Deus, temos o suficiente para viver. 

Hoje vim dar por aqui uma volta e, felizmente encontrei-te, pois tenho lido as tuas publicações no nosso jornal e já me apeteceu, várias vezes, comentar, mas ainda não calhou.

E esse livro deve dar-te que fazer. Antes de mais é muito extenso e de um grande mestre da literatura. Nunca o li em francês, mas já o fiz em tradução e até já escrevi qualquer coisa sobre ele, quando estudei literatura francesa…

Há perto de cinquenta anos.

É verdade. Está muito bem escrito; duma forma que se lê e se entende bem e as histórias que cá estão até me fazem lembrar algumas das tuas. 

A propósito, já publicaste algum livro? Nunca vi nada a esse respeito lá no Jornal.

Não. Nunca editei nada com aspecto comercial. Gosto de escrever sobre as pessoas simples, como nós e de forma que elas me entendam. Fico contente por saber que também és leitor dos meus escritos.

Sabes, gostei imenso de falar contigo. Tenho ouvido muitas coisas sobre a vida dos emigrantes, sobretudo em França e até coisas menos edificantes. 

Há entre vós, uns quantos, felizmente em minoria muito pequena que nem sempre se portaram bem, sobretudo com os seus compatriotas. Mas, desses não rezará a História e aqueles que honestamente fizeram vida e arranjo é que importa e não os trapaceiros que hão-de existir sempre e em toda a parte.

Não sei se sabes mas casei numa pequena aldeia, do concelho da Guarda, onde muito mais de metade das pessoas da nossa idade ou foram ou ainda estão em França. 

Aqui por baixo a excepção são os que emigraram, lá naquelas zonas da raia, são excepção os que ficaram por cá.

Tenho familiares, amigos, afilhados, ou simples conhecidos, que viveram e conhecem a emigração. Quero dizer-te que, sem excepção, tenho muito respeito por todos os que tiveram a coragem de um dia deixar tudo e todos para partir em busca de melhores dias e do que cá lhes era negado. 

Oiço todos e respeito o que me dizem. Conheço muitas vidas de sucesso como me contas e apenas receio que os dias por lá não voltem a ser tão favoráveis como já foram; os tempos são outros, mas esperemos com confiança, porque quem for honesto e lutador há-de continuar a vencer.

Continua a ler o teu Victor Hugo, tem cuidado com os teus olhos e que Deus te proteja e nos vá dando saúde para ti e todos os teus. 

Um abraço e até sempre!... Au revoir!...

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