segunda-feira, 30 de setembro de 2013

O Ti’Artur


Ao tempo, o Ti’Artur tinha trinta e poucos anos e morava no Carvoeiro, onde sempre viveu, até que, prematuramente, traído pelo fígado, se foi embora, ainda que vivendo mais que os anos que por cá andou.

Casou com a Ti’Conceição, que namorou e conseguiu trazer dos lados de Proença, duma aldeia chamada Galisteu. 

Regente escolar, deixou tudo para se dedicar ao marido e filhos, que começaram a surgir logo após o casamento. 

Primeiro uma menina, a seguir o Manelito, que ainda estou a ver, muito ranhoso e choroso, atrás da mãe, que se desdobrava a tratar dele e a aviar os fregueses da loja, nos baixos da casa, onde moravam e davam dormida ao motorista da camioneta da carreira e outros passantes.

Homem de sete ofícios e amigo de toda a gente, podia amedrontar quem o não conhecesse. 

Estava farto de perseguições de polícias e fiscais, que seguiam de perto o contrabando, em que se ocupava o Ti’Artur. 

Por trás de um imponente bigode, escondia-se um coração de enorme grandeza. 

No primeiro o Ti’Artur tinha muito orgulho, no segundo, como aliás no resto do corpo, nem pensava. 

E acabou por pagar muito caro por essa segunda atitude.

Com o seu ar de “ciganão”, negociava em tudo. 

Não escondia de ninguém a sua atracção por tudo que cheirasse a risco e a aventura. 

Tinha enorme prazer em vender “à socapa” cortes de bombazina, garrafas de Domecq, perfumes Tabu e cartas espanholas. 

Também nunca faltavam caramelos de “nuestros hermanos”. 

Gozava mais que lucrava com essas actividades.

Era o taxista da terra e nunca recusava um serviço, salvo se estivesse ausente, ou tivesse abusado da bebida e já se encontrasse no seu “estado normal”. 

Tinha respeito pelos clientes – bêbedo, não conduzia o táxi –, mas nunca se coibia de andar de mota, quer estivesse sóbrio, quer bem carregado.

A “Triumph” era um dos seus encantos. Era uma das coisas que mais estimava, que lhe dava um gosto indescritível. 

Fazia gala de percorrer a estrada, desde o Vale de Santiago até à Sanguinheira, nos fins de tarde, com escape quase livre, camisa aberta e satisfação estampada no rosto. 

Toda a gente abria caminho, à mota do Artur.

Nas várias férias que passei no Carvoeiro, tive o privilégio de ser mais um dos amigos do Ti’Artur, como eu, carinhosamente, lhe chamava; ao que ele retribuía, apresentando-me como o “sobrinho Zeca”. 

Demos muitos passeios, na mota, e nunca tivemos percalços, de maior. 

Com companhia, era cauteloso; para além de ser um excelente condutor.

A casa do velho Cavaco, onde eu ficava aboletado, era próxima da loja e um pouco ao lado da estação dos correios, onde a Zita – hóspede da casa do Ti’Artur – era encarregada. 

O meu tempo dividia-se, entre a loja e os correios.

A respeito dos dois pólos de atracção dos meus dias, o velho Cavaco, que ganhara a vida de terra em terra, como capador, tinha as suas prosas e dava as suas recomendações: 

Vais para casa do Artur namorar a filha do “Zaranza da Feteira”; é das coisas mais bonitas que por aí se encontram, mas tanto quanto sei, é dois ou três anos mais velha e sabe muito mais que tu – todo o cuidado é pouco!... 

O Artur é um homem bom, muito habilidoso nos negócios, mas com a pinga, perde-se!... Isso é mau, além de que perde o respeito por si próprio e até pelos que lhe são mais chegados: mulher e filhos.

Vai com ele para onde quiseres; és bem formado e estou seguro que nada de mal te poderá acontecer. 

Porém, não andes com ele bêbedo em cima daquela mota e evita pegar em qualquer coisa de menos legal, que tenha em casa. 

Sempre fez gala de brincar com guardas e fiscais, mas um dia queima-se – e pode chamuscar alguém –.

Na altura pareceram-me duros e até injustos, os conselhos do Ti’Cavaco; todavia, à distância dos anos e dos factos, é com o maior carinho e gratidão que relembro cada palavra, de sabedoria, dum velho amigo. 

Nunca me arrependi de ser amigo do Ti’Artur e das muitas horas de prosa que tive com a Maria Luísa, dos correios – a Zita –, mas nada posso criticar nas recomendações do meu velho hospedeiro.

Nos meses de Agosto, o Carvoeiro era um autêntico entreposto de muitas e variadas gentes, pois tinha gente emigrada em todos os pontos do mundo: no Brasil, Venezuela, América, África do Sul, Congo Belga, colónias e Europa. 

Ao ouvi-los, na loja do Ti’Artur, sentia um enorme gosto e imensa curiosidade, escutando as histórias de cada um – aventuras e desventuras, sucessos e azares, verdades e mentiras. 

Verdadeiras histórias de gente simples, tão do meu agrado e, feitos os descontos inerentes, carregadas de sabedoria.

O Ti’Artur reparou no interesse e sofreguidão com que eu escutava e perguntava tudo o que dissesse respeito ao longínquo, as considerações que fazia, baseado nos estudos da Geografia e a maneira como aguentava conversas com quem eu nunca vira, sobre ambientes onde nunca estivera.

Um dia convidou-me para uma pescaria, nuns pegos da ribeira do Aziral, no termo de Envendos, a vistas das terras de Proença. 

Iríamos de mota até à Venda Nova e dali em diante, seguiríamos, a corta mato, até à ribeira. 

Saíamos ao romper da manhã e íamos encontrar o resto do grupo, ao nascer do sol.

Conhecia apenas o Ti’Artur; fiquei a conhecer umas trinta e tantas pessoas, que faziam a sua vida em doze países diferentes. 

Devo ter feito milhares de perguntas, posso ter sido muito maçador, não cheguei a lançar o anzol à água, mas comi muito peixe frito, grelhado e em caldeirada.

Ao anoitecer, voltámos até junto da mota e, quando chegámos ao Carvoeiro, o Ti’Artur pôs-se na minha frente, e disse-me: Zeca vê que hoje, ao contrário do habitual, não estou bêbedo. 

Queria, melhor, fazia todo o empenho em arranjar uma coisa que lhe causasse o maior prazer. 

Sei que gosta muito dos convívios, como o de hoje, e fiquei encantado com a maneira como se comportou no meio de tanta gente, de tão diferentes meios e com tantas coisas difíceis de aturar e, para mim, muito difíceis de localizar. 

Agora quero ir consigo, junto do velho Cavaco, dar-lhe nota da maneira como o Zeca se tornou na atracção do convívio, o que muito me honrou; para além de poder mostrar-lhe que não estou sempre bêbedo.

Depois dessas férias, abracei o Ti’Artur três ou quatro vezes; normalmente fazíamo-lo em silêncio e com grande cumplicidade. 

Tive um choque enorme, quando soube que foi traído pelo fígado, embora não fosse, para mim, grande surpresa. 

Não voltei ao Carvoeiro; passei por lá, mas não entrei na casa dele.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Os “travancas”

O “Ti’Manel Balejo” descia da aldeia até às azenhas do Vale do Corisco a qualquer hora do dia, ou da noite, durante todo o ano. 

Medo era palavra que nunca conhecera, segunda a sua própria expressão.

Pouco mais fazia do que moer o pão da aldeia e beber copos de vinho, nas tabernas. 

Não tinha, nem nunca procurara, fregueses de fora da terra, e ainda repartia o serviço com três moleiros que vinham buscar os taleigos dos fregueses; farinha mais fina, para uns bolos, ou uns caldos, para as filhós do Natal, para um casamento ou baptizado, não saía das mós das azenhas dele.

A alcunha vinha-lhe dos antepassados e aplicava-se só a três dos oito irmãos – nunca conseguimos apurar nada relacionado com tal designação –. 

O sobrenome e apelido, verdadeiros, eram Marques Morcego. Pela quantidade de vezes que dizia para o macho: anda lá, alma do diabo!... era conhecido pelo... "alma do diabo"!...

O animal, que transportava os taleigos, era, nas palavras do dono, mais manso e menos bruto que ele.

 As raparigas, e muitas mulheres casadas, não passavam, junto do moleiro, sem uma chalaça:

Cortaste o cabelo para ficares mais bonita?!... “Atão” porque não ficaste?!... Tens dois filhos?!... “Atão” o teu “home” não é capaz de te fazer mais?!... E assim por diante, neste género de prosas, muitas vezes bastante inconvenientes.

Até já tinha experimentado, no focinho, as costas de muitas mãos, como comentavam as mulheres mais ousadas, na fonte, ou na lavagem da roupa.

Um dia, na taberna da terra, juntou-se com um caldeireiro que passava muitas vezes pela aldeia e, no meio de uns copos, entraram de chalaça. 

Na conversa, o moleiro atirou ao Manel da Rosa: 

Olha lá, não passaste ali na ladeira das Taliscas, a caminho de Alcaravela, na noite de anteontem?!... 

Eu não, Ti’Manel Balejo, não sou como os morcegos, nem como os moleiros; a essas horas estou na malhada, com a minha Rosa, a fazer o que não encomendo aos outros.

Pois olha que passaram, bem na minha frente, uns “travancas” que faziam uma restolhada dos diabos, cheiravam mal que tresandavam, ladravam como cães e iam com uma pressa maior que a que levam os condenados para o Inferno. 

Desapareceram, para os lados de Alcaravela. Lembrei-me de ti!....

Olhe, Ti’Manel, sempre ouvi dizer que essas almas penadas são, normalmente de alguém que tem de prestar contas pelo que tirou aos fregueses.

Uns têm que amassar o pão ao Diabo, outros, têm de visitar sete vilas acasteladas, por noite, e outros, encarnam bichos malcheirosos e muito mal recebidos pelos cães das aldeias.

Pode crer que nunca vi nada dessas coisas, nem acredito nelas, mas se o povo o diz, quem sou eu para não o aceitar.

Fazes bem, homem. 

Olha que se o meu macho falasse, poderia dizer que não é homem, nem animal manso, que aceita um diabo daqueles no corpo; aquilo é coisa do outro mundo, que nos deixa sem pinga de sangue, desaparece, tal como apareceu, e pronto!

Olhe, Ti’Manel, os cães do Luís Matos e os do seu sobrinho, Joaquim, apareceram, ontem, junto de casa, logo pela manhã, todos mordidos e arranhados?!... 

E o Augusto Macedo ao chegar à horta do Valdeira, deparou-se com um cenário dos diabos: o milho todo arrasado, a terra toda remexida e a própria represa furada! 

Não lhe foi muito difícil verificar que havia muitas pegadas de javardos e de cães e que ali houve luta da grossa. 

Pelas pegadas e estado das plantas, via-se, perfeitamente, que os estragos já datavam de algumas horas atrás!

Aquilo, Ti’Manel, era um tropel de cães, javardos e crias, que andavam todos engalfinhados e o lume que deixavam no ar, mais não era que o luzir dos olhos em plena escuridão. 

Certamente o seu macho teve menos medo que “vomecê” e, também estava menos bêbedo, o que o terá ajudado a compreender que a luta a que assistia, não era dele. 

A si, na altura, só lhe cheirou mal; ao macho foi o fedor que o ajudou a perceber o que se passava.

Bem, desta vez és capaz de ter razão. 

Mas olha que uma noite, entraram-me pela porta da azenha, numa restolhada medonha: havia mesmo gritos e ais, no meio de grande alarido. 

Pouco depois era lume por todo o lado e até conseguiram travar as pedras e pararem os engenhos, ao mesmo tempo que faziam desaparecer todo o cereal da maceira. 

Coisa dos demónios; como tal nunca tinha visto e, de repente, tudo ficou calmo e voltou ao normal.

Oh! Ti’Manel Balejo, sou caldeireiro e também me engrosso, às vezes. 

Mas olhe que nunca me esqueci de encher a tremonha da azenha de grão, porque não tenho azenha, nem tenho grão. 

Porém, não é o seu caso, Ti’Manel. 

Nessa noite, bebeu uns golitos a mais da pinga da cabaça; encostou-se, no catre, sem encher a maceira de grão e acordou estremunhado, com as pedras a roçarem uma na outra, sem grão de permeio, a alta velocidade e faiscando, por todos os cantos e lados... teve sorte em não se lhe ter incendiado a manta com que se cobre.... 

Os “travancas”, estão, há muitos anos, na sua cabeça.

 Nas histórias da sua infância.

Já agora, o Ti’Manel pague lá mais um copito e tenha cuidado quando descer hoje a ladeira das Taliscas; choveu e o barro apegadiço está muito escorregadio, pelo que deve ter cuidado com o macho, não o carregando muito. 

Passe pelas brasas, antes de se fazer ao caminho, pois se já tiver a coisa curtida, não vai encontrar travancas, nem bruxas, nem lobisomens, ou almas do outro mundo. 

Faça o caminho, devagar, assobiando, acompanhado pelo seu Jeremias, que nada mais quer que caçar um ou outro coelho, mais desprevenido, ou alguma ratazana, lá nos contornos da azenha.

No outro dia, procurou o caldeireiro, para lhe agradecer os sonhos que tinha tido, no catre e dizer-lhe que os copitos do dia anterior foram bem empregados. 

Mas o caldeireiro já partira, errando, de aldeia em aldeia e bebendo aqui com uns, além com outros!...

Seguiu a sua vida…

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

O mestre-escola


Nos meados do século passado, a figura de Professor Primário, como a de Padre e as Autoridades da terra e do concelho, estavam acima dos outros mortais. 

Havia respeito total, absoluto e incondicional e quando os pais iam levar os filhos, pela primeira vez, à escola, recomendavam e pediam: 

Senhor Professor ou, o mais vulgar, Senhora Professora, chegue-lhe, se precisar!

Nunca lhe doam as mãos, pois só se perdem as que caem no chão!

Faça dele um homem – ou uma mulher – que nós saberemos agradecer-lhe!

Em casa da Professora não faltava nada; era um corrupio a levar os mimos e as primícias das colheitas, passando pelos queijos, ovos e consumos do dia-a-dia, até ao pão, acabado de cozer.

Uma vez por mês, ia à vila, receber os seiscentos mil réis de ordenado de Regente do Posto Escolar, ou o conto e duzentos, de Professor e aproveitava para dar um jeito no cabelo.

Visitava uma ou outra loja de roupas e sapatos e nunca regressava à aldeia sem passar pela farmácia, onde deixava uma parte dos seus parcos proventos, em troca dos comprimidos para as dores de cabeça, flatulência, vesícula, dores reumáticas. 


Trazia para uso próprio e para dispensar aos aflitos, na aldeia.

Visitava, normalmente, o Senhor Delegado Escolar e o Senhor Vigário, com quem combinava a participação nas cerimónias religiosas e de quem recebia orientação e documentação para promover as vocações, organizar os peditórios para a Paróquia, os Seminários e as Missões. 

Organizava-se, também, a Cruzada e a Catequese.

Nas aldeias, a Professora passava o dia na escola; ia a casa, para tomar as refeições, ensinava as raparigas casadoiras a coser e bordar e lia uns livritos da Biblioteca. 

Tinham uma certa dificuldade em arranjar namoros. Até porque a Lei impunha restrições aos candidatos a marido de Professora.

As aulas, na Escola, ou Posto Escolar, com duas ou três dezenas de alunos, das quatro classes – iam das nove às dezoito horas – decorriam na mais rígida ordem e disciplina e, por vezes, os mais adiantados ensinavam os mais novos a fazer contas, estudar a tabuada, ou ler no livro de leituras. 

No fim de cada ano, os alunos dos Postos Escolares, iam prestar provas de passagem de classe à Escola mais próxima, ou fazer exame da quarta classe à sede do concelho, onde, não raras vezes, eram aprovados com distinção.

É da mais elementar justiça reconhecer o trabalho destas senhoras – havia muito poucos Regentes Escolares do sexo masculino – que ensinaram até onde tinham aprendido e desenvolveram em muitas crianças, por essas aldeias fora, hábitos de trabalho e estudo, a par de uma formação moral baseada em sólidos princípios de cidadania e amor pelo próximo, que serviram de orientação a muito boa gente.

É de lamentar que a reorganização social, que tantos benefícios trouxe, tenha enjeitado muitas das bases, sem acautelar o civismo, o amor e respeito pelo semelhante, o valor da pessoa, no seu todo, e as instituições que a servem. 

Por mim, não quero esquecer as primeiras Regentes Escolares, que tive por professoras; elas ensinaram-me muitas coisas que me tenho recusado a abandonar e continuo a seguir, como capítulos do mais belo tratado que um homem pode escrever – a vida –. 

Foram elas, que me motivaram a ser Professor. 

Embora tenha, mais tarde, abandonado a profissão, sempre me orgulhei de dar um carácter didáctico ao meu trabalho e nunca me esquivei a ensinar aos outros, até onde pude e soube!...

Tenho sempre presentes os meus alunos, os muitos amigos... e todos quantos se iniciaram comigo, nas artes das Vendas e das Técnicas de Marketing, em que tenho desenvolvido a minha actividade profissional.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

A tabuleta dos 35 padres



O Jerónimo nasceu nas barbas da Serra, e ali se criou, entre barrocos e giestas, até que, aos onze anos, depois de fazer, com distinção, o exame do 2º grau, foi para o Seminário do Fundão.

Isso não o desgostou, todavia jamais perceberia bem, porquê.


Levava nos pés o par de botas que calçara, pela primeira vez, no dia do exame.

No enxoval, que o acompanhava, iam algumas peças de roupa nova e muitas outras, feitas com aproveitamentos das fatiotas dos irmãos mais velhos.


Deixava para trás o que nunca esqueceria: a guarda do gado, a apanha das batatas e das castanhas e os outros servicitos, com que ajudava a mãe, Narcisa do Vale, mulher piedosa e temente a Deus, que conseguia gerir, como ninguém, os parcos proventos, resultantes da venda dos ovos de meia dúzia de galinhas e dos queijos de meia dúzia de ovelhas.

Dali tirava os tostões com que mercava, na “venda”, os quilitos de mercearia, as barras de sabão macaco, para a barrela da roupa, e uns metros de cotim ou de chita, com que fazia calças para os homens e saias, ou blusas, para ela.

O pai, homem de poucas palavras, trabalhava no campo, dando jornais às casas mais remediadas e cuidava de uma pequena leira, junto da ribeira, de onde vinham as batatas e os mimos da casa. 

Ali e em dois pequenos lameiros alimentava as cabeças de gado e uma vaquita que iam dando leite, para fazer uns queijos e no fim do ano umas crias para vender na feira do gado.


O irmão mais velho, já servente de pedreiro, andava a iniciar-se na arte e o outro, com mais dois anos que o Jerónimo, malhava ferro, no ferreiro da aldeia, que era exímio a calçar uma ferramenta, ou a tratar os cascos e ferrar uma besta.

Viria a ser o ferrador da terra; ofício com que ganharia bem, a vida.


No Seminário teve, desde o primeiro dia – que recordou sempre com muita saudade, como fazia questão de repetir –, um comportamento exemplar.

Estabeleceu três metas, em planos diferentes: educação, instrução e formação.

Estava disposto a ir o mais longe possível em cada um destes objectivos.


Bebeu, com a maior avidez, todos os princípios e boas-maneiras que caracterizam um homem de sociedade; estudou e aprendeu quanto pôde e as suas notas eram das melhores: “barra” em Matemática e Latim, muito interessado em História e Geografia e com alguma dificuldade na Língua Materna e Retórica.

No plano da formação pode dizer-se que, ao fim de cinco anos de Seminário, estava um homem – compenetrado das suas obrigações e dedicado a todos os que o contactavam.


Em férias, na aldeia, era respeitado e acarinhado por todos, que diziam estar ali um futuro padre; não como muitos que nem sempre põem os interesses dos semelhantes acima dos seus, mas o verdadeiro exemplo de pessoa bem formada e talhada para aquilo que se propunha.

Não passou despercebido à Maria Luísa, moçoila um ano mais velha, que desde os bancos da escola o olhava de maneira especial e diferente das outras colegas.

Lembrava o rosto cândido e sereno, que mostrava sinais de barba, embora mantivesse muita serenidade e paz de espírito.

Mas não o via padre...


Nunca se soube bem porquê, nem por que forças, encontraram-se, num dia de Verão, à tardinha, junto à fonte. 

Anos mais tarde, a Maria Luísa viria a confidenciar que se fazia encontrada, mas tinha sempre a sensação que o Jerónimo não estava para aí virado, nem entendia os seus propósitos.

Cruzaram olhares, trocaram duas ou três palavras de circunstância e separaram-se; mas ficaram, ambos, com uma mesma certeza: nem a moçoila ficaria solteira, nem o seminarista havia de ser padre.


Como dois vulcões, em plena erupção, separaram-se no final das férias, indo o rapaz para o quinto ano, no Seminário, e a menina para a Escola do Magistério.

Passado um ano, de grandes e penosas lutas interiores, o Jerónimo completava o quinto ano e anunciava ao Vice-reitor que não transitaria para o Seminário Maior, pois já informara o seu director espiritual que não seria ordenado padre.


A Maria Luísa ia para o segundo ano e concluiria o curso no final do ano.

Embora nada de concreto se tivesse passado, ou sido acertado entre ambos, queriam os dois o mesmo.

Nunca o disseram, sendo, com alguma surpresa, que a menina veio a saber, que o Jerónimo decidira abandonar o Seminário.


Quase a completar dezoito anos, o Jerónimo trabalhou na cidade, como marçano e ajudante de cartório, colaborando, activamente em todos os serviços da paróquia, quer acolitando o vigário, quer organizando cerimónias, mas sempre fiel ao rumo que traçara, antes de tomar a decisão, não muito bem aceite pelos pais, de abandonar a carreira eclesiástica e que consistia em fazer exames de equivalência para transição para o ensino oficial e matricular-se na Escola do Magistério, para vir a ser Professor Primário.

Nas férias da Maria Luísa, dado que o Jerónimo já não tinha férias, apenas por duas ou três vezes se encontraram, lá na aldeia.

Num desses fortuitos encontros o rapaz manifestou os seus intentos de que se conjugassem para que fizessem projectos de vida.

Propunha o namoro que os levasse, quando fosse altura disso, ao altar.


A menina agradeceu, ternamente, a primeira prenda do namorado, dizendo apenas que acabava de ter a maior alegria da sua vida.

Disse apenas uma frase: sempre te amei e seremos muito felizes, tenho a certeza; conta comigo!...


A vida ia correndo, de feição; durante o ano seguinte, o rapaz arranjou emprego na biblioteca pública e teve aulas, dadas, graciosamente, por um professor do liceu, com quem costumava trocar impressões e aconselhar-se.

Candidatou-se, no ano seguinte, aos exames do segundo e quinto anos e, sem surpresa, viria a obter dispensa das provas orais, em ambos.

Fez exame de admissão ao Magistério, vindo a ser, dois anos depois, Professor.


A noiva já trabalhara, numa aldeia não distante da cidade, como Professora Agregada e começou a fazer parte dos planos a aproximação do futuro casal, mas o serviço militar reclamava a presença do Jerónimo.

Esteve em Tavira durante seis longos meses, onde teve a instrução de base e foi promovido a cabo miliciano, transitando em seguida para a sua cidade, onde cumpriria dois anos de serviço. 

Liberto do serviço militar, combinou o casamento, que viria a ser uma cerimónia íntima e simples, na igreja da aldeia.


No Outubro seguinte eram ambos nomeados para escolas da terra, masculina e feminina, onde, ao abrigo da lei dos cônjuges, seriam colocados como Professores Efectivos.

Durante os oito anos seguintes, tiveram cinco rapazes e uma menina que era o desvelo de pais e irmãos; a Maria da Graça, que vinte e cinco anos mais tarde cursaria medicina e viria a ser uma distinta pediatra.

Três dos cinco irmãos foram padres, sem grande interferência do pai, como fazia questão de salientar o velho Professor Jerónimo.

E acrescentava, com muito orgulho: são vinte e sete ex-alunos, só de minha parte, já que da Maria Luísa foram mais oito, que se ordenaram padres.

Morro em paz; tenho a missão cumprida!...


Ao longo de quarenta e cinco anos de serviço, o casal de Professores iniciou a vida e a carreira de centenas de vultos das letras e da sociedade do País.

Para além dos trinta e cinco padres, que, salvo duas justificadas excepções, estiveram nas cerimónias fúnebres dos mestres, deixaram magistrados, médicos e professores, entre uma plêiade de gente grada e, certamente grata, espalhada por quase todos os continentes.

Em sua memória, numa pequena lápide, colocada junto da fonte, lá na aldeia, o povo escreveu: Homenagem aos Professores Jerónimo e Maria Luísa, que nasceram e viveram nesta terra, onde faleceram em 1968.

PS.: A lápide foi depois completada, pelo desvelo e engenho do Presidente da Junta de Freguesia: “e foram “pais” de nada menos de trinta e cinco padres”.

O povo, claro, passou a dizer a “tabuleta dos 35 padres”.