sábado, 25 de maio de 2013

Um deus menor


Era ali, tendo as pedras como assento e o tronco como recosto, que me sentava nos dias quentes das férias de Verão. 

Teria os meus dezassete ou dezoito anos. 

Estavam em avaliação e análise os grandes rumos de uma, ou várias vidas. 

Decorriam os primeiros anos da década de sessenta, do século passado e frequentava a Escola do Magistério de Lisboa. 

Convergiam, em catadupa, várias ideias, sobre o curso, o pós-curso, a namorada, a pós-namorada, os estudos complementares, o serviço militar, o destino dos meus irmãos, tudo confluía para um grande grupo de assuntos cuja pendência ocupava muitos momentos de retiro e ponderação. 

Decisões muito pesadas para um adolescente, sempre controladas e geridas, acabaram por gerar o homem frio e calculista, rigoroso e ponderado sempre que grandes decisões e opções se lhe depararam. 

E, na sombra daquele sobreiro, terão sido lançadas muitas bases de uma personalidade e um carácter definidor da pessoa que talvez tenha sido homem mais cedo que muitos jovens do seu tempo.

Desde os primeiros exames, na Escola da freguesia, do concelho, ou do distrito – Liceu Nacional de Santarém -, sempre correu tudo bem; começava a habituar-me aos lugares nos pódios. 

Com objectivos definidos e superados, ia-se rasgando o horizonte estáctico, daquele lugar sobranceiro a todo o vale, divergente das aberturas que os livros iam fazendo naquele espírito ávido de coisas novas.

O sobreiro, último reduto de uma espécie em vias de extinção na zona, olhava para os pinheiros, os eucaliptos e a maior parte das árvores da horta e suportava a copa, sobre o tronco rugoso e ajoujado mais pelos anos que pelo peso. 

Afinal a vida que aí vinha, seria um pouco assim: o berço não fora de ouro, mas de outros matérias menos nobres, porém mais resistentes.

Humilde, estéril e sem préstimo, pois nem bolotas dava e a cortiça que deveria ser aproveitada cada nove anos, há décadas que nunca fora retirada. 

Tinha orgulho na sua folhagem, de um verde-claro-cinzento, resistente todo o ano, embora sem uma densidade que formasse uma sombra contínua e acolhedora. 

Não seria, pois, um primor de aparência; era, todavia, duro de lenho, sóbrio de seiva e parco de consumos. 

Invejava, claro, o limoeiro e as laranjeiras a quem davam, regularmente de beber e com o chão, em redor, coberto de tenra milhã e uns canteiritos de alfaces tenras e de um verde limpinho e convidativo. 

Apetecia-lhe, nos dias de maior canícula, descer até aos vimes que, saindo do valado da represa, erguiam as hastes muitos metros acima e eram continuamente visitadas pelas libelinhas, balceiras e rouxinóis que por ali atiravam as suas cantigas ao desafio. 

E, as mais altas das hortas, duas pereiras que lá crescer, cresceram, mas peras nunca ofereceram a ninguém. 

As videiras, sobre as paredes de todos os chãos, bordejavam as filas de milho e os canteiros de tomates e pepinos, até ao fundo das cebolas, dos melões e das melancias que estavam na última belga da horta do meio. 

No inverno, eram uma tristeza de vides nuas, mas no verão eram uma fartura de cachos amarelinhos, ou pretos, sempre cortejados por bandos de passarada que dali levavam os bagos logo que começavam a pintar.

Nestas cogitações restava ao sobreiro um consolo; O local altaneiro, o pequeno descampado como terreiro privativo, o privilégio de vista e controlo de toda a vida nas hortas e o seu exotismo no meio de tanta verdura e frescura, traziam alguma alegria a uma vida solitária e de poucos préstimos. 

Assim como um deus menor, já envelhecido, no meio de toda aquela opulência e força de vida das hortas onde não falta a água nem o calor do sol nas tardes tórridas de Verão. 

Mas continuava a acreditar e cultivar outros atributos. E estava seguro que resistiria a qualquer média tempestade que, pela certa derrubaria a maioria das vizinhas mais folhosas e mimosas.

Até os próprios pássaros lhe passavam ao lado. 

Raramente algum passante, certamente desconhecedor do local, ou confundido com a ramagem, por ali pousava. 

Ah! Salvo os cata-piolhos que se entretinham a picar as rugosidades da cortiça, bastarda e quase lisa, em busca de algum parasita que por ali vegetasse. 

Mesmo as abelhas, que nas flores das laranjeiras e limoeiro, nas flores dos camalhões e valados, nos espigos de nabos, couves e cebolas e, de um modo geral, nas flores de todas as árvores, se atarefavam na recolha do pólen, não viam qualquer motivo para utilizar o sobreiro. 

Salvo uma vez, ainda na Primavera, em que um enxame, voando em turbilhão, ali ficou pendurado num ramo até que o dono velho do sobreiro, trouxe um tubo grande de outro qualquer sobreiro e, com assobios e pancadinhas, deu guarida à abelha-mestra e a toda a corte que logo se apressou a segui-la. 

Foi um dia agitado e lindo que ocupou lugar destacado na memória do velho sobreiro,finalmente eleito para qualquer coisa.

Mas, farto de carpir mágoas, chegava todos os anos a sua altura; o menino, quiçá já homenzinho, havia de aparecer por lá e encostar-se ao seu velho amigo, confiando-lhe as suas intimidades, apreciando-lhe a sombra e até limpando o pequenino terreiro privativo, à sua volta. 

Cada livro que as sombras contemplavam, cada carta que o amigo escrevia e cada meditação que lhe fosse confiada, eram mais que um prémio, eram a verdadeira força para continuar a viver e a guardar aquele lugar, para oferecer nas férias, o melhor lugar do vale, ao amigo de sempre.

As cartas lidas ali junto do confidente, as meditações, planos e projectos arquitectados junto daquele deus menor, as canções trauteadas e as largas horas de observações dos pássaros, das poucas nuvens que passavam, as verificações das alterações que se tinham verificado nas paisagens, e o simples olhar para coisa nenhuma, eram, ao fim de contas, uma das fontes da seiva que animava aquele sobreiro solitário e entristecido na maior parte dos seus dias, durante a maior fatia de todo o ano.

Na altura dos taralhões, lá pelas manhãs pardas e tomadas pelas maresias de Agosto, todas as caçadas começavam e acabavam ali.

O local tinha vista sobre todos os sítios em que eram armadas as costelas, desde poucos metros abaixo da base até junto das hortas da ribeira e abas da Lomba. 

Dali se detectava qualquer movimento dentro da área e se controlava qualquer acção estranha sobre as armadilhas. 

Depois o arame dos troféus,  com os passaritos pendurados pelos bicos, fazendo inveja aos passantes ocasionais, davam alegria e ânimo para os longos dias de solidão.

Passava, junto do sobreiro, o caminho que as mulheres tomavam, com os cântaros à cabeça em direcção à mina, para se abastecerem da melhor e mais fresca água das redondezas. 

As casas mais chegadas, desde a Chã à Barroca das Couves e Portela da Casinha, iam ali buscar a água para beber. 

Também muitos passantes no caminho, alguns metros acima, faziam um desvio para se regalarem com a frescura das águas daquela mina, feita a pá e pico, pelo grande artista, Ti João do Cerro, que nunca caiu nas graças do sobreiro, porque, enquanto ali trabalhou, nunca puxou à sua sombra, para dormir a sesta, preferindo sempre os eucaliptos e pinheiros do lado poente da horta. 

Entretanto chegaram os tempos em que até o amigo seguro começou a faltar. 

Como tristemente confidenciou o velho sobreiro, os planos que as cartas lidas e relidas, vindas lá das terras altas, acabaram por se concretizar e os tempos de paragem pela aldeia começaram a rarear. 

Ainda por lá ficou uns anos, pois a provecta idade e o isolamento não foram capazes de abatê-lo. 

Mas…

Até os deuses se vergam à passagem dos elementos da Natureza: a água ainda que fazendo a erosão da barreira onde um caminho acabou por isolar a velha árvore, não foi capaz de a destruir, mas o fogo que por ali passou, num dia de má memória, tudo derrotou.

Até aquele deus menor, com saudades e confidências.

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