O Manel era “Jerico” desde que nascera, uns cinquenta anos antes; herdou a alcunha do pai, que a fora buscar ao avô.
Todavia, nada mais impróprio que tal nome – era fino como o retrós e estava para nascer quem lhe fizesse o ninho atrás da orelha –.
Gabava-se de que ninguém lhe pusera, cuspinho na testa.
Passava os dias carrejando: umas batatas, no tempo delas; uns molho de ferrejo ou feno, para sustento do vivo no Inverno; as bilhas do leite que, diariamente, era ordenhado às vacas que viviam no lameiro, todo o ano.
A carroça da casa, de rodado baixo, com a ferragem já gasta pelo uso, era puxada pelo burrito cinzento, atrelado entre os dois varais.
O “Bandarra” estava ao serviço da família desde sempre e, esse sim, “jerico” de espécie, não era menos finório que o dono.
Raramente era lembrado das suas obrigações, por uma ou outra arrochada no lombo. Comia do que havia e era seco de carnes.
O “Manel Jerico” frequentara a escola, em pequeno, fazendo o exame da quarta classe, aos 11 anos; ao mesmo tempo guardava o rebanho comunitário, nos dias da família, ajudava os pais nas lides de amanho das leiras, lá para os lados da ribeira e minava-se por fisgar um pássaro, ou achar os ninhos, no tempo deles.
Nas sortes ficou livre; era fraquito de estatura.
Nesse mesmo ano juntou-se, pela primeira vez, aos homens que levavam “cargas” para Espanha.
Teve sorte, pois a carga era leve e, nem a nossa Guarda, nem os Carabineiros, deram trabalho nessa vez.
Mas não terá gostado da experiência, pois não voltou a responder às chamadas.
Talvez a cicatriz do “Aranha”, o olho cego do “Faroleiro”e o braço cambado do “Pirata”, fossem troféus que lhe metessem medo e lhe retirassem a coragem, necessária na vida de contrabandista.
Os cinco mil réis de cada carga, eram correspondentes a duas jornas, mas não compensavam os perigos, no entender do “Jerico”.
Talvez por isso tenha guardado a moeda, que ganhou na viagem que fez com a saca às costas, durante muitos e bons anos.
Num São João em que passaram na terra uns caldeireiros, O Manel pegou-se, de olho, com uma moçoila do clã e teve o azar de ser “caçado” a sair de trás de uns barrocos, com ela.
Por mais juras que fizesse, que não lhe havia tocado, foi em frente da ponta de uma naifa que se comprometeu a casar.
Apareceram os filhos, uns atrás dos outros, do primeiro ao oitavo.
Todos varões e de boa compleição física, ajudavam nos trabalhos da lavoura.
Na escola, não havia quem se lhes adiantasse; todos fizeram o exame e dois deles frequentaram o Seminário, vindo a ser Missionários, no Brasil e na África.
A Amélia, mãe cuidadosa, trabalhava, na terra, como qualquer homem: manejava o enxadão, ou a rabiça do arado, com grande perícia e poder físico.
O Manel andou por “franças e araganças” e fez de tudo um pouco: da construção de estradas à arte de trolha, de mineiro a garimpeiro de volfrâmio, de almocreve a feirante e de pastor a ganhão.
Apanhou o “pó” das minas, uma pedra comeu-lhe as cabeças de dois dedos, uma paulada, de um marchante de gado, deixou-lhe uma clavícula torta.
Claudicava da perna esquerda, talvez por causa do reumático, mas o pobre fígado era a maior vítima das fomes e bebedeiras, que foram o seu único alimento durante muitos e muitos dias.
Nunca nada lhe luziu nas mãos.
Se não fosse a Amélia, pobres crianças… comentava-se pela aldeia.
Um dia, no mercado da vila, já bem atravessado, meteu a mão ao bolso e acariciou a moeda de cinco mil réis, que ganhara muitos anos antes, no contrabando e de que nunca se separara.
Dirigiu-se a um cauteleiro e perguntou-lhe que jogo lhe vendia por cinco mil réis.
Meio bilhete… que pode dar um prémio de duzentos e cinquenta contos de réis. Uma grande fortuna, amiguinho, rematou o cauteleiro.
Feito o negócio, o Manel guardou as cautelas no bolsito da jaqueta e, durante muitas noites, teve dificuldade em adormecer; não lhe saía da cabeça a ideia do que faria com aquele dinheiro todo.
Daria um bom prémio à Sra. das Dores, uma casa, uma junta de vacas e uma carroça a cada filho; fatiotas para ele e para a Amélia e… contas e mais contas… não chegava o sono.
Dois ou três meses depois, já quase esquecido dos seus sonhos, noutro mercado, ouviu apregoar o cauteleiro.
Meteu, instintivamente a mão no bolsito e encontrou, amarfanhadas, as cautelas que comprara meses antes.
Chegou-se ao vendedor de sonhos e mostrou, sem grande fé – saiba-se lá porquê – as cautelas, pedindo que as rebatesse, se tivessem prémio.
O cauteleiro, atónito, branco como a neve que ainda não tinha ido toda embora, leu e releu a lista e olhando o Manel disse, simplesmente: uma grande fortuna, homem!
Você tem aqui uma grande fortuna: 250 contos de réis, da taluda.
Agora…terá de ir a um Banco e….
O “Manel Jerico” já não ouviu as últimas palavras; tinha caído fulminado aos pés do cauteleiro, de nada valendo os esforços do filho que o acompanhava e de outros populares que entretanto se juntaram.
Numa pequena pedra, no muro do cemitério da aldeia, ainda se pode ler, o que alguém um dia escreveu:
Aqui jaz o “Manel Jerico” que sempre foi pobre, mas morreu rico.