sexta-feira, 31 de maio de 2013

Ti’Chico “Manajeiro”


Naquele ano choveu até tarde; já Abril ia bastante alto e caíam, com alguma regularidade, bátegas de água, de se lhe tirar o chapéu. Gozavam os lameiros, os riachos e as nascentes, assim como a mata e o mato. Os juncos da ribeira nunca estiveram tão farfalhudos.

As vinhas, já bem compostas, sofriam com o “chove-que-faz-sol”, pois, nestas alturas, não há enxofre e sulfato de cobre que espantem o oídio e o míldio, que darão cabo de uma boa parte da safra da vindima.

O Ti’Chico pensava noutra; olhava para o céu, de manhã, quando se levantava e deixava-se levar, voando com o pensamento, por essas terras alentejanas, farejando nas chapadas de seara, do termo de Barbacena, onde havia de ir, com a sua companha, ceifar todo aquele trigo, aveia e cevada, na herdade do “Castanho”, lá para os lados de Santa Eulália, no Alentejo Alto.

Interrogava-se sobre o que sucederia a tanta palha; cada centímetro que o “pão” acamasse era mais uma dificuldade para os “ganhões” do seu rancho.

As pontas da “linha de corte” estavam bem seguras; o Chico Coxo dum lado e o Zé Taliscas do outro – homens de “dar mantulho”, a quem o trabalho não metia medo –. Mas... o resto?

Logo ao lado do Taliscas ia um outro “camarada” que sabia de “dobras” e, além de terror dos “manteeiros”, raramente endireitava as costas para enrolar um “paivante” de mortalha espanhola e, diabo de homem, nem precisava de beber.

Os “moços”, num total de cinco do 1º ano, três do segundo e dois do terceiro, eram a dúvida maior se o “pão” estivesse muito acamado e... chovera tanto!...

Os cuidados com os atilhos e a organização dos “rolheiros” teriam de ser redobrados; o “pão” tinha de ser junto e atado sem humidade. Os molhos eram mais pesados, porque o trigo cresceu muito e o peso ia sobrecarregar os braços. 

Pensava o Ti’Chico: reforça-se a “bóia”, fazem-se mais uns “altos”, dão-se uns gritos de estímulo e tudo vai correr bem. Ao cabo dos 40 dias da companha vou recompensar todos os camaradas e até os moços; o senhor Lavrador vai ajudar – vou pedir-lhe mais dois contos de réis e darei mais dez tostões, por dia, a cada “camarada” e uma lembrança aos “moços”.

Depois planeou a estratégia para formar a companha, que, desde os tempos do seu pai e avô, sempre deitara brado, nas freguesias da redondeza.

Na saída da missa, do último domingo, apareceu um outro manajeiro, de fora da terra, a fazer negaças a alguns camaradas do Ti’Chico e, nestas coisas, mais vale prevenir que... acordar tarde. 

Espalhou-se a notícia que o Lavrador de Barbacena chamara já o Ti’Chico e que ele até conseguira um dinheirinho extra para aquele ano; estava, pois, tudo seguro e todos confiavam no seu manajeiro, de sempre, que fora encarregado de pais, irmãos e filhos de muitos.

Os “moços” eram como que o fiel da balança; tanto no que se refere a desempenho como no que ajudavam – porque recebiam menos – a compor o quinhão dos camaradas. E com dez moços a companha estava muito bem equilibrada, ainda que alguns já fossem meios camaradas.

Dos trinta e nove pensados pelo Ti’Chico, trinta e sete já tinham apertado a mão. Faltava o “Gaitinhas” e o “Manel Carolo”. Era seguro que não se tinham comprometido com mais ninguém, mas os filhos a chamar, lá de Lisboa – para as obras do hospital grande -, poderiam fazer mossa. Havia que resolver o problema.

No domingo seguinte toda a gente já dizia que o Ti’Chico, que nunca os deixara ficar mal, tinha sabido negociar bem a companha: além de mais uns contos de réis, havia uns litros de gravanços e feijão preto, para distribuir por todos; é manajeiro para nos defender – ouvia-se no adro da igreja.

O “Gaitinhas” e o “Manel Carolo”, estavam de prosa, à saída da missa, num canto do adro. Sem saberem como, aparece o Ti’Chico, de mão estendida, dizendo que já os tinha procurado, mas era agora altura de se acertarem as coisas. E acrescentou, – como raposa velha, que todos reconheciam – se assim entenderem!...

Não restavam muito mais companhas ao Ti’Chico. Homem na casa dos sessenta, a quem o estômago e os ossos não ajudavam muito, deveria dar o lugar a outro, como ele já dizia há anos. A este respeito, falava-se à boca pequena no seu sobrinho – o “Truta” –, que tinha esperanças de vir a suceder ao tio. 

A maioria, porém, se não a totalidade dos habituais camaradas, iam pensando e confiavam que o Ti’Chico nomeasse o Manel Carolo, homem sanhudo e rijo, de poucas falas e riso raro, amigo do seu amigo. Forte como um touro e dócil como uma pomba, era, há mais de vinte anos, o “eixo da companha” e, ali onde o viam, tinha levado ao colo muitos aprendizes e até homens feitos, que estivessem em maus dias.

Na Terra era homem de poucos haveres, mas muito orientado e que raramente aceitava jornas; “trabalho no que é meu, e ajudo no que é dos outros, quando me pedem”. A ganhar, só na ceifa e numa ou outra “azeitona”. 

Os dois filhos e a filha, casados, trabalhavam fora. Ao que constava, o avô não se cansava de incentivar os filhos para que mandassem estudar os netos, não interessava o quê, desde que viessem a ser mais que pais e avô.

As razões do Carolo não ter vindo ainda a si, conforme confessou ao Ti’Chico, eram as inquietudes da vida e aquele cismar na volta a dar aos seus netos, todos a acabar a escola primária. Mas, cerrando os dentes, estendeu o braço e apertou, com força e sentimento, a mão do Ti’Chico. 

Imediatamente, e sem dizer palavra, o Gaitinhas fez o mesmo. Depois, baixou os olhos e confirmou o garoto mais novo, como aprendiz do 1º ano. 

Estava composto o naipe de 40 trabalhadores, mais o manajeiro, que havia de partir para terras do Alentejo, nos primeiros dias de Junho.

Em Maio, o Ti’Chico foi a Fátima. Rezou e meditou na vida, pedindo por seus familiares e seus homens e aconselhando-se muito com Nossa Senhora, de quem era profundo devoto. Desde a aparição não faltara a um único 13 de Maio, em Fátima. Ia também, às vezes, em Outubro, com a mulher e filhos.

Antes de partir, entrou numa loja e comprou quarenta e cinco terços, que mandou benzer a um padre que estava de serviço.

Como estava combinado, no último domingo de Maio, juntou-se toda a companha na eira do Ti’Chico, lá no cimo do Casal. 

Foram chegando todos, havia conversas de ocasião e o cenário constava de um cesto de pão alvo - de trigo -, cozido no dia antes, um presunto inteiro pendurado, um grande prato de queijos, um barranhão de azeitonas e uma cambalhota de chouriços. Sem faltar, é claro, um pipo de uns trinta litros de vinho tinto. Faca, cada um usava a sua navalha e os quatro ou cinco copos iam passando de boca em boca, sendo por vezes enxaguados na água do alguidar, junto da mesa.

O Ti’Chico agradeceu a todos e foi rápido nas palavras, dizendo que esperava a melhor companha de sempre – uma vez que seria a última que fazia –. Fez-se silêncio profundo e, por entre olhares, esperaram todos, mais palavras do manajeiro, que apenas acrescentou:

Todos sabem que a companha está viva, é a melhor das redondezas e assim tem de continuar a ser. Precisa de um novo manajeiro, que este ano ainda irá comigo, mas na próxima, será o vosso chefe. 

Quero só acrescentar que, sem desmerecer todos os presentes, o camarada que me parece mais capaz que vos orientar, chefiar e defender é o Manel Carolo. Não se esqueçam que é altura de alguém dizer alguma coisa, se alguma coisa houver para dizer; pois, a partir de agora, tudo o que fizerem será para ajudar o novo manajeiro, tal como sempre fizeram comigo.

Os poucos segundos de total e absoluto silêncio foram interrompidos pelo Gaitinhas – tido como o maior crítico do Carolo – que levantou o braço e, dirigindo-se ao Ti’Chico, apenas disse: “sempre assim foi e há-de ser, o que o senhor fizer, ninguém o há-de desfazer!” E estendeu a mão ao Manel Carolo.

Voltou o silêncio, e, sem que ninguém tomasse a palavra, todos foram comendo bem e bebendo melhor. 

O Ti’Chico foi passando por todos, petiscando com este, beberricando com aquele, até que ao chegar ao “Chancas” lhe perguntou o que achava do novo manajeiro. 

A resposta foi curta e eloquente: há-de ser tão bom como o senhor, que me fez “homem” a mim e aos meus dois filhos, aqui presentes. É fixe, é um grande camarada e pode contar com a rapaziada!...

O Ti’Chico encerrou o encontro com dizeres de circunstância, agradecendo a todos e dando os parabéns ao seu sucessor, que seria confirmado pelo senhor lavrador, na próxima ceifa, como o Manajeiro da herdade do Castanho. 

Foram correndo os dias, até que, na madrugada de 4 de Junho, um domingo, todos compareceram, ao romper da madrugada, no adro da igreja, onde duas carroças carregaram a “copa” de todos os camaradas e rapazes para a levarem até à estação de Abrantes, onde apanhariam o comboio para Santa Eulália. 

Atrás das carroças caminhava a companha, em magotes que falavam de tudo, sem quase nada dizerem. Durante quarenta dias, seria como se o mundo não existisse, até que voltariam para as mulheres, namoradas e pais, depois do dever cumprido.

Já dentro do comboio – para alguns a primeira vez que tal viam – ouviam-se as chalaças do costume; Dizia-se aos moços que deviam conservar uma pedra na boca, para dar sorte e para o comboio não sair do caminho, e para terem atenção quando viesse o revisor, pois queria os bilhetes na testa de cada um, etc., etc.

O Ti’Chico certificou-se de que tudo estava em ordem, sentou-se no banco, junto à janela e foi olhando os campos, vendo o “pão” e convencendo-se que não estava tão acamado como chegara a recear. Sem mais palavras, passou as duas horas até Santa Eulália em meditação, certamente já com saudades.

À chegada a Santa Eulália, gritou-se para apear a companha do Ti’Chico, transferiu-se a copa e acomodou-se o pessoal nas carroças que os carreiros tinham alinhado, no pequeno largo, junto da estação. 

Depois dirigiram-se à malhada da herdade do Castanho, no termo de Barbacena, onde havia de ser a morada da companha nos próximos quarenta dias.

Nesse primeiro dia, depois da ceia, o Ti’Chico entregou um terço a cada um, orientou a oração, habitual entre os “ratinhos”, no fim das refeições – os alentejanos não tinham esse costume –, e despediu-se, com “uma noite descansada para todos”.

sábado, 25 de maio de 2013

Um deus menor


Era ali, tendo as pedras como assento e o tronco como recosto, que me sentava nos dias quentes das férias de Verão. 

Teria os meus dezassete ou dezoito anos. 

Estavam em avaliação e análise os grandes rumos de uma, ou várias vidas. 

Decorriam os primeiros anos da década de sessenta, do século passado e frequentava a Escola do Magistério de Lisboa. 

Convergiam, em catadupa, várias ideias, sobre o curso, o pós-curso, a namorada, a pós-namorada, os estudos complementares, o serviço militar, o destino dos meus irmãos, tudo confluía para um grande grupo de assuntos cuja pendência ocupava muitos momentos de retiro e ponderação. 

Decisões muito pesadas para um adolescente, sempre controladas e geridas, acabaram por gerar o homem frio e calculista, rigoroso e ponderado sempre que grandes decisões e opções se lhe depararam. 

E, na sombra daquele sobreiro, terão sido lançadas muitas bases de uma personalidade e um carácter definidor da pessoa que talvez tenha sido homem mais cedo que muitos jovens do seu tempo.

Desde os primeiros exames, na Escola da freguesia, do concelho, ou do distrito – Liceu Nacional de Santarém -, sempre correu tudo bem; começava a habituar-me aos lugares nos pódios. 

Com objectivos definidos e superados, ia-se rasgando o horizonte estáctico, daquele lugar sobranceiro a todo o vale, divergente das aberturas que os livros iam fazendo naquele espírito ávido de coisas novas.

O sobreiro, último reduto de uma espécie em vias de extinção na zona, olhava para os pinheiros, os eucaliptos e a maior parte das árvores da horta e suportava a copa, sobre o tronco rugoso e ajoujado mais pelos anos que pelo peso. 

Afinal a vida que aí vinha, seria um pouco assim: o berço não fora de ouro, mas de outros matérias menos nobres, porém mais resistentes.

Humilde, estéril e sem préstimo, pois nem bolotas dava e a cortiça que deveria ser aproveitada cada nove anos, há décadas que nunca fora retirada. 

Tinha orgulho na sua folhagem, de um verde-claro-cinzento, resistente todo o ano, embora sem uma densidade que formasse uma sombra contínua e acolhedora. 

Não seria, pois, um primor de aparência; era, todavia, duro de lenho, sóbrio de seiva e parco de consumos. 

Invejava, claro, o limoeiro e as laranjeiras a quem davam, regularmente de beber e com o chão, em redor, coberto de tenra milhã e uns canteiritos de alfaces tenras e de um verde limpinho e convidativo. 

Apetecia-lhe, nos dias de maior canícula, descer até aos vimes que, saindo do valado da represa, erguiam as hastes muitos metros acima e eram continuamente visitadas pelas libelinhas, balceiras e rouxinóis que por ali atiravam as suas cantigas ao desafio. 

E, as mais altas das hortas, duas pereiras que lá crescer, cresceram, mas peras nunca ofereceram a ninguém. 

As videiras, sobre as paredes de todos os chãos, bordejavam as filas de milho e os canteiros de tomates e pepinos, até ao fundo das cebolas, dos melões e das melancias que estavam na última belga da horta do meio. 

No inverno, eram uma tristeza de vides nuas, mas no verão eram uma fartura de cachos amarelinhos, ou pretos, sempre cortejados por bandos de passarada que dali levavam os bagos logo que começavam a pintar.

Nestas cogitações restava ao sobreiro um consolo; O local altaneiro, o pequeno descampado como terreiro privativo, o privilégio de vista e controlo de toda a vida nas hortas e o seu exotismo no meio de tanta verdura e frescura, traziam alguma alegria a uma vida solitária e de poucos préstimos. 

Assim como um deus menor, já envelhecido, no meio de toda aquela opulência e força de vida das hortas onde não falta a água nem o calor do sol nas tardes tórridas de Verão. 

Mas continuava a acreditar e cultivar outros atributos. E estava seguro que resistiria a qualquer média tempestade que, pela certa derrubaria a maioria das vizinhas mais folhosas e mimosas.

Até os próprios pássaros lhe passavam ao lado. 

Raramente algum passante, certamente desconhecedor do local, ou confundido com a ramagem, por ali pousava. 

Ah! Salvo os cata-piolhos que se entretinham a picar as rugosidades da cortiça, bastarda e quase lisa, em busca de algum parasita que por ali vegetasse. 

Mesmo as abelhas, que nas flores das laranjeiras e limoeiro, nas flores dos camalhões e valados, nos espigos de nabos, couves e cebolas e, de um modo geral, nas flores de todas as árvores, se atarefavam na recolha do pólen, não viam qualquer motivo para utilizar o sobreiro. 

Salvo uma vez, ainda na Primavera, em que um enxame, voando em turbilhão, ali ficou pendurado num ramo até que o dono velho do sobreiro, trouxe um tubo grande de outro qualquer sobreiro e, com assobios e pancadinhas, deu guarida à abelha-mestra e a toda a corte que logo se apressou a segui-la. 

Foi um dia agitado e lindo que ocupou lugar destacado na memória do velho sobreiro,finalmente eleito para qualquer coisa.

Mas, farto de carpir mágoas, chegava todos os anos a sua altura; o menino, quiçá já homenzinho, havia de aparecer por lá e encostar-se ao seu velho amigo, confiando-lhe as suas intimidades, apreciando-lhe a sombra e até limpando o pequenino terreiro privativo, à sua volta. 

Cada livro que as sombras contemplavam, cada carta que o amigo escrevia e cada meditação que lhe fosse confiada, eram mais que um prémio, eram a verdadeira força para continuar a viver e a guardar aquele lugar, para oferecer nas férias, o melhor lugar do vale, ao amigo de sempre.

As cartas lidas ali junto do confidente, as meditações, planos e projectos arquitectados junto daquele deus menor, as canções trauteadas e as largas horas de observações dos pássaros, das poucas nuvens que passavam, as verificações das alterações que se tinham verificado nas paisagens, e o simples olhar para coisa nenhuma, eram, ao fim de contas, uma das fontes da seiva que animava aquele sobreiro solitário e entristecido na maior parte dos seus dias, durante a maior fatia de todo o ano.

Na altura dos taralhões, lá pelas manhãs pardas e tomadas pelas maresias de Agosto, todas as caçadas começavam e acabavam ali.

O local tinha vista sobre todos os sítios em que eram armadas as costelas, desde poucos metros abaixo da base até junto das hortas da ribeira e abas da Lomba. 

Dali se detectava qualquer movimento dentro da área e se controlava qualquer acção estranha sobre as armadilhas. 

Depois o arame dos troféus,  com os passaritos pendurados pelos bicos, fazendo inveja aos passantes ocasionais, davam alegria e ânimo para os longos dias de solidão.

Passava, junto do sobreiro, o caminho que as mulheres tomavam, com os cântaros à cabeça em direcção à mina, para se abastecerem da melhor e mais fresca água das redondezas. 

As casas mais chegadas, desde a Chã à Barroca das Couves e Portela da Casinha, iam ali buscar a água para beber. 

Também muitos passantes no caminho, alguns metros acima, faziam um desvio para se regalarem com a frescura das águas daquela mina, feita a pá e pico, pelo grande artista, Ti João do Cerro, que nunca caiu nas graças do sobreiro, porque, enquanto ali trabalhou, nunca puxou à sua sombra, para dormir a sesta, preferindo sempre os eucaliptos e pinheiros do lado poente da horta. 

Entretanto chegaram os tempos em que até o amigo seguro começou a faltar. 

Como tristemente confidenciou o velho sobreiro, os planos que as cartas lidas e relidas, vindas lá das terras altas, acabaram por se concretizar e os tempos de paragem pela aldeia começaram a rarear. 

Ainda por lá ficou uns anos, pois a provecta idade e o isolamento não foram capazes de abatê-lo. 

Mas…

Até os deuses se vergam à passagem dos elementos da Natureza: a água ainda que fazendo a erosão da barreira onde um caminho acabou por isolar a velha árvore, não foi capaz de a destruir, mas o fogo que por ali passou, num dia de má memória, tudo derrotou.

Até aquele deus menor, com saudades e confidências.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Manel Jerico



O Manel era “Jerico” desde que nascera, uns cinquenta anos antes; herdou a alcunha do pai, que a fora buscar ao avô. 

Todavia, nada mais impróprio que tal nome – era fino como o retrós e estava para nascer quem lhe fizesse o ninho atrás da orelha –. 

Gabava-se de que ninguém lhe pusera, cuspinho na testa. 

Passava os dias carrejando: umas batatas, no tempo delas; uns molho de ferrejo ou feno, para sustento do vivo no Inverno; as bilhas do leite que, diariamente, era ordenhado às vacas que viviam no lameiro, todo o ano. 

A carroça da casa, de rodado baixo, com a ferragem já gasta pelo uso, era puxada pelo burrito cinzento, atrelado entre os dois varais. 

O “Bandarra” estava ao serviço da família desde sempre e, esse sim, “jerico” de espécie, não era menos finório que o dono. 

Raramente era lembrado das suas obrigações, por uma ou outra arrochada no lombo. Comia do que havia e era seco de carnes. 

O “Manel Jerico” frequentara a escola, em pequeno, fazendo o exame da quarta classe, aos 11 anos; ao mesmo tempo guardava o rebanho comunitário, nos dias da família, ajudava os pais nas lides de amanho das leiras, lá para os lados da ribeira e minava-se por fisgar um pássaro, ou achar os ninhos, no tempo deles. 

Nas sortes ficou livre; era fraquito de estatura. 

Nesse mesmo ano juntou-se, pela primeira vez, aos homens que levavam “cargas” para Espanha. 

Teve sorte, pois a carga era leve e, nem a nossa Guarda, nem os Carabineiros, deram trabalho nessa vez. 

Mas não terá gostado da experiência, pois não voltou a responder às chamadas. 

Talvez a cicatriz do “Aranha”, o olho cego do “Faroleiro”e o braço cambado do “Pirata”, fossem troféus que lhe metessem medo e lhe retirassem a coragem, necessária na vida de contrabandista. 

Os cinco mil réis de cada carga, eram correspondentes a duas jornas, mas não compensavam os perigos, no entender do “Jerico”. 

Talvez por isso tenha guardado a moeda, que ganhou na viagem que fez com a saca às costas, durante muitos e bons anos. 

Num São João em que passaram na terra uns caldeireiros, O Manel pegou-se, de olho, com uma moçoila do clã e teve o azar de ser “caçado” a sair de trás de uns barrocos, com ela. 

Por mais juras que fizesse, que não lhe havia tocado, foi em frente da ponta de uma naifa que se comprometeu a casar. 

Apareceram os filhos, uns atrás dos outros, do primeiro ao oitavo. 

Todos varões e de boa compleição física, ajudavam nos trabalhos da lavoura. 

Na escola, não havia quem se lhes adiantasse; todos fizeram o exame e dois deles frequentaram o Seminário, vindo a ser Missionários, no Brasil e na África. 

A Amélia, mãe cuidadosa, trabalhava, na terra, como qualquer homem: manejava o enxadão, ou a rabiça do arado, com grande perícia e poder físico. 

O Manel andou por “franças e araganças” e fez de tudo um pouco: da construção de estradas à arte de trolha, de mineiro a garimpeiro de volfrâmio, de almocreve a feirante e de pastor a ganhão. 

Apanhou o “pó” das minas, uma pedra comeu-lhe as cabeças de dois dedos, uma paulada, de um marchante de gado, deixou-lhe uma clavícula torta. 

Claudicava da perna esquerda, talvez por causa do reumático, mas o pobre fígado era a maior vítima das fomes e bebedeiras, que foram o seu único alimento durante muitos e muitos dias. 

Nunca nada lhe luziu nas mãos. 

Se não fosse a Amélia, pobres crianças… comentava-se pela aldeia. 

Um dia, no mercado da vila, já bem atravessado, meteu a mão ao bolso e acariciou a moeda de cinco mil réis, que ganhara muitos anos antes, no contrabando e de que nunca se separara. 

Dirigiu-se a um cauteleiro e perguntou-lhe que jogo lhe vendia por cinco mil réis. 

Meio bilhete… que pode dar um prémio de duzentos e cinquenta contos de réis. Uma grande fortuna, amiguinho, rematou o cauteleiro. 

Feito o negócio, o Manel guardou as cautelas no bolsito da jaqueta e, durante muitas noites, teve dificuldade em adormecer; não lhe saía da cabeça a ideia do que faria com aquele dinheiro todo. 

Daria um bom prémio à Sra. das Dores, uma casa, uma junta de vacas e uma carroça a cada filho; fatiotas para ele e para a Amélia e… contas e mais contas… não chegava o sono. 

Dois ou três meses depois, já quase esquecido dos seus sonhos, noutro mercado, ouviu apregoar o cauteleiro. 

Meteu, instintivamente a mão no bolsito e encontrou, amarfanhadas, as cautelas que comprara meses antes. 

Chegou-se ao vendedor de sonhos e mostrou, sem grande fé – saiba-se lá porquê – as cautelas, pedindo que as rebatesse, se tivessem prémio. 

O cauteleiro, atónito, branco como a neve que ainda não tinha ido toda embora, leu e releu a lista e olhando o Manel disse, simplesmente: uma grande fortuna, homem! 

Você tem aqui uma grande fortuna: 250 contos de réis, da taluda. 

Agora…terá de ir a um Banco e…. 

O “Manel Jerico” já não ouviu as últimas palavras; tinha caído fulminado aos pés do cauteleiro, de nada valendo os esforços do filho que o acompanhava e de outros populares que entretanto se juntaram. 

Numa pequena pedra, no muro do cemitério da aldeia, ainda se pode ler, o que alguém um dia escreveu: 

Aqui jaz o “Manel Jerico” que sempre foi pobre, mas morreu rico.

sábado, 11 de maio de 2013

A magana



O“Rasga”entrou espavorido pela taberna dentro, deu um murro sobre o balcão e gritou: 

“Ti’Manel”, uma metade!... 

O taberneiro, na sua fleuma habitual, acentuada pelo arrastar da perna esquerda, assomou-se na divisória da cozinha e salvou:

Vem com Deus, homem!... 

Esteja com Deus, “Ti’Manel”!... Acrescentou o “Rasga” em tom completamente diverso do da entrada. 

Parece que viste o demo!... Vem para aí o mundo atrás de ti, ou quê?!... Ainda agora é manhã e já estás nesses preparos?!... 

Deixe-me cá “Ti’Manel”!... Quase nem preguei olho toda a noite, a pensar naquela magana. 

Ao romper da manhã, antes do Sete-estrelo, já eu ia a caminho da ribeira, com o meu “Farrusco” ainda com os olhos mal abertos. 

Chegado ali, no ponto onde a chapada bate com a ribeira, baixei-me atrás duns carriços e esperei… 

Clareou o dia; pássaros, moscas, rãs e outra bicharada da ribeira apareceram aos primeiros raios da aurora, mas, da magana nem sinal. 

E olhe que naquelas duas horas não desviei, nem por um minuto, os olhos daquele carreiro que vai dar ao touril, onde a gaja tem, sem exagero nenhum, uma boa cesta de caganitas. 

Ainda passaram dois laparotes, saltitando e negaceando, na sua inocência. 

Nem lhes liguei e não deixei que o “Farrusco” se agitasse; eu queria era a magana que se regala a tosar-me as couves do canteirito e os outros mimos da horta. Mas garanto-lhe que há-de pagá-las todas juntas… 

O “Tonho da azenha” jura que já a viu umas duas ou três vezes e garante que é animal soberbo, com um metro e meio, para mais, de comprimento e não pesará menos que uma boa chiba, de umas duas arrobas. 

Já gastei, com ela, para cima de quarenta noites e, logo hoje que alguma coisa me dizia que havia de ser o dia certo, apareceu o “Ti’Jaquim”com a água aberta ao romper da manhã. 

A magana, muito senhora do seu nariz, ou tem o dianho por ela ou é finória. Mas há-de cair!... Ou eu não me chame “Rasga”, em memória de meus avós, que Deus haja. 

Também o “Mané das cabras” costuma passar por ali, antes do sol-nado com o gado e os cães e já mais de uma vez me estragou o arranjinho. 

Depois, com aqueles dois cães, que até de ratos fogem… Uns verdadeiros espanta caça!... Uns lorpas, é o que são! … 

Mas não há-de ser mais teimosa que eu e não há-de comer-me as couves todas… Hão-de sobrar algumas, para a acompanhar na panela!... 

Começou a ser assunto de conversas a obsessão do “Rasga”pela lebre da chapada da ribeira. 

Alguns já chacoteavam com ele e perguntavam-lhe quando poderiam ver o troféu. 

De armadilhas com laços, a ferros, tudo passou pela mente do “Rasga” que, no entanto, já tinha decidido que a magana havia de cair com o chumbo do seu fuzil. 

Mas resistiu, heroicamente, a todas as provocações e gozos da rapaziada da terra. 

Até que um dia, pouco depois dos Reis, o “Rasga”entrou na tasca, com um imponente lebrão de um metro de comprimento e quase quinze quilos de peso, ao ombro. Não havia memória de um exemplar assim, nas redondezas. 

Veio gente de aldeias vizinhas e, em dois dias, o “Rasga” contou a história dúzias de vezes, para satisfazer os curiosos. 

Dizia, orgulhosamente: 

Na minha da ribeira, onde a chapada bate com o ribeiro, meia hora antes do nascer do sol, descia a magana, lampeira, para me dar cabo das couves. 

Estacou, onde a rodeira cruza a canada, levantou as orelhas que aqui vêm, e ergueu-se sobre as patas traseiras. 

Nisto, acerto-me com ela e levo a arma à cara. 

Miro-a bem no centro dos quartos dianteiros e zás, catrapaz: puxo os dois gatilhos e lá vai chumbo, quente e grosso. 

A magana, ferida de morte, deu um salto que parecia uma corça, berrou como um boi e foi cair, redonda, na minha veiguita, junto ao bueiro da entrada da levada. 

Corri para ela e levantei-a no ar! 

Com todo o meu respeito, descobri-me, mostrei-a ao “Farrusco” e às couves que ela não voltará a comer-me… 

Nunca terá sido caçada lebre de tal tamanho, nas imediações mais próximas daqui!... 

São caçadores, dos mais entendidos, que o dizem!...

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Vizinhos




A água da mina da Matagosa era a melhor coisa que “Prudêncio” encontrava naquelas imediações. 



Da Portela da Azenha, por toda a Amarela, subindo até à Pedreguina e entrando, depois, na vertente sul da serra do Corvo, até à Milharada, não havia uma pinga de água que se lhe comparasse. 

Ferrada, com cor levemente avermelhada, sabor intenso e frescura constante, nenhuma outra caía melhor ao resineiro. 


O “Prudêncio”pegava no ferro, ao romper da manhã, passava na cozinha, engolia umas sopas de pão de milho com café de cevada e metia no bornal um bocado de pão com queijo, ou, em dias de mais abastança, um naco de toucinho, e, agarrando, por fim, a garrafa do ácido, fazia-se ao caminho, tendo como primeira paragem a mina da Matagosa, onde metia uma barrigada de água e começava a volta. 

Junto da represa que entancava a água, afastava limos, folhas e outras impurezas da superfície e enchia a folha de couve, em forma de caneco, bebendo, com satisfação, uma meia litrada que havia de chegar até à mina do Ti’Domingos, na Milharada, mesmo no final da volta. 

Ali, por volta das onze horas, com umas centenas de pinheiros renovados, estava ganho o dia. 

É claro que os tempos não eram fáceis e, não era raro os resineiros fazerem uma segunda volta, depois da sesta, até ao pôr-do-sol. 

Pelo meio, havia que afiar o ferro, reabastecer a garrafa de ácido, jantar, esticar o corpo num boa sombra e, às vezes, aproveitar para regar uma represa de água, ou tratar de uns mimos. 

A resina do pinheiro, que naqueles tempos era toda aproveitada, seguia das nossas terras, em barris de madeira, para as fábricas de Ortiga, Alferrarede, ou para os lados de Leiria e Pombal, onde era destilada, extraindo-se a aguarrás (essência de terebintina) e o pez louro, que, por sua vez, dava origem a muitas e variadas substâncias que alimentavam as indústrias químicas, de perfumes, medicamentos, tintas e vernizes. 

Era a matéria-prima que servia de equilíbrio à economia de muitas casas de lavoura e dava trabalho a muita gente do povo. 

Quase de um dia para o outro, deixou de interessar. 

Confesso que gostaria muito de explicar aqui as razões de tal abandono, os motivos por que acabou a exploração dessa matéria-prima, mas não as conheço, nem nunca ninguém mas explicou, convincentemente. 

Mais tarde, os incêndios, de fortuitos passaram a rotineiros; as matas nacionais, primeiro e as privadas, depois, começaram a arder, ciclicamente, os resineiros acabaram, os pastores desistiram, os proprietários cansaram-se e, hoje, resta-nos a resignação de esperar para ver, em cada verão, onde será o próximo incêndio e que dimensões atingirá. 

Quero, singelamente, prestar a minha homenagem a todos “os Prudêncios”, de todas as nossas terras, que beberam água nas minas e ganharam a vida fazendo “as voltas”da renova do pinhal e, agradecer, em meu nome e no de tantos outros que puderam estudar e livrar-se daqueles árduos trabalhos, à custa de resineiros, pastores e outras pessoas que cuidavam do alheio, como se de seu se tratasse. 

Nota:Escolhi o cenário da Queixoperra para enquadrar a história que ofereço aos leitores do “Jornal – Voz da Minha Terra –“por duas razões: 

Por considerar que se trata de uma das aldeias onde o espírito e conceito de “vizinho”, se mantém muito vivo; 

E por ser a Terra onde meu pai nasceu, e viveu até aos vinte e cinco anos. 

E, era tão forte esse sentimento, que apesar de viver, depois, setenta anos, na Serra, manteve sempre aquele espírito gregário e de são e puro altruísmo, típico da sua aldeia de origem, a Queixoperra.