Durante toda a semana, foi grande o alvoroço em casa do “Ti’Zé do Casal”.
O pão não foi cozido à segunda-feira, como habitualmente, mas na quinta-feira e de trigo, em vez de milho.
Mataram-se algumas peças de criação: um galo e um chibito de leite.
Lavaram-se, a preceito, dois garrafões e encheram-se do azeite da melhor talha, e, igualmente, duas garrafas de vinho abafado e outras tantas de mel, encomendado ao João Cuco, que era quem melhor e mais asseado conseguia apresentá-lo na Terra.
Ao cair da noite, estava tudo arrumado em dois cestos de verga e uma pequena trouxa, com roupa.
Restava deixar passar o tempo até chegar a hora de arrancar para Alferrarede e apanhar o comboio, com destino a Lisboa.
Mal rompia a manhã, foi o Ti’Zé pensar os animais.
Depois, passou pela tapada, atrás da casa e baixou-se, na horta, para as necessidades.
Em casa, pôs os dois cestos atados com um cordel, à guisa de alforges, sobre o ombro e, com a trouxa no braço, fez-se ao caminho.
Nas três horas que demoraria até à estação, quantos pensamentos, projectos, lamentações, rezas e, vá-se lá saber que mais, passariam pela cabeça do Ti’Zé.
O que importava era poder ver, mais uma vez, uma das duas filhas, na casa dos quinze anitos e, ia para dois, internada no hospital de Dª Estefânia, em Lisboa.
Lá nada lhe faltava, nem sequer educação, pensava o desvelado pai, uma vez que a prima Deolinda a ia visitar, regularmente, e não deixava que nada lhe faltasse.
Se pudesse, tinha a certeza, até a saúde lhe levaria...
Atravessou três ou quatro povoados, onde pouco mais que os cães davam pela sua passagem – não gostava de sair atrasado – e cruzou essas aldeias ainda alta madrugada.
Pouco subira o sol no horizonte e já chegava à estação.
Comprou bilhete e sentou-se num banco, onde ainda esteve uma boa hora.
Com a primeira etapa vencida, apanhou o comboio e num dos bancos da terceira classe, arrumou os cabazes e a trouxa por cima, e foi olhando para os campos, em redor do rio grande, onde manadas de cavalos e gado diverso, pastavam naquela manhã, ensolarada de fins de Março.
Pela altura do sol devia ser meio-dia, quando desceu na estação do Rossio, em Lisboa.
Voltou a pôr os cabazes a tiracolo e a trouxa ao ombro e dirigiu-se para a saída, onde não foi difícil descobrir o filho da prima – o Rui –, que já o aguardava.
Os cumprimentos da ordem, as recomendações da família, a pergunta pela saúde da menina e lá seguiram no eléctrico do Conde Barão, para casa da prima Deolinda.
Ao chegar, a prima acabava de voltar da venda que tinha na Praça da Ribeira Nova, de onde trouxera uma imponente cabeça de pescada que seria cozida, com batatas e hortaliça para o almoço.
Cumprimentaram-se os primos todos e quanto à saúde da pequena Conceição, não eram boas as notícias, pois não tinham sido muito bons os resultados dos medicamentos aplicados.
E olhe que do melhor e mais moderno que há, pode o primo ter a certeza!...
Oh! Prima Deolinda, nunca nos passaria pela cabeça que assim não fosse. Sabemos que se a saúde se comprasse, não eu, que não tenho posses para tal, mas a prima que gosta tanto da nossa menina, já teria resolvido tudo!...
...Mas, Deus lá tem os seus destinos e que ao menos tudo seja por desconto dos nossos pecados.
O que a prima tem feito nunca lho poderemos pagar.
Deixe lá primo. A menina está bem tratada, aprende muito bem a fazer costura e renda, gostam muito dela e até vão ter pena quando lhe derem alta.
Ainda vão tentar mais uns medicamentos novos e outras coisas, mas só Deus pode salvá-la, ao que me dizem as médicas.
Graças a Deus não sofre muito e é muito bem tratada, disso tenho a certeza absoluta – tenho lá as minhas recomendações.
Deus há-de lembrar-se de si e de tudo o que faz por aquela infeliz, que sem a prima já estaria morta ou, sem aquela perna... e, com uma lágrima ao canto do olho, acrescentou, com embargo na voz:
Trouxe aí uma coisita que gostaria que fosse arrumada, pois já foi morta ontem.
Vamos já tratar disso. Depois almoçamos e vamos ao hospital; ela desconfia que neste fim-de-semana tem a melhor surpresa da vida – a sua visita, primo –.
Foi um tanto pesado o tempo do almoço e a viagem até ao hospital.
Depois foi a própria garota que revelando todos os conhecimentos e boas-maneiras que adquirira já em Lisboa, animou o pai, contando-lhe coisas, perguntando pelas pessoas da terra e se queria ir até ao Jardim Zoológico, para lhe contar tudo, pois quando saísse do hospital haveriam de passar por lá.
As quase duas horas de visita foram penosas: imaginar a menina coxa no resto da vida, sem uma perna, sempre doente, sem os cuidados a que já se habituara, tudo diferente, tudo... que martírio, ter de pensar em tudo aquilo.
Vidas!...
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