O centro do país – concelhos de Sardoal, Mação e Vila de Rei – coberto de pinhal, esteve ocupado por soutos de castanheiros, que muito contribuíam para o sustento de gentes e animais.
Hoje restam vestígios dessas árvores, cujas copas chegavam a atingir algumas dezenas de metros e a dar muitas arrobas de castanhas.
O meu avô, nascido nos anos de 1880, dizia-me que a quase totalidade dos terrenos da aldeia esteve povoada de oliveiras, sobreiros e, principalmente castanheiros, até começos do século XX.
Porém, a tinta e o cancro do castanheiro, quase acabaram com a espécie e deram entrada ao pinheiro bravo, que mudou, completamente, a paisagem destas terras do centro de Portugal.
O maior castanheiro que vimos, nas redondezas da aldeia, situava-se no termo da Saramaga, ao cimo das terras da Amieira Cova, a meia encosta entre a ribeira dos Tocos e o monte que a ladeia a poente.
Chamavam-lhe, o castanheiro dos Tocos. Era uma árvore imponente… mesmo majestosa.
Ainda nos anos 50, quando por ali andámos, tinha uma copa com uns 15 metros de diâmetro e o tronco media dez metros, de perímetro, sendo necessários seis adultos, de mãos dadas, para o circundar.
Dois metros e meio acima do solo, o tronco ramificava-se em diversas pernadas e ramos, que, começando com a grossura da nossa cinta, se estendiam por uns sete metros, até à ponta dos ramos.
Segundo a voz do povo, a árvore estaria perto dos mil anos: teria crescido nos primeiros 300, vivido até aos 600 e envelhecido nos restantes 300, ou 400.
O castanheiro servia de abrigo a homens e animais, especialmente a câmara que se tinha formado no interior do tronco, já carcomido e cercado de pedras e plantas selvagens.
Abrigava-se, ali, um pastor com umas dez ou doze ovelhas.
As castanhas da variedade bical, suculentas, fáceis de descascar e pilar, tinham sabor adocicado.
Com o andar dos tempos, os terrenos vizinhos foram sendo menos limpos. O mato e as silvas subiam pelas ramagens até meio da árvore.
O abrigo recôndito, no tronco, fora abandonado e apenas os mendigos nele dormiam, se ali passavam.
Nos finais dos anos cinquenta, num dia de Outono, gerou-se um burburinho na aldeia e logo se espalhou a notícia de que os lobos que tinham comido 3 reses na Saramaga, 4 nas Lercas e uma lá na Serra, tinham sido perseguidos, pelos cães, e estavam refugiados no castanheiro dos Tocos.
Tocaram os sinos, a rebate, e juntou-se o povo, nas várias aldeias.
Formaram-se grupos de caçadores, com armas e cães. Marcharam para os Tocos, com o cabo-de-ordens a comandar a campanha, e uma chusma de populares atrás.
No perímetro do castanheiro, aí a uns cinquenta metros da árvore, foram soltos e açulados os cães e gerou-se grande algazarra.
Porém, ao fim de largos minutos, apesar da impaciência de animais e gentes, nada tinha aparecido.
No cerco continuavam os caçadores, de arma aperrada, esperando.
O cabo-de-ordens foi junto dos caçadores e gritou, para o povo: o que lá estiver tocaiado há-de sair, a bem, ou a mal.
Pegou numa acha de palha e feno, acendeu-a, aproximou-se do castanheiro e lançou-a.
Pouco depois ardia, como tocha imponente, o que fora o mais representativo dos exemplares dos castanheiros da região – o castanheiro dos Tocos –.
Ouviram-se três tiros, tendo sido considerado certeiro o do único caçador da Serra – o António Perdiz –, tido como homem experimentado e artista no gatilho.
A fera abatida, foi levada para a aldeia do caçador que a abatera – a Serra, e foi pendurada no velho plátano, existente no pequeno adro da capela.
Não deve ter havido ninguém que não tivesse ido ver o lobo do castanheiro dos Tocos e veio muita gente das aldeias vizinhas; tratava-se de um soberbo lobo macho, com sinais de fractura antiga numa das patas traseiras e mais comprido do que um homem.
Foi atingido na cabeça e caiu redondo, no chão.
Meses depois pouco se falaria daqueles dois exemplares dignos do pincel de um artista: o lobo, que, tanto quanto sabemos, foi o último a ser morto por aqueles lados e um dos mais dignos exemplares da dinastia dos castanheiros, que provavelmente teria ultrapassado o milénio, por aquelas bandas do País.
Lamentamos o desfecho da história, nada edificante, que simboliza a extinção de duas espécies raras, na região onde temos as memórias da nossa infância e juventude:
O lobo (lupus canis signatus, Lineu).
O castanheiro (castanea sativa, Miller).
Que, entre outras, são personagens vivas da nostalgia daqueles viveres que marcaram, durante séculos a vida daquelas gentes simples que, amando árvores e animais, até à idolatria, assistiam, festivamente, à sua extinção.
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