Pouco mais de cinquenta metros, depois de atravessar a ponte da Ribeira, deixava-se o caminho, de carro, do Sanguinhal e mal se entrava no carreiro do lagar, descia-se uns dois ou três metros e, com todo o cuidado, a escada até à levada que ligava o açude, ao Sanguinhal do Lagar e, também atravessava a ribeira, aproveitando um tapume antigo, para apanhar a levada que seguiria, margem esquerda abaixo, até à Cabeça Gorda e à Caldeirinha.
Tinha muitos meeiros aquele açude da ribeira, que, noutros tempos, em alturas de não regas e caudal mais abundante, movimentava o lagar de azeitona, ao tempo, em ruínas e, assim, condenando a Serra a não mais ter outro lagar, durante várias décadas.
E, quando veio um novo engenho, a força da água da ribeira foi trocada pela de um potente motor de explosão.
O açude era montado e melhorado todos os verões e uma das tarefas era a caça às irós, a fim de diminuir, ao mínimo possível, os danos que elas causavam na represa.
Era um local especial para a fauna aquática, uma vez que, quando cheia, a foz da represa dava até aos lavadouros da ponte, onde não se acabavam as lavadeiras e a dispersão de restos de comida e dos detritos das lavagens.
Na primeira hortita, logo à entrada do bueiro que abre para a levada da margem direita, os mimos do Ti’Manel Rosa mal conseguiam erguer a cabeça debaixo do pessegueiro de pêssegos amarelos, assoberbado por uma latada que se estendia até sobre a nossa figueira, situada mesmo junto da estrema das duas leiras.
Quer uma quer outra das árvores traziam as raízes nas águas da ribeira; de lá subiam as balças e a vegetação dos freixos e trepadeiras, procurando mostrar-se, por cima daquele tecto de verdura, à luz e calor do sol.
Afinal a vida nascia de baixo e de cima: da água e do sol. As hortas, naquele recanto de frescura, estavam, pois, entre as duas vidas.
No espaço entre o pessegueiro e as videiras que vinham da horta do Ti’Manel Rosa e a nossa figueira de belos figos pretos, abeberados, de capa rota e bojo úbere, não havia qualquer cana de milho; estava, invariavelmente, dum e outro lado da estrema, povoado de couves-galegas, que, embora com falta de luz do sol, cresciam muito mimosas e tenras.
Havia, por ali, sinais de coelhos que, depois de saciados com a verdura apetitosa, aproveitavam o local para fazer ali o touril.
O local tinha duas finalidades, durante os meus tempos de férias: espaço de leitura, e lugar de descanso, nas manhãs de Agosto, quando tinha a redondeza pejada de costelas, armadas aos taralhões.
Comi ali muitos figos, pêssegos e cachos de uma videirita do nosso lado, salvo erro, da casta “fernão pires”.
Um conjunto de três pedras, colocadas, discretamente, pelo meu pai, e dispostas de tal forma que muito se assemelhavam a um sofá, dava mais comodidade que qualquer outro lugar na nossa casa.
Um forro de junco fresco, cortado na ribeira, dois metros mais abaixo, e ali estava um verdadeiro trono, digno de reis e príncipes que, às vezes, para ali eram trazidos pelos enredos dos livros que ia lendo.
Sentado, virado à ribeira, não via nem era visto por quem passava no caminho. Via, no entanto, alguns metros de levada na margem esquerda e o leito da ribeira, formado por uma mistura de tufos de junco, pedras branquinhas e água a correr, de gola em gola, sussurrando músicas tão do agrado de cardumes de peixes minúsculos que povoavam as poças da ribeira.
Na força do calor, viam-se mais pedras bulideiras, polidas pelas águas de inverno, que charcas de águas quase paradas.
Também, como sempre foi tão ao meu gosto, devo ter ali passado horas esquecidas, a pensar.
Recordei muitas vezes aquele local, quando me diziam se não queria reflectir um pouco mais, ao tomar decisões que poderiam parecer precipitadas, mas eram, de facto, resultantes de muita análise e ponderação.
Sempre fui homem de grande actividade intelectual; parecendo distraído, raramente desligo a máquina.
Naquele tempo arquitectava os caminhos da vida. Muito diferente, isso era ponto assente e seguro, da que desfrutava ali, no paraíso.
Teria de me convencer que lá longe, não sabia ainda onde, outros mundos me desafiavam e era preciso que aproveitasse, ao máximo, os gastos com os estudos, desenvolvendo as capacidades que sentia dentro de mim e continuando sempre, na liderança, ou próximo dela, em todas as situações que a vida me abrisse.
Sempre pela escada ascendente, deixando a descendente para os abúlicos, os fracos e os incapazes. Sempre na luta leal, nunca baixando os braços. Sempre subindo.
Então era o estudo; havia que estar sempre no topo.
O segredo era, tão só, nunca perder o tino, nunca levantar os pés do chão e ler muito, quer daquilo a que fosse obrigado pelos deveres diários, quer daquilo que pudesse complementar o que se ia, obrigatoriamente, aprendendo; isso passou a ser secundário para os meus objectivos.
E os caminhos nunca se me fecharam.
A definição da vida sentimental pôs-se algum tempo mais tarde.
Anos depois e já pelos meandros da vida, com um rumo definido mas ainda incerto, intrigado e sem perceber bem porquê, fiquei com a sensação, na última vez que a vi, que tinha chegado a hora. Havia que assegurar que o objectivo traçado era exequível.
Porém, não por ali, mas perto do Lis, o convite para um encontro na semana seguinte não podia ser aceite e, depois a retoma do trabalho e a ida para férias, eram factores de desencontro.
Depois do interregno não podiam voltar as dúvidas e um novo arrefecimento ou novas negas, que eu nunca aceitei como autênticas, podiam por fim aos meus projectos.
Analisava a minha paciência, caldeada de teimosia, e assente em muita segurança e sorria. Nunca desisti do objectivo final; a força do que tinha que ser foi, afinal, mais forte. Estava por ali o que procurava e segui nas rotas do caminho que defini.
Anos e anos, a fio, umas vezes mais excitado, outras mais calmo e sereno, nunca fui homem de abandonar o caminho, depois de meditado, ponderado e decidido.
Acaba-se, com o tempo, por chegar a duvidar se algo já começou, ou se qualquer coisa irá começar. Porém não faz parte do meu feitio, nem parece enquadrar-se comigo, a desistência e o abandono do rumo traçado e da luta pelos objectivos.
O tempo, não sendo nada de concreto, pois, na realidade, nem existe mais que o presente: a cada momento, o passado já lá vai e o futuro acaba de chegar.
Porém é um grande mestre e, naquelas calmas e cálidas manhãs, ensinou-me a aprender a esperar, não agarrado ao passado, mas aproveitando o presente para ver o futuro.
Sabia o que queria e na altura própria veio a recompensa. Tão simples como a confirmação de que afinal podíamos continuar os nossos projectos e era por ali que deveríamos ir.
Era a estrada por onde duas vidas seguiriam, lado a lado.
Num livro de Aristóteles acabei por perceber e, sobretudo interiorizar, que há muito de verdade quando se diz que a água só passa uma vez por baixo da mesma ponte.
Associei outros dizeres de gente mais simples e, por isso, mais do meu agrado, como aquele em que o poeta Aleixo glosa o vinho que vai para vinagre sem retroceder o caminho.
A conclusão de que, só por obra de milagre pode voltar a ser vinho, diz-nos, afinal, que não esperemos milagres, prevenindo-nos para que o vinho não chegue a ser vinagre.
Esses pensamentos iam todos ter ao mesmo fim; caminho traçado e assumido é caminho seguido.
E, no auge de mais um fim de serão, antes de apagar a luz, tudo se resumia à determinação e confiança que a Psicologia me ensinara: os complexos não servem para nada; a sublimação dos mesmos, pode e é, por norma, motor de força e factor de segurança, quer sejam eles, em génese, de inferioridade ou de superioridade. Acabam por caldear a força que nos move e impulsiona.
O peso e vazio do escuro, que tão bem simbolizavam o nada, ajudaram-me a adormecer, sem perceber o que teria ganho ou perdido e, em tese, se alguma coisa haveria para ganhar, ou perder. A solução era continuar.
Na próxima vez que nos vimos, esquecidos do vazio atravessado, rapidamente descobrimos o rumo a dois e desde então temos seguido o nosso caminho.
Valeu a pena a definição caldeada naquelas calmas manhãs de Agosto.
De objectivo em objectivo, sempre a pulso e sem afrouxar a corda tudo tem corrido bem e num balanço simples apenas ressalta uma conclusão:
As duas vidas que num dia longínquo, e como que por acaso, se encontraram e pareciam paralelas, afinal não o eram.
Desde cedo se foram aproximando e a convergência inevitável acabou por vencer.
Valeu e continua a valer a pena.