sábado, 23 de fevereiro de 2013

A peçonha



Havia, ao tempo, catorze viúvas no pequeno povoado e todos os idos eram bem mais novos que as respectivas esposas. 



Em contrapartida não morava, na terra, um só viúvo que pudesse ser esperança dalguma das mulheres sós. 

Nas redondezas, não havia nenhum caso semelhante e até havia muita gente de famílias cruzadas, pelo que pela resistência do corpo nada parecia justificar o caso da aldeia dos Barreiros, nos contrafortes da serra dos Medos, junto à ribeira Seca. 

Os bailes da terra acabavam muitas vezes por ficar quase desertos, pois os rapazes da terra iam para fora e os das aldeias vizinhas não pensavam casar por lá, uma vez que toda a gente pensava que não valia a pena arriscar uma viuvez certa. 

Alguém, de fora, mais letrado e examinado, levou um dia o caso até ao padre da terra e questionou o que se poderia fazer para esclarecer a estranheza que incomodava toda a gente. 

Por este caminhar, senhor cura, daqui a dias ninguém mais casará nesta terra, ou virá casar cá; Serão coisas do mafarrico? 

Não seria melhor fazer uma sessão de benzeduras e práticas para correr com o chifrudo e deixar esta gente em paz? Que mal terão eles feito, saberá o senhor dizer? 

Ora homem, são coincidências; pois que haveria de ser? Calhou a ser assim, mas com certeza, tudo voltará ao normal e acabaremos por esquecer tudo isto. 

Para o senhor que não é casado, está tudo certo; Porém, senhor padre eu não estava tão descansado: 

Um dos viúvos vivia amancebado, outro nunca se chegou a casar e segundo as últimas informações, nos últimos anos morreram na terra três homens solteiros e sem mulher, porém todos se ajeitavam, às escondidas e com mulheres casadas, da aldeia. 

Aquelas, ainda que viúvas, são especiais, pois despacharam o homem e o amante – viúvas a dobrar, quero eu dizer. 

E olhe que também se diz que nunca nenhum homem que, pela surra se ajeitou com qualquer mulher daquela terra viveu muitos anos, depois dos casos. 

Ouve cá, Francisco, parece que me trazes qualquer coisa em que ainda não tinha reflectido bem. Afinal o assunto é mais complicado que parece assim à primeira vista e pode envolver mais gente que se supõe. 

Hei-de ver o que consigo saber em confissão, não para fazer uso, é claro, mas para poder estabelecer algumas práticas que ajudem a reduzir os casos ou, pelo menos, a sossegar os homens. 

O padre saiu dali a pensar se não teria chegado a hora de tomar medidas drásticas e quando lhe faltava o sono, ao longo dos serões, magicava, com os seus botões: com a lista das viúvas na mão, começava a dizer o primeiro nome: Florinda da Quelha, e acrescentava: Ah! Pois!... Rosa Amélia, sim também!... Ti’Lúcia do Adro… Ana da Chica… Estrudes… Maria da Graça… Lurdes… Rosalina, do barbeiro que Deus tem… Efigénia… Bernarda… Maria Amélia…Ermelinda… Conceição e Engrácia…Ah! Esta não!... Pois, não há qualquer relação de causa efeito. 

Bem, talvez um pouco mais aliviado, deitou-se e adormeceu. 

Mas sonhos esquisitos e suores frios, despertaram-no a meu da noite e… Mas o homem da Engrácia morreu esmagado debaixo duma carroça, quando carrejava o centeio para a eira!... 

Os das outras, todos se finaram, se bem que alguns na flor dos anos, mas todos sem doenças graves…

Será que, ao contrário do que pensam, ainda um dia acabam por ficar, outra vez, todas viúvas ao mesmo tempo?... 

O sono do padre era cada vez menos, a vontade de comer há muito que se tinha afastado dele e começava a ser complicado gerir as audiências e confissões de tantas viúvas que cada vez mais tinham maiores necessidades de assistência religiosa. 

Pensou em transferência, passou-lhe pela cabeça a resignação e apoquentava-se com uma ideia que começava a martelar-lhe na cabeça: 

Será que, ao contrário do que pensam, ainda um dia acabam por ficar, outra vez, todas viúvas ao mesmo tempo?... 

Benzia-se, castigava-se com leituras prolongadas e meditações profundas, mas… deixar o bem bom é que não lhe passava pela cabeça. 

E, quem, como ele, nada tinha a ver com aquelas viuvezes todas, que nada tinha feito para que tal acontecesse, senão… 

Mais uma noite de pesadelos se aproximava e, embora não matassem, moíam muito! 

Acabou por adoecer e ser substituído por um novo padre. 

Nos primeiros cinco anos na paróquia houve três viúvas e dois viúvos. 

Daí em diante as estatísticas eram perfeitamente normais, com o número de viúvas ligeiramente superior ao de viúvos. 

Porém as viúvas do tempo do padre Alberto nunca revelaram qualquer facto relacionado com a morte dos homens, lamentando todas a falta que, um padre tão bom e tão santo, fazia naquela terra. 

Também o padre Alberto não teria conhecimento de qualquer anormalidade… para ele segundo um escrito vago, encontrado entre os seus papeis, a peçonha de padre existe e poderá ser, inclusive, coisa do Demo. 



quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

O salto



Os tempos medianos do século passado, especialmente no segundo terço, correspondentes a antes, durante e após a Segunda Guerra Mundial, pediram ao povo, sobretudo aos de mais fracos recursos, sacrifícios incalculáveis e deixaram marcas físicas e psicológicas, indescritíveis. 

Os países da Europa, desde os que estiveram directamente envolvidos na beligerância, aos que não entraram nos mais mortíferos e exterminadores combates da História, impuseram às suas populações custos inestimáveis e imprevisíveis, quer em vidas, quer em meios.

Portugal, ao tempo governado pelo auto-denominado Estado Novo, fortemente tutelado pelo regime Salazarista, não tendo entrado, directamente, nos mortíferos combates, nem tendo sofrido destruições maciças de equipamentos, usou a sua neutralidade, bastante ambígua, para fortalecer as reservas de ouro nos seus cofres e controlou o desenvolvimento das gentes, quer limitando ao mínimo as liberdades, quer cultivando a política definida pela trilogia de “Deus, Pátria e Família”. 

Finda a Guerra, enquanto por essa Europa se rasgavam novos horizontes, floresciam indústrias, cresciam escolas e universidades, em Portugal continuou a defender-se, até ao último folgo do então já anquilosado ditador, a cultura da casinha, do porquinho e da hortita, para criar os filhos e sobreviver. 

Até que, como seria inevitável, o país foi, inesperadamente, varrido por movimentos de libertação – classificados de terroristas, pelo Governo –, nos diversos territórios ultramarinos. 

Nos começos dos anos sessenta, os nossos jovens foram chamados às fileiras e enviados, “rapidamente e em força”, para os diversos teatros de operações. 

Mas uns quantos que dispunham de meios, conhecimentos ou motivações contrárias, recusaram a chamada e exilaram-se, por esse mundo fora. 

Os partidos, até então amorfos, terminaram a letargia e começaram a desenvolver a sua acção, quer ajudando na fuga dos que queriam escapar-se a uma guerra com que não estavam de acordo, quer começando a cativar a militância da juventude sempre generosa e ávida de novidade e aventura. 

Paralelamente a chamada para os países onde se começava a ganhar bem, onde era desejada a nossa mão-de-obra não qualificada, nomeadamente a França, Alemanha e Luxemburgo, falou cada vez mais alto e, houve regiões onde, no espaço de uma década, a população activa ficou reduzida a pouco mais de metade. 

No regresso das guerras coloniais eram pouco encorajadoras as oportunidades com que se deparavam os ex-militares. 

Restava, na maior parte dos casos a saída para outras terras, outras economias, outro estado de desenvolvimento mais compatível com o mundo novo que a recém iniciada rede de televisão ia espalhando por toda a parte, acabando por mexer com todo o “status quo” anterior. 

Mais uma vez, o que o regime sempre se recusou a admitir e não se preocupou em prevenir, aconteceu. 

Nos finais de Abril de meados dos anos setenta, a pressão do esforço das guerras, o descontentamento dos que tinham que ir ganhar a vida para outras terras e os ideais correntes que, desde Maio de sessenta e oito, em seis anos, portanto, tinham já invadido o país, mas não tinham conseguido vencer a blindagem do palácio de S. Bento, sede do Governo, que mesmo após a morte de Salazar, não deu sinais suficientes de preocupação com a angústia das populações. 

Uma “revolução sui generis” trouxe, finalmente, a nova esperança a muitos portugueses. 

De crise em crise, com percalços resultantes da falta de gente preparada para as tarefas da governação, com o regresso de centenas de milhares de portugueses, das guerras, dos territórios abandonados pelas forças armadas e de alguns que andavam exilados, passaram-se trinta e cinco anos e, qual ciclo menos brilhante, vão-se avolumando os problemas que as parcerias com sociedades mais evoluídas, as carências estruturais de meio século de hermetismo, as aberturas de fronteiras e a elevação dos níveis de instrução, teimam em fazer perpetuar-se por cá. 

Chegámos a níveis de confiança, de auto-estima, de tranquilidade e de bem-estar muito abaixo do que seria justo esperar, ainda há poucos anos. 

No fim dos anos sessenta, por casamento, tornei-me cidadão adoptivo de uma aldeia da Beira Alta, paredes-meias com Espanha, entre a Guarda e Vilar Formoso. 

A minha actividade de Professor, a família e o gosto por aquelas terras e gentes, bastante diferentes das da minha região da Beira Baixa, levaram-me a passar por lá, bastante tempo de férias. 

Passei a gostar daquelas gentes e dos seus costumes. 

No Rochoso, uma aldeia sede de freguesia, do concelho da Guarda, escondida dos ventos do norte e leste por um pequeno maciço granítico, tinham habitação, ao tempo, umas duas centenas de famílias, se bem que talvez metade lá não estivesse todo o ano – ausentes, principalmente em França e Alemanha. 

Nos meses de Agosto a população ultrapassava o triplo dos residentes habituais. 

Nos tempos que por ali passei, apercebi-me que as principais actividades dos lá residentes, gravitavam entre o levar “a salto” novos trabalhadores para os países da Europa, ou levar e trazer “a salto” o contrabando que, em toda a raia, atingia níveis elevadíssimos e era fonte de subsistência para muitos passadores, que davam o corpo ao manifesto e faziam engordar os verdadeiros contrabandistas. 

Desse modo, “o salto”, era das poucas actividades rentáveis, além do dinamismo que ia resultando do fluxo de dinheiro que chegava regularmente enviado por emigrantes, sobretudo de França. 

Famílias inteiras, desde crianças a velhos, procuraram meios de sustento e dinheiro que na sua terra escasseavam. 

A minha curiosidade, confiança e amizade com contrabandistas e passadores, forneceram-me inúmeras histórias daquela gente simples, tão do meu gosto, e enriqueceram-me com tão aperfeiçoada e elaborada técnica de dissimulação e poder de análise e observação de uma actividade que penso terá existido desde que o mundo é mundo e cujo fim não se prevê. 

Só que os homens, verdadeiros burros de carga, foram trocados por automóveis, camiões, lanchas rápidas e aviões.

Sem entrar no relato das peripécias e jogos do gato e do rato, entre guardas e contrabandistas, pode escrever-se um verdadeiro tratado sobre o conjunto de preceitos que preparam uma acção de transporte de mercadorias através da fronteira. 

Adiante-se que no contrabando, está sempre presente um pacto de sangue: o contrabandista presa a dignidade, a palavra, a audácia e o cumprimento da missão acima de tudo. Não rouba e faz gala da sua dignidade e competência. 

Quase todos terão sido presos, nos calabouços do lado de lá, ou já na nossa terra, mas têm um único comentário: fui preso “n” vezes, mas por roubar…”toque-le”, como me dizia, sempre o Zé Lines. 

Continuo a honrar a memória daquele meu amigo, acreditando em tudo o que me dizia. Vi que o código de honra daqueles homens era o seu bem supremo e, pela sua defesa eram capazes de quase tudo. 

Assisti a encenações de alibis para fugir às acusações de Guardas lá da terra e fiquei convencido do poder de imaginação e da capacidade de dissimulação daquelas gentes. 

Esconder uma carga ou uma pessoa é uma arte e quer contrabandistas quer passadores cultivavam-na até à perfeição, tornando-se exímios artistas...

Naqueles tempos, atravessar a fronteira com uma carga de vinte e cinco quilos representava um encaixe de vinte escudos; perder a carga ou ser apanhado pela Guarda era uma dupla humilhação: deixar de receber a paga, manchar a sua dignidade de contrabandista e muitas vezes deixar de ser convidado para novos trabalhos. Tudo isso aguçava o engenho. 

Já na outra actividade de passador de trabalhadores clandestinos, desde as nossas terras até França, ou Alemanha, os níveis de dignidade eram muito menores. 

A sabotagem, as guerras entre passadores e simples engajadores e o abandono antes do final do serviço eram frequentes. 

Os empréstimos de dinheiros e a cobrança de juros usurários eram o pão-nosso de cada dia. 

Enquanto entre os contrabandistas poucos crimes foram cometidos durante rixas ou deslealdades de “chibos”e “bufos” , acabaram na ponta de muitas navalhas, ou debaixo de agressões fatais, bastantes passadores de emigrantes.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

A pensão da dona Prazeres





Por cima dos armazéns de tapetes e alcatifados da CUF, num prédio antes da R. de Santa Justa, subindo de S. Nicolau para a Praça da Figueira, abria-se a porta nº 150, da R. dos Douradores; e pela escada larga e pouco iluminada, mesmo em pleno dia, subia-se até ao quinto andar, direito, onde se situava a pensão da dona Prazeres. 

A “família” era formada pelos sete hóspedes com dormida, tratamento de roupa, banho semanal, jantar e pequeno-almoço; seis comensais para almoço; duas criadas; a patroa e o sr. Cardoso, contramestre numa alfaiataria da rua de S. Nicolau, especializada em fardamentos de gala, para os três ramos das forças armadas. 

Este sr. Cardoso, era o homem da casa, desde que Estefânia Prazeres deixara o ti’Manel Rocha, artista calceteiro dos belos passeios da Lisboa desse tempo, e escolhera este snob, empertigado e exemplar de todos os ricos atributos do verdadeiro “chulo”, que ostentava o relógio com pulseira de ouro, o trancelim no colete de fantasia e uma grande “cachucho” no dedo, junto da aliança e, no mindinho da mão direita, um anel com brasão, comprado num qualquer antiquário e empenhado por alguém que, mais necessitado de dinheiro que de pergaminhos, se desfizera da nobreza. 

Escrevemos dona Prazeres, com letra minúscula, embora tenhamos a certeza que o sr. Cardoso já não poderá ler estas linhas e, se pudesse, já não teria aquela arrogância que o caracterizava, do alto dos seus cinquenta e muitos, naqueles anos sessenta do séc. passado, para exigir tal tratamento para “sua mulher”. 

Caso contrário, em defesa da sua “dama”, era capaz de armar escândalo de todo o tamanho, se não exigir que, por faltar ao respeito, fosse dispensado lá de casa. 

A dona Prazeres que, vinda dos lados de Penalva do Castelo, serviu casas de muito boas famílias, casou com o ti’Manel Rocha, de quem não teve filhos, talvez com dúvidas na sua paternidade, e conseguiu, um dia, ficar com aquela casa de hóspedes de uma velha patroa, que se finou, num dia de Todos-os-Santos e nunca mais deixou de lhe merecer uma mão cheia de flores no cemitério do Alto se S. João, e uma missa em S. Nicolau, em cada ano que passava. Chamava-lhe madrinha. 

Até que numa bela ocasião, como ela orgulhosamente contava, encontrou “o seu homem”, muito fino e de muito boas famílias, mas sozinho. 

Resolveram fazer vida a dois; que, nem ela nem o seu homem precisavam nada daquilo, mas, gostos são gostos e o destino assim o quisera. 

E, enlevada, perguntava se estava a gostar dos charutos, pois o sr. Barata, da casa Havanesa, mandou-os com muitas reservas, porque “a marca que fumava habitualmente tinha-se esgotado e, por uns dias, fazia todo o gosto em oferecer, ao senhor, aquela caixa, para, também, saber a sua opinião”. 

Com a maior das afectações e o snobismo que o caracterizava, o sr. Cardoso disse que mandasse a criada dizer que “o senhor, por uma vez sem exemplo, aceitava a substituição, mas esperava que fizesse tudo, para conseguir os habituais charutos”. 

Durante cerca de um ano lá na casa de hóspedes, nunca vimos sair o “casal”; pois o sr. Cardoso saía todas as noites, para um cabaret ali atrás do teatro Dona Maria e, ao cair da meia-noite, mandava chamar um táxi para percorrer os menos de duzentos metros que o separavam de casa. 

Com os hóspedes, era muito reservado, e apenas os professores e os irmãos Galvão, Joaquim e Carlitos, lhe mereciam alguma atenção. 

O hóspede mais antigo da casa era o Fernando, que respondia pela alcunha de Pimentel e trabalhava, como empregado de balcão, num armazém de tecidos junto do cinema Lis, ali aos Anjos. 

Homem na casa dos trinta e muitos, natural do Porto, era dos que mais sabia sobre o senhor; seria o único que conhecera o Ti’Manel Rocha, a rondar a casa, antes de se aboletar lá António Santos Cardoso, chegado com uma malita de roupa e, como ele gostava de dizer, “sem ter onde cair morto e comendo que nem um alarve, para compensar fomes antigas; … quem o viu e quem o vê; por certo já se esqueceu que ainda lhe cheguei a emprestar, duas ou três vezes, vinte paus!...” 

Naqueles tempos, eu o meu colega, prof. Agrela, o Fernando e o Américo, do quarto ao lado e o Nogueira, empregado na mercearia fina, Casa Tavares, ao lado da Confeitaria Nacional, na praça da Figueira, percorríamos muitas vezes os cafés da Baixa, as Ginjinhas e os Eduardinhos, as tascas da rua das Pretas, a taberna do Zé da viúva e acabávamos por ver quase todos os filmes dos seis ou sete cinemas das redondezas. 

Também os bilhares do Martinho, do Paladium, dos cafés da rua da Prata e da rua 1º de Dezembro, entre outros – e eram tantos os lugares de convívio na Baixa daquele tempo –, eram lugares de passagem e permanência obrigatória. 

Por fim, também as mesas daqueles cafés – dos que deixavam estudar, já se vê –, serviram de local de preparação de exames para liceus e faculdades; um dos recursos quando o dinheiro não abundava e juntávamos o útil ao agradável. 

Depois, por volta da meia-noite, era chegar à esquina de Santa Justa e chamar o “sereno”, que estivesse mais perto. 

Logo ele batia as palmas, com o sinal apropriado para que o colega da nossa zona nos viesse abrir a porta. 

Ali nas imediações de Santa Justa, até S. Nicolau, chegavam a juntar-se seis guardas-nocturnos, que acabavam por nos conhecer a todos. 

Tudo ia decorrendo normalmente lá pela casa de hóspedes quando eu e o outro professor nos despedimos; eu que dali a dois ou três meses ia para Mafra, fazer o curso de Oficiais Milicianos, arranjei um quarto na calç. da Graça; o meu colega ocupou um quarto disponível nas instalações da escola. 

Viemos a saber que houve grande agitação lá pela casa da dona Prazeres, pois o sr. Cardoso tinha chamado a polícia, para revistar tudo e todos, queixando-se que lhe tinham roubado um malão que tinha debaixo da cama, onde dizia guardar avultados valores em dinheiro, peças de ouro, colecção de moedas de prata e ouro. 

Ao todo, avaliava o furto em mais de dois mil contos – uma pequena fortuna para a época. 

Diligências e mais diligências que nem a polícia, nem nenhum dos hóspedes, nem as criadas e muito menos a dona Prazeres levavam a sério; mas todos colaboravam na farsa de que o autor se mostrava muito compenetrado. 

Não era segredo para ninguém que uma tal Lolita, bailarina e “décor-residente” no “Passapoga”, passava os serões com o sr. Cardoso, no cabaret junto do teatro, aumentando, em cada dia a conta do “seu querido Cardoso”. 

Das nove à meia-noite, tinham mesa reservada e garrafa de champanhe à disposição; depois a “estampa” ia ganhar a vida, no trabalho, e o “velho” ia para casa, deixando a conta cada vez mais carregada. 

Quando as coisas deram para o torto, isto é, a mesada da Prazeres, junto ao ordenado de contramestre da alfaiataria, começaram a não satisfazer as necessidades da companhia do cabaret, começaram a ser regulares as visitas do sr. Cardoso às casas de prego, para arranjar mais dinheiro de suporte para “os pedidos” da espanhola. 

Ora sem nada a entrar e com as saídas regulares, não duraram muito tempo as reservas do amante e, sem dinheiro, não havia mais amor. 

Restava a encenação do furto para justificar a sublimação dos valores que, com tanto gosto e a princípio ingenuidade, a boa dona Prazeres lhe tinha confiado. 

Quando a espanhola deixou de passar lá no cabaret, o “benfeitor” começou a passar os serões em casa, mais conversador com os hóspedes, mais solícito para a patroa e saindo, de vez em quando, para ir ao teatro ou ao cinema com a mulher e, muitas vezes, passando pelos cafés a ler o jornal e tomar a bica como qualquer vulgar cidadão. 

Até levava a dona Prazeres ao café! Dizia-me, espantado, o Fernando, que continuou na casa mais uns bons anos e acabou por ser o decifrador de todos os “investimentos” do Cardoso. 

Soube, ainda, que mais tarde a dona Prazeres não resistiu à sua angina de peito, ficando o sr. Cardoso, já velho e reformado, a viver o resto dos dias numa modesta casa de hóspedes, que o Fernando “Pimentel” lhe arranjou, lá para os lados dos Anjos, junto da loja onde continuava a trabalhar.