segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

O “Fortes”


O Domingos nasceu, e criou-se, nos contrafortes do Moradal, numa aldeia recôndita e muito aprazível, cuja vida andava à roda da ribeira do Cobrão que lhe corria sobre o meio-dia e ia engrossar a Ocreza, última tributária do grande Tejo, antes do Zêzere. 

Entre verdejantes matas de pinheiros, eucaliptos e oliveiras, restavam ainda os últimos tufos de castanheiros, restos dos soutos da região, que, anos atrás, ocuparam todas aquelas terras. 

Ao longo da água estendiam-se as hortas, estreitas e compridas, onde a muito custo de homens e animais se ia esgravatando o sustento e arrecadando milho, centeio, batatas e feijão, para as invernias das gentes e pastagens para o vivo. 

O Domingos era o quarto de uma irmandade de oito, seguindo-se às três raparigas mais velhas e deixando atrás de si as quatro irmãs mais novas. 

A família, remediada, tinha a sua junta de bois, o rebanho com umas vinte cabeças de gado, e o burrito para os pequenos serviços de carga, com ceirões ou de aparelho, e entre os varais da pequena carroça com rodados de ferro. 

No posto escolar do povoado, o rapaz foi até à terceira classe; daí em diante só na freguesia, uns três quilómetros acima, poderia fazer o exame do 2º grau. 

Consultado o senhor vigário, sobre o futuro do garoto, foi combinado que o Seminário seria o destino do único homem da casa. 

Se bem que a ideia não fosse inteiramente do agrado do pai, homem temente a Deus e devoto, que veria com melhores olhos, o lugar do filho à frente de uma casa de mulheres. 

Com os conhecimentos do padre, o garoto foi enviado para o Seminário de uma Ordem Religiosa, nos arredores de Braga, onde viveu tempos penosos, nos quatro anos seguintes. 

No quinto ano, estava o Domingos nos seus dezasseis anos, em meados de Março, abandonou o colégio e apareceu, com uma malita na mão e a cair de fome e cansaço, na Barroca do Cobrão.

Depois de dormir muitas horas a fio, procurou o pai e explicou-se: 

Meu pai, eu decidi que não serei padre; falei com o Superior do Seminário e disse-lhe que me queria vir embora. Não me levou a sério, pelo menos não o mostrou a princípio. Mas, depois, nem dá para acreditar a disciplina que me caiu em cima. 

Quando não aguentei mais… fugi e, não me pergunte como, consegui voltar a casa. O senhor padre terá a minha explicação, pois deve estar muito enganado sobre os amigos que diz ter naquela casa. 

A decisão foi muito mal aceite, desde os pais, às irmãs, passando por todo o resto das pessoas da terra; já para não falar no padre que ainda antes de ver o Domingos já o tinha condenado e só passados mais de quinze dias arranjou tempo para ouvir o rapaz. E, em confissão, como fez questão de exigir. 

Um bruto é o que ele é, dizia o padrinho, com ar de examinado. 

Podia vir a ser um fidalgo e vem acabar aqui, para vir a ser como todos nós, sem passar da cepa torta. Se quiser aprender a minha arte, não lhe levo nada; sempre é meu afilhado e até gosto dele. 

Além disso, ganhou, lá por onde andou, bom corpo, para malhar ferro. 

E assim foi; o Domingos havia de ajudar o padrinho e vir a aprender o ofício de ferreiro, especializando-se a fazer, reparar e desencravar fechaduras e a produzir e calçar todo o tipo de ferramentas para a lavoura. 

Quanto foi às sortes, já o padrinho dizia que o afilhado aprendia depressa e já sabia mais que ele; já podia ganhar a vida. 

No dia da inspecção, em que foi apurado para todo o serviço militar, não se juntou à malta para a almoçarada do costume e não regressou a casa. 

Comeu qualquer coisa numa taberna, bebeu uma cerveja e apanhou a camioneta da carreira até à estação, onde se meteu no comboio da Beira Baixa, com destino a Lisboa. 

Na cidade grande, procurou uns parentes que trabalhavam na estiva e fez também cargas e descargas de barcos, durante uns meses. 

Nesse tempo escreveu uma carta ao pai a dizer que estava noutro rumo, que iria fazer os exames no liceu para completar o que tinha aprendido no Seminário e depois havia de embarcar para ir conhecer mundo. Que não se preocupassem com ele, pois tinha saúde, ganhava para ele e viveria como escolheu, o melhor que pudesse. 

Antes do Natal desse ano, completou vinte e um anos e conseguiu entrar a bordo de um cargueiro, que tinha ajudado a descarregar, como ajudante da tripulação. 

Andou nessa vida quase três anos, até que, procurado como refractário ao serviço militar, acabou por ser detido e enviado para o Depósito Disciplinar de Penamacor. 

Evadiu-se e andou por Lisboa, até embarcar, de novo. Foi acabar no Forte Militar de Elvas, onde deveria cumprir sete anos de reclusão. 

Porém, com as boas graças pelo seu bom comportamento, a sua disponibilidade e habilidade para pequenos trabalhos da sua arte e o seu espírito aventureiro, havia, mais uma vez, de fugir, quando lhe faltava cumprir menos de doze meses de pena. 

Foi nesta altura que nos anúncios da sua fuga, apareceu pela primeira vez a alcunha do”Fortes”, que se evadiu, saindo normalmente, abrindo uma porta de que forjara a chave e acompanhando, com toda a normalidade os que saíam para a cidade. 

Não demorou muito a ser recrutado por quadrilhas de assaltantes que praticavam pequenos furtos e viviam a monte, muitas vezes com a conivência de populações que os encobriam em troca de alguma protecção. 

O “Fortes” fazia todo o tipo de chaves e não havia fechadura que lhe resistisse; era, por isso, muito requisitado para trabalhos da especialidade. 

Não tinha grupo certo e recusava a violência. Vivia, clandestino, de terra em terra, passando duas ou três noites em cada casa. Recorria às casas dos conhecidos das prisões, a quem garantia segurança e protecção e só saía de noite. 

Numa das passagens pela Serra, onde, ao que se dizia, o “Fortes” tinha um amigo, que fora soldado no Forte de Elvas, alguém disse ter visto, lá pelos cimos do casal, já ao lusco-fusco, um homem estranho, de estatura anormal, com um ar aterrador e um saco às costas, onde devia guardar as armas. 

Em surdina e com a máxima cautela, para não ser vistos, todos falavam que estava na terra o “Fortes” e, por isso, era necessário esconder ouro e valores, bem como trancar portas e janelas. O perigo andava por perto e havia que tomar todos os cuidados. 

Principalmente a garotada ficava aterrorizada quando se falava que o “Fortes” estava na terra. Recordo os quadros que se pintavam e o que se dizia sobre as quadrilhas a que pertencia. 

O meu pai, homem muito ponderado e sensato, explicou-me que o Ti’Augusto, do Cimo do Casal, foi soldado no Forte de Elvas e ficou amigo dum preso que, às vezes, o vinha visitar, mas não fazia mal a ninguém, principalmente na terra do seu amigo. 

Para mim o assunto ficou encerrado. 

Todavia, nunca ninguém me conseguiu explicar como era o “Fortes”, que visitava o amigo da Serra. Seria o Domingos, da Barroca do Cobrão que passava lá na terra? 

É que da boca do hospedeiro nunca saíu uma palavra sobre a assunto.