terça-feira, 9 de outubro de 2012

O felosa


O Jaime, nascido antes de tempo, deu que fazer a toda a gente, mas conseguiu safar-se das maleitas que o atormentaram, nos primeiros tempos de vida. 

Depois, arrebitou e parecia que tinha bichinho de carpinteiro. Nunca parava quieto e era preciso uma pessoa, só para cuidar dele e evitar que se queimasse, se afogasse, ou outra qualquer coisa semelhante. Não tinha receio de nada. 

Foi crescendo e, já na escola, nenhum colega se atreveria a pôr-lhe cuspinho no nariz. 

Todos os que tal tinham tentado, acabaram com um olho negro ou a cabeça partida, sem esquecer as mordedelas e caneladas que eram as marcas do garoto em quem se atravessava no seu caminho, ou com ele travava despique. 

Era finório e honrava o nome que tinha: Jaime da Silva Pardal. 

Aprendera, algures, o que com altivez repetia, quando lhe perguntavam o nome. 

Dizia, com os olhos pequenitos e muito arregalados: Jaime, como os ciganos, Silva como as balças e Pardal como os que o são. 

Um dia, por alturas do exame da terceira classe, no regresso da Aboboreira, onde tinham ido fazer a prova, pegou-se de razões com o “machacaz”, atirando-lhe à cara: passaste à rasca, pois nem contas sabes fazer; tem toda a razão quem te baptizou, não passas de um machacaz: dos mais toscos e brutos que por aí se vêem. 

O “machacaz” fixou os olhos no chão e respondeu-lhe: tu não passas de uma reles felosa das balças; tens a mania que és muito esperto mas não passas de uma dentada na boca de qualquer gato vadio. 

Lá manha não te falta; além disso, não vejo mais nada e, se te ponho as mãos em cima, vais ver como elas te mordem. Ganha corpo, miúdo. 

Cresce e aparece!... 

O Jaime engoliu em seco; o “machacaz” era um ano mais velho e deitava por dois dele. Mas, a partir dali, marcou a presa e pensou com os seus botões: ai sou felosa, vivo nas balças, não passo de dentada de gato!?... Ainda vais engolir isso tudo!... E hás-de ver como elas te mordem. 

Voltaram para a escola e, aí, só à boca pequena é que alguém se aventurava a chamá-lo pela alcunha que tinha recebido no caminho da Aboboreira. 

Só o “machacaz” fazia gala, ao contrário do que era seu hábito, em apregoar a alcunha do colega, até porque se percebia que o Jaime não gostava nada de tal nome, posto por um padrinho a que ele não via possibilidade de partir a cara. 

Cresceram e acabou por pegar a alcunha de “felosa”, posta ao Jaime Pardal. Já adultos, parodiavam os dois, bebiam o seu copito e, intimamente, não evitavam a sua alfinetada um ao outro, sempre que encontravam altura asada. 

Andaram na ceifa juntos, ajudaram-se em alturas menos felizes da vida, emprestaram dinheiro de parte a parte, participaram em muitas festas juntos e vieram até a ser compadres. Todavia, o “felosa” nunca esqueceu o espírito depreciativo com que o “machacaz” o baptizara, o que talvez não correspondesse ao significado que a grande maioria das pessoas lhe dava. 

Numa certa altura em que o “machacaz” se deixou dominar pela bebida e começava a ser gozado pelas suas atitudes de papalvo, veio, ao de cima, a vingançazinha que o “felosa” acalentara durante uma vida. 

Começou com umas aguilhoadas discretas, passou a provocações mais directas e, sempre que alguém gozava com o compadre, não o defendia, antes ajudava à missa. 

Um dia, já bem bebidos, à volta da mesa de sueca, onde o “galhana” e o “bode” jogavam contra o “gaitas” e o “ouriço”, travaram-se de razões e o “felosa” disse ao compadre: 

Pisaram-me aqui debaixo da mesa, mas não me parece que tenha sido o compadre que costuma deixar os pés em casa!... 

Por acaso até fui eu!... Desculpe lá, que foi sem querer, respondeu o “machacaz”. 

O “felosa” voltou à carga: É que pensei que quando você vem para a taberna deixa os pés na cama a fazer companhia à sua mulher. 

Pelo menos foi o que confirmou ontem, quando lhe disseram que fosse para casa, porque a comadre Rosa estava lá com um homem na cama!... Não é verdade?... 

Desta vez tem razão. Acaba de dizer uma grande verdade, confirmada por estes dois que a terra há-de comer. Estavam sim quatro pés na minha cama – dois dela e dois meus, claro! 

E que mal tem isso, compadre?!... 

Mas olhe que você, que nunca perdeu a mania que é esperto e vivaço, nem às felosas faz sombra. 

Andam sempre perto do ninho e não deixam que outros lá vão pôr os ovos… Pois você nem aos calcanhares desses passaritos chega!... 

Deixe-se de gozos, armado em esperto, e vá a casa ver que a sua mulher está lá, na sua cama, com outro!? 

O “felosa” virou costas e, pernas para que vos quero, não parou até à porta de casa. 

Entrou, de mansinho, chegou à porta do quarto e voltando-se para o casal que estava na cama, olhou atentamente. Depois, deu meia volta e, saindo porta fora, só parou na taberna, onde entrou e foi direito ao compadre: 

Enfrentou o “machacaz” e exclamou: Você, compadre, sempre me saíu um grande lorpa, que, afinal, não quer ser sozinho. Mas fique descansado que a minha não está nada com outro. 

Eu sabia isso, mas fui lá confirmar! 

Está com o mesmo, pois claro!...