terça-feira, 24 de julho de 2012

As batatas da Ribeira

Enquanto esperava pela água, de pé sobre o camalhão da levada, entre a nossa horta e a da “Ti’Lexendra”, o meu pai contemplava aquelas leiras de batatas, que não teriam nada parecido nas redondezas mais chegadas. 

Desde que se conhecia já “semeara” muitas arrobas de batatas, de muitas variedades, em muitas terras diferentes, mas novidade como aquela, era a primeira vez que via. 

Os três chãos da Cabeça Gorda – nome de família da nossa horta da Ribeira - estavam, naquele ano, todos “semeados” de batatas: os dois da borda da ribeira com batatas do segundo ano de produção, na nossa casa, e o chão de cima, o maior, com três sacas de “arran-banner”, importadas da Holanda. 

Era este chão de cima que enchia os olhos de quem passava, ou até ia de propósito ver semelhante maravilha: um verdadeiro matagal, todo parelho, em altura de plena floração, de cor branca – rosada. 

Os outros dois, com plantas mais fracotas, também não estavam mal, mas aquelas é que mereciam uma bela fotografia, como dizia meu pai. 

Se a produção fosse em proporção do que estava à vista, teríamos ali para cima de cento e cinquenta sacas de batatas – à roda de seis toneladas –. 

Aquele orgulho silencioso merecia mais atenção; o meu pai, como a maioria das gentes humildes do campo, tinham muito orgulho no que faziam de bom e reviam-se na obra que produziam, independentemente da quantidade e da escala em que labutavam. 

Comprar uma nova horta, receber mais um tostão pelas sangrias dos pinheiros, apresentar um porco desenxovalhado, caiar a testada da casa a rigor, e outras pequenas coisas, eram o orgulho da gente simples das nossas aldeias. 

As grandes coisas não eram para eles. 

Fiquei a saber que aquele chão, depois de lavrado, enterrou mais de quatrocentas paveias de rama dos pinheiros da courela próxima – Pontão –, trazidas por umas cinquenta viagens da carroça da mula. 

Carregadas e descarregadas pelos braços de dois Amorins – meu pai e o “Ti’Amorim Maia” que ajudou a enterrá-las e a pegar-lhes fogo. 

Depois de bem queimada a terra, foram espalhados uns oitenta cestos de esterco, que iam dando cabo do pescoço e das cruzes da tua mãe – dizia o meu pai, carinhosamente. 

Adubo, nem vê-lo. Estas, não têm uma gota e o consumo de casa será todo daqui. As dos chãos de baixo, podem vender-se, se aparecer comprador. 

A propósito, outro dia disseste-me que as batatas não se semeiam; plantam-se. Bem, nisso não quero meter-me, mas então por que raio é que o Governo deixa escrever nas sacas com estas batatas, batata de semente. 

Há aqui qualquer coisa que não se compreende lá muito bem. Olha aqui: sabes que já aprendi as letras e pelo menos isto está ao meu alcance: ba-ta-ta de se-men-te, não é verdade? 

Tem toda a razão; certamente quem autorizou a escrever isso não reparou. Mas não fique com dúvidas, porque as batatas são plantadas e não semeadas. Se continuar a dizer como sempre disse, não comete grande erro, pois a mais não será obrigado. 

Porém, quando ouvir uma pessoa com estudos dizer que as batatas se semeiam, tire as suas conclusões e saiba que se um dia falar com alguém a quem queira mostrar que sabe, deve dizer, andei a plantar as batatas e não a semear as batatas. 

Mas onde íamos nós? 

Ah, depois de plantadas as batatas, tiveram uma semana de tempo húmido mas sem chuva; o suficiente para grelarem e começarem a deitar raízes e, nessa altura vieram umas pingas que chegaram bem para a primeira rega. Tudo corria de feição. 

E, desde então, tem sido um louvar a Deus; isto pode ver-se. 

Quando começou a rebentar a flor, apareceram aí muitos escaravelhos e uma outra praga ameaçadora. 

Fui a casa, fiz uma calda de sulfato de cobre e com três pulverizadores dei-lhe uma primeira passagem. 

Uma grande parte da bicharada, raspou-se, mas ainda lá ficaram muitos. 

Mais três pulverizadores e foi remédio santo; na rama nem um só se via, mas muitos dos piratas esconderam-se na terra e podiam voltar a atacar. 

Estávamos na semana da Paixão e a lua-cheia trouxe duas valentes chuvadas, atrás duma trovoada de respeito. 

Vim logo aqui e o que vi: A bicharada que tinha descido à terra foi morta pela calda que a água da chuva arrastou das folhas e ficou tudo limpinho. O sulfato tratou deles – deu cabo do canastro à praga toda –. 

Só me parece que afinal “plantei” as batatas muito ralas e, se calhar, vão ficar muito grossas. 

Têm menos venda, mas como estas devem ser quase todas para gastos de casa, não tem muita importância. 

Tenho ainda de separar uma ou duas dúzias de saquitos para semente; para casa e para vender, pois isto que está aqui vai valer dinheiro; oh se vai!... 

Nesta altura da conversa já estava quase terminada a rega; meu pai acabava de cortar a água para a quarta das cinco belgas. Mais um quarto de hora e também se acabava a água do açude; os chãos de baixo seriam regados dois dias depois, quando a água voltasse a ser nossa – em partilha de sete dias, tínhamos três –. 

Saídos dali, passámos na azenha a ver se já tinha terminado o pão que tinha ficado a moer e a caminho de casa, ainda pude ver a fila de eucaliptos que meu pai plantou ao longo do caminho aberto pela CM na nossa da Lomba. 

Mais um bom trabalho que, passados anos, depois de evitar a erosão das terras do aterro, viria a render uns bons milhares de escudos, pela venda da madeira. 

Um dia, chamaram-me da alfaiataria do senhor Manuel Diogo, na rua de S. Pedro, em Mação: 

Pelo telefone, meu pai disse-me, orgulhoso: a horta deu 160 sacos de batatas!... Até domingo, se Deus quiser; na próxima semana já vais comer destas belas batatas. 

terça-feira, 10 de julho de 2012

Lameiro dos Barroquinhos




O Lameiro dos Barroquinhos, na encosta avesseira que sobe do Noeme até ao Monte Margarida, era dos lugares mais aprazíveis de todos os assentos daquela margem direita da ribeira que vai correndo para o Côa. 

Virado a norte, frente ao Rochoso que acomodado no pequeno morro do Calvário, era todas as manhãs acordado pelo silvo do trama que, vindo de Vilar Formoso, se detinha no apeadeiro para apanhar as pessoas que se dirigiam à cidade da Guarda. 

Acompanhado do Zé Lines, passei por lá horas esquecidas; umas vezes vendo despontar o sol, sobre a Senhora do Monte, depois de rasgar a maresia que nos finais de Agosto se entretinha a dar um último retoque nas castanhas do Abrunhal. 

Faltavam apenas dois meses para o São Martinho e a novidade ainda não estava bem composta. 

Na Rasinha, já se divisava o caminho velho da Cerdeira, por entre as vedações dos lameiros onde os vivos, pachorrentamente, tosavam as ervas. 

Pouco depois dos primeiros raios de sol, já a buzina do padeiro de Almeida percorria as ruas da aldeia e aviava as freguesas antes de irem para a missa. 

Também nos dias em que os ventos não sopravam, ou estavam de feição, chegavam as badaladas dos chocalhos e os balidos das crias atrás das mães, sugando o leite fresco da primeira refeição da manhã. 

Mais ao longe, lá para a folha da Senhora do Monte, um "Serra da Estrela", guardião do rebanho dos Moitas, atroava os ares com o ladrar profundo e medonho; provavelmente provocado pelo cheiro deixado por algum lobo que por ali se tivesse cruzado durante a noite. 

Dos assentos da Sapateira, até aos barrocos que, emoldurando as Fontainhas, parecem querer guardar a aldeia pelo lado norte, já se regavam as águas das represas e se colhiam uns mimos que iriam dar o tom verde ao caldo, nas panelas com o almoço. 

Pelo lado sul, junto aos lameiros do Enchido divisavam-se os vivos que esperavam avidamente para meter o dente nas ervas tenras. 

Junto ao apeadeiro movimentavam-se os passageiros que aguardavam o trama, depois de ouvir o apito, uns minutos antes, à saída da estação da Cerdeira. 

Os caçadores de taralhões – o professor e o amigo Zé Lines -, há duas horas que percorriam as redondezas da ribeira, espalhando, por baixo das árvores, as costelas, com as formigas de asas bem presas nos agudieiros e brilhando ao sol para atrair os passaritos à sua última refeição. 

Descansavam então, com uns metros de sol acima do horizonte, esperando que a passarada acordasse e se agitasse em procura da bicharada que iria satisfazer o apetite matinal e, para alguns, seria o encontro com as costelas – na aldeia chamadas costilos – e o fim de vida. 

Uma meia hora depois, dirigir-se-iam para o princípio da área de caça e começariam a primeira caçada, visitando todas as costelas para retirar as presas e repor as agúdias que morreram, ou foram comidas sem provocar o disparo da armadilha. 

Tinham então lugar as conversas do costume. O professor era curioso e o amigo muito solícito. O Zé Lines ia dando as novidades e regando as dentadas nas sandes de pão espanhol e chouriço com a garrafita de tinto, que o amigo nunca esquecia. 

Depois, ansiosos, começavam na tapada do moinho da ribeira e, durante perto de uma hora, visitavam todas as árvores onde estavam as armadilhas. 

Finda a caçada, seriam retiradas duas dúzias taralhões e deixadas, outra vez armadas, as oitenta e quatro costelas, que, duas horas depois, seriam de novo visitadas e levantadas. 

No intervalo entre as voltas pelas armadilhas, como já era costume, quedavam-se ali pelo lameiro dos Barroquinhos, sentados no cômoro da levada que distribuía a água por aquele e pelos outros lameiros daquela folha. 

Satisfazendo a curiosidade do professor sobre as artes do contrabando, o Zé Lines não se cansava de contar histórias, metendo as galgas e as fantasias habituais. 

O professor ouvia com toda a atenção e tomava notas num cadernito que trazia sempre consigo. 

Nesse dia, pelo fim da tarde, o grupo do Ti’Cabano da Parada tinha “faina”, pelo que, logo depois do pôr-do-sol, todos os “maquinados” deviam juntar-se no sítio número três e aguardar ordens. 

O Zé Lines sabia ler. Em garoto frequentou a escola lá na terra e completou a quarta classe. Era, pois, com recado escrito que, às vezes, o Lines era convocado e encarregado de passar palavra a um ou outro camarada da terra. 

No meio dos episódios do costume e com os piropos que iam mimoseando os guardas-republicanos, da aldeia e os guardas-fiscais de outras localidades, o Zé Lines tirou um papel do bolso das calças e estendeu-mo, dizendo: sei que o senhor professor é de confiança e então leia lá esse recado que recebi a noite passada. 

Mas, olhe que isto que estou a fazer só pode ser feito a alguém em quem temos tanta confiança como em nós próprios. 

Se precisar de ajuda eu ensino-lhe o que aí está escrito. Essa maneira de falar é a que os contrabandistas usam entre si e também para despistar os guardas, os carabineiros e os espiões. 

Dizia o papel: 

Amatriz, meia choina, maquinamos totios cangra coime do mercho chingados e assuquidos. Reta francha. Árgio o galhal cada vinte chulos artife chaira e briol chingato. Tramposa, grilo e naifa e terá fuganta tratar esgueirantes. Todo chingato não maquina e cada terá dois tratos. Terá argio o galhas trinta. 2 sacos de paivos e paquete de galletas. Fachos adicam altra ruta. Todos chegatos ergue pinante e diz a Tonio Petesgo: icho, intervo. Maquinamos, chefe é rei. 

Algumas palavras não estavam muito perceptíveis e a tradução que se segue poderá não ser rigorosa, mas o sentido é o seguinte: 

Amanhã, à meia-noite, todos prontos e preparados, junto da casa do padre, comidos e bebidos. Espanha. Cada um receberá vinte em dinheiro, pão, carne e vinho. Manta, assobio e navalha e terá pistola para tratar os intrusos. Quem estiver bêbedo não está pronto, cada um terá duas cargas. Receberá trinta escudos em dinheiro, dois pacotes de cigarros e um de bolachas. Os guardas serão chamados por outros caminhos. Todo o que chega levanta o braço p’ró Tónio Petesgo: cheguei pronto. Prontos, chefe é rei. 

O calão português, usado pelos contrabandistas ao longo das fronteiras variava de região para região e às vezes de chefe para chefe de grupo; porém a maioria dos carregadores conhecia o linguajar e sabia disfarçar mesmo que houvesse infiltrados nos grupos. 

Era vulgar haver ex-guardas no contrabando e alguns, no activo, para descobrirem rotas, grupos, fornecedores e tudo o que se relacionasse com contrabando. Se descobertos eram, não raro, eliminados à naifada. 

Depois de muitas explicações e as minhas tomadas de notas, acabei por saber que o "contrabandês", era resultado duma mistura de calão português, espanhol e francês, com palavras da gíria das regiões onde era praticado. 

Era um linguajar oral, pois a esmagadora maioria dos interessados era analfabeta. 

Foi usado, largamente, até aos anos sessenta do século passado; a partir de então, meios de transporte e comunicação alteraram as práticas dos contrabandistas e o trabalho de transporte de cargas acabou por se extinguir. 

Restaram algumas pessoas que iam e vinham de comboio, às quitandas junto da raia comprar pão, bolachas, caramelos e alpercatas para vender nos povoados onde moravam. 

Todo o contrabandista tinha orgulho no trabalho que fazia, pois no seu conceito não estava a fazer nada de errado. 

Fazer contrabando não é pecado nem indigno – não faz mal a ninguém e dá de comer a muita gente -, dizia o Zé Lines, pesaroso, porque rareava, cada vez mais, a chamada para mais umas cargas. 

E acrescentava: “Roubar é que não!...Toque-le!...”. 

Naqueles tempos, levar, ou trazer uma carga, através da fronteira entre Espanha e Portugal, rendia à roda de vinte escudos, coisa que um homem ganhava durante uma semana a trabalhar no campo. E, mesmo a este preço, havia mais gente que trabalho, nas regiões fronteiriças do interior. 

O Zé Lines contava as peripécias que tinha passado atrás das grades da cadeia de Vitigudino e da água com azedas e nabos cozidos, que davam lá aos presos. 

Olhe, senhor professor, nunca vi porcos como os espanhóis; tratam a gente como bichos. 

Para cá da linha, os “fuscos” nunca me puseram as mãos em cima. 

Só uma vez que trazia dois carregos tive de deixar um, para fugir ao “facho” que me perseguia, quando o achei em jeitos de puxar da “fuganta”. 

E fui centos de vezes a “Reta Francha”, com carregos de “alampio, paivos, adoçante, escarchantes, moca, pernantes, chaira e coisas que a gente nem sabia o que era”. 

Nas “becas” não se falava, claro. 

Havia, sempre, alguém que estava disposto a “adicar aos fachos” e, muitas vezes, iam disfarçar e prender os “jerigos”para a companha passar, à vontade, noutro local. 

Sempre fomos mais espertos que os “fachos” que não tinham “murchoila”que se visse. Era como nós dizíamos:

“Se prestassem para alguma coisa não iam para “fuscos”. 

Às vezes estávamos dois a “chingar na beca e quando víamos – os adicadores a cuscar – fazíamos cenas todas ao contrário, para depois ir aos nossos levar a ordem de avançar, em segurança. 

Nas “tainas e festas”, os “fachos” e os chefes comiam e bebiam connosco, nas horas em que os grupos passavam. 

Havia alguns “fuscos” que tinham sido expulsos, ou deixado a guarda, de livre vontade e, mais tarde, andaram nos carregos. 

Mas só depois de muito experimentados é que os chefes os levavam e, ainda assim, alguns acabaram na ponta de uma naifa, quando traíram a companha. 

Eu andei, quase sempre, durante mais de vinte e cinco anos, com o Ti´Cabano da Parada. O grupo tinha entre dez e doze homens, além do chefe. Só duas ou três vezes perdemos cargas. 

Era rijo o Ti’Cabano e sabia deitar a mão a um camarada que estivesse em apertos. Vi-o, muitas vezes, apertar o pescoço aos “fachos”. 

Lembro-me duma ocasião em que tivemos que ir mais longe. Foram três noites de viagem – uma, em Portugal e duas, Espanha dentro -. 

As cargas, pesadas, eram, ao que nos disseram, muito valiosas. Pensámos nós que se tratasse de açúcar, com outro nome que lhe davam: sacalina, ou lá o que fosse. 

O certo é que quase todos levavam duas cargas, no começo da viagem. 

O Ti’Cabano, como chefe, ia de reserva e não tomou carga, no início. Ficou com as mãos livres para apalpar o pescoço a algum guarda, ou carabineiro e dar ajuda a algum camarada em apertos. 

As vinte cargas iam todas distribuídas: oito levavam duas cargas, cada um e os outros quatro, uma carga. 

Os camaradas com duas cargas iam dois a dois, intervalados por um camarada com carga singela. 

O Ti´Cabano viajava, constantemente, ao longo da coluna, de trás para a frente e da frente para trás. 

Sobre a madrugada do segundo dia, ainda dentro de Espanha, foi dado o sinal de “fuscos na zona” e, de um momento para o outro fez-se a dispersão combinada e até as melgas se ouviam. 

Estivemos ali mais de duas horas quedos e mudos, a ser devorados por melgas e mosquitos, até que veio o sinal de avançar e acabámos por não saber o que se tinha passado. 

Só anos mais tarde, um dos camaradas, antes de se finar, acabou por confessar que tinha dado alarme falso, porque ia já à beira de cair ao chão de cansaço. 

Disse que o chefe sempre soube, mas nunca deu com a língua nos dentes, porque era homem muito direito e soube defender o camarada em dificuldades. 

Pedia, por isso, a todos que ajudassem e respeitassem o chefe. 

Sabe, senhor professor, era um regime de contrato de sangue. 

Seriamos capazes de dar a vida uns pelos outros e até havia alguns na companha que mal conhecíamos. 

Mas, a confiança no chefe era tal que, nesses casos, dizíamos: se o chefe os traz é porque confia neles e ai deles se algum dia virem o chefe das avessas. 

Contava-se, à boca pequena, que o chefe descobriu, um dia, um “facho” infiltrado no grupo. 

Ao contrário do que seria de esperar, não se deu por achado. Até que uma noite de inverno, numa travessia da Côa, lhe tomou a carga e o afogou, isto é, deixou afogar-se, uma vez que quando fingia puxá-lo da água, o empurrava para a corrente, até que desapareceu. 

O chefe, lamentando a perda da má rês, pegou na carga dele e mandou avançar. 

Tempos duros, próprios de homens de barba rija. 

Tempos saudosos, apesar de tudo. 

Dizia o Zé Lines, melancolicamente.

domingo, 1 de julho de 2012

Serra- -O princípio do tempo




O Vale das Lousinhas, entre a Chã e o Lavadouro, não passava de um pequeno brejo, com meia dúzia de chãozitos, em socalcos, nos lados da amostra de ribeiro, geralmente seco, onde cresciam as únicas canas que conhecia na área da minha aldeia – Serra-. 

Porém, com a sua pequenez e insignificância, era um dos meus locais preferidos nos dias de férias, quando o calor assentava, para me resguardar, para fazer tempo entre as caçadas das costelas que armava aos taralhões e para fazer as leituras dos meus livros. 

Na parte mais a nascente havia restos de uma pequena depressão, que fazia lembrar os fundos de uma charca de água ou a confluência de vários regatos e nascentes que ali se juntariam em épocas de chuvas. 

Havia pequenas solapas, que chegariam a um metro de profundidade, com os tetos de terra e lousinhas presas por raízes entrelaçadas e pedras em forma de lajes bastante leves. 

Eram as minhas cabanas que além de me servirem de abrigos se transformaram em locais de escavações e pesquisas arqueológicas. 

Encontrei lá pedras aguçadas, desenhos de restos de plantas e animais gravados nas pedras – fósseis – e bocados de cacos de barro, muito enegrecidos e espalhados. 

Andei por lá duas ou três férias, depois estive uns tempos sem lá ir e mais tarde o local era uma bouça de estevas e balças onde coelhos e talvez raposas tivessem os seus covis. 

Pela textura da terra e das pedras que escavava, fiquei convencido que se tratava de algumas estruturas de paredes, cheias de terra e daí ter concluído que no local terá havido habitações em tempos muito recuados. 

Provavelmente teria sido ali a origem da povoação que mais tarde viria a mudar-se e a concentrar-se uns quinhentos ou seiscentos metros mais a nordeste, junto do actual ribeiro do Freixo, num núcleo chamado Melhim e perto de outro local um pouco mais elevado, onde teria havido uma vetusta ermida que acabaria por servir de base às antepassadas da capela. 

Entre os dois núcleos (Melhim e Casal) teriam havido disputas de famílias pela posse das terras, vindo a prevalecer o clã do Casal que veio a ocupar a maior parte da área da actual povoação. 

Como base desta suposição está o facto das ligações entre os dois polos não serem diretas; uns quantos metros a sul viria a nascer a ponte do Freixo e outros tantos metros a norte, fixou-se a passagem da Barroca das Couves. 

As famílias mais antigas, até onde a nossa memória e os relatos de três ou quatro gerações nos levaram, terão sido os Moreira, os Pardal, Os Mendes e mais recentemente, mas ainda longe no tempo, os Marques e os Alves. 

Um apelido parece transversal a todos os anteriores: Serra ou Serras, que o meu avô admitia não ser originário dali, mas vindo de forasteiros das “terras lá de cima” que ali se fixaram pelo casamento. 

Ainda segundo a minha principal fonte de informações – o meu avô – em tempos muito remotos o Vale das Lousinhas terá servido de refúgio aos proscritos, castigados e até cemitério da aldeia – é assim como que um local pouco agradável e simpático para as pessoas da terra. 

Terá sido adquirido pelos avoengos do Ti’Manel Rosa que, vindos lá dos lados de Vila de Rei não ligaram muito ao que se dizia na terra sobre o lugar e acabaram por ficar com aquilo quase dado, uma vez que da Terra ninguém o quereria comprar. 

A barroca do Lavadouro, onde temos aqueles dois bocaditos, era, muitos anos atrás, atravessada, pelo meio, pelo ribeirito que corria de cima, do Vale das Lousinhas. 

Não descansaram os nossos, enquanto não mudaram o ribeiro para o poente, pelo meio das estevas abaixo até ao ponto em que, já encanado, o mandaram para a ribeira. Diziam que as águas que vinham do lado de cima da nossa, não prestavam. 

Quando por ali andámos, havia uma nespereira, três ou quatro laranjeiras, videiras por cima das paredes e duas ou três figueiras e macieiras. 

No meio do brejo, nos cômoros secos do ribeiro, tufos de canas que a fazer fé no desenvolvimento que alcançavam, traziam as raízes perto de água. 

Os figos eram bons. Na horta do meio, na figueira abêbra, os figos pretos eram carnudos e davam umas passas maravilhosas que o Ti’Manel Rosa reservava para ajudar o vinho a conseguir o doce suficiente para ferver. 

Não importava ao velhote que os pássaros e os miúdos comessem a outra fruta; os figos daquela figueira é que eram sagrados. 

A arvorezita cujo tronco carcomido era rodeado por duas vergônteas que suportavam os ramos, estava sempre coberta de espantalhos, moinhos de canas e latas e tudo o que o dono supusesse afugentar a passarada. 

Parece que os expedientes não resultavam, porque não se acabavam os pássaros sobre a figueira, debicando nos figos e, nenhum armador de costelas deixaria aquele sítio sem uma armadilha e, raramente, passava uma caçada sem levar dali uma anafada balceira, ou um apetitoso rouxinol. 

A coisa melhor do pequeno valado, ainda segundo as palavras do meu avô, seria a encosta soalheira do poente, para poiso de colmeias. 

Não havia, nas redondezas, colmeias de mais funda e mesmo já dentro do nosso mato, pois a estrema passava uns vinte passos acima da meia encosta, ainda havia colmeias. 

Sempre que havia uma vaga, nos três socalcos em que assentavam outras tantas filas de cortiços, logo alguém ocupava o lugar deixado vago. 

Em tempos passou por ali o lume – creio que no último incêndio dos anos noventa – e de então para cá o mato e as estevas assenhorearam-se daquelas paragens. 

Hoje os carreiros onde pastores e resineiros passavam, não são mais usados, porque não há pastores nem resineiros. Colmeias também desapareceram dos socalcos e, provavelmente também as abelhas terão descoberto novas paragens. 

Descer, por ali, do caminho da Renda para o Lavadouro, será quase impossível, pois estevas, balças e mato, formam um emaranhado impossível de transpor. 

Coisas dos tempos. 

Quem se lembrará hoje dos figos do Vale das Lousinhas, do sabor do melhor mel da região ou da lapa dos achados e lhe atribuirá alguma relação com o começo de uma aldeia vinda do princípio dos tempos? 

Não há descrições conhecidas desta localidade, aninhada ali nos contrafortes de um pequeno monte, cujo nome – Serra - , segundo a lógica, daí derivará, mas que pode não ter tido essa origem, segundo pequenos apontamentos que fomos ouvindo aos nossos avoengos e através deles, às suas memórias. 

Segundo os dados que fomos coligindo, sempre foi terra de mais imigração que de emigração. 

Continua, na boa tradição de hospitalidade, a receber novos moradores, que ali se têm fixado, definitivamente, ou no regime de segunda habitação.