terça-feira, 29 de maio de 2012

A folhinha das luas


Depois da ceia e das orações que a terminavam, o meu avô subia os três degraus entre a cozinha e a casa de cima, abria a porta da rua, rodando a aldrava, e ao canto do portão que dava para a tapada, fazia a sua última necessidade do dia, em pleno monturo que, naqueles tempos, revestia as ruas da aldeia. 

Voltava para a porta e, antes de entrar, mirava o céu, fixava-se no cata-vento da torre da capela do Sr. dos Aflitos – orago da terra – e voltava a entrar em casa, encostando a porta de cima, que sempre ficou no trinco, e descia até à lareira, onde, sobre a fogueira, fervia o caldeiro das viandas dos porcos. 

Chegado ao seu lugar, ao canto esquerdo da lareira, esticava a mão e retirava de um prego espetado na parede por baixo do vão da chaminé, a “folhinha das luas”, para dar ao neto que estivesse mais perto e perguntar como ia estar o tempo no dia seguinte. 

Depois de ouvir o que lhe liam, concordava ou discordava, segundo o que tivesse visto na observação do cata-vento e combinava com o meu pai os trabalhos para o outro dia. 

Os meus pais iam para a casa-nova, lá nas oliveiras da Horta Velha, passando antes pela taberna para avisar alguém sobre os trabalhos do dia seguinte, ou iam mesmo dar o recado, quando havia alterações ao combinado, às pessoas que habitualmente trabalhavam lá em casa. 

Nós os três – eu e meus irmãos – dormíamos na casa do Casal, com os avós e, normalmente ficávamos mais um pouco ao lume, pelo menos até se acabarem os madeiros, ou as chapotas, debaixo do caldeiro. 

A minha avó, rezava o terço e pendia, sendo mandada frequentemente para a cama, pelo meu avô, que aproveitava para contar umas histórias, ou dizer umas décimas de alguma cantiga de que mais gostasse. 

Era um excelente contador de contos e histórias, mas nunca o ouvi cantar uma cantiga, nem sequer assobiar uma moda. 

Já o meu pai, assobiava maravilhosamente, tinha entoação e gosto. 

No serviço militar, apresentou-se em Abrantes e não passou despercebida a sua queda para a música, tendo sido ensinado a tocar clarim, sem saber ler, sem conhecer uma nota de música e tendo apenas tocado o pífaro, de cana, atrás do gado. 

Por toda a vida teve, na sua especialidade da tropa – soldado clarim -, uma das suas coroas de glória.

E, orgulhosamente, acrescentava que aprendeu de cor os cento e cinquenta e três toques – na altura usava-se o clarim para tudo – e nunca foi castigado, ou chamado à atenção, por se ter enganado. Só não foi cabo clarim, porque não sabia ler, nem escrever. 

Meu avô, era um homem de estatura abaixo da média e franzino, de compleição física; dizia que passou dos dezoito para os dezanove anos por milagre, pois as maleitas que naquela época levaram muitos outros, mais valentes que ele, achacaram-no bastante, mas não o suficiente para o derrubar. 

Curou-se, mas na altura das sortes ainda ninguém dava nada por ele e por isso andou uns vinte anos a pagar a taxa militar, pois ficou livre. 

Desde então sempre teve saúde e a única coisa que o afligiu muito foi uma dor ciática que acabou por ser curada por um senhor de Chão de Mação, que lhe queimou um nervo dentro da orelha e foi remédio santo. 

Foi para lá de carroça, a contorcer-se com dores e veio de lá ao lado do carro, a andar normalmente. O teu pai é testemunha!... 

Santo homem aquele que nunca me cansei de recomendar a quem via com a maldita dor e sempre abençoei os dez mil réis que me levou pelo tratamento. Ainda me lembro que me pareceu assim como uma ferroada de abelha a morder na orelha, depois, quando dei por mim, nem me lembrava já da ciática. 

O meu avô contava muitas histórias e tinha muita habilidade para arranjar cenários e casos, quando queria ensinar alguma coisa. 

Preferia essa técnica a dar a entender que estava a dar uma lição – dizia que de muitas coisas nós já sabíamos mais do que ele e essas ele não podia aprender; de outras poderia ele ensinar-nos, assim nós quiséssemos aproveitar. E olhem que muitas dessas não vêm nos vossos livros. 

Detestava e não perdia muito tempo com fala-baratos e com quem se gabava muito de teres, sem explicar haveres; preferia mostrar dez e ter cem, que ter cinco e passar por senhor de duzentos; quem o enganasse uma vez, podia mudar de caminho, pois dali não levava mais nada. 

Mas recordo-me que ressalvava, sempre, um dito do povo com que discordava: “valem mais cinco de tarimba que dez de Coimbra”. 

Não estou de acordo porque uma coisa não substitui a outra e são as duas importantes na vida. Devemos respeitar a experiência de cada um, mas em Coimbra aprendem-se coisas que a experiência não é capaz de nos dar. 

Não direi que assim falam os filósofos, mas o meu avô também tinha a sua filosofia. 

Estas eram algumas das práticas que ia metendo nas conversas, mas sempre forjando personagens para dar corpo às suas doutrinas. 

Era um homem sereno, analfabeto, razoável em memória, bom nas contas de cabeça mais elementares, sério e confiado e, acima de tudo, meticuloso, calculista, programador de tudo o que fazia e mandava fazer. 

Ouvia antes de decidir: o meu pai, os homens que o acompanhavam nos trabalhos lá de casa, os netos quando vinham do colégio, e, se não ouvia mais, pelo menos publicamente, as mulheres de casa é porque talvez não estivessem ao seu nível. 

Um dia perguntei-lhe porque mandava sempre comprar a “folhinha das luas”. Se nem sequer sabia ler, para que lhe servia? E como nós não estávamos em casa, e as pessoas com quem andava todos os dias também não sabiam ler… 

Explicou-me então, com uma limpidez de raciocínio e uma coerência tal, que nunca mais me esqueci daquelas palavras: 

Talvez por causa da folhinha é que vocês tenham ido para o colégio. Todas as cabeças cá da terra me aconselharam o contrário e com razões que teriam convencido muitos; continuo convencido que estavam a ser honestos, pois, segundo me diziam, porque havia de deixar ir embora as pessoas que tinham uma das melhores casas da terra para se governar, não devia nada a ninguém e todos os anos ia mercando, aqui e ali, uma nova courela. 

Para quê ir meter-se em despesas que talvez levassem mesmo a ter de desfazer-se do que tinha adquirido? 

E para quê fazer dos netos aquilo que ele nunca tinha sido? 

Que pegasse num rapaz e o mandasse para o Seminário, ainda vá lá, podia compreender-se!..Agora para colégios, deixe-se disso compadre, dizia o teu padrinho!... 

Ora aqui é que entra a “folhinha das luas”, ao lado de muitas outras ideias que me vêm enchendo a cabeça há muitos anos: desde que tu nasceste. 

Depois sem dar a entender, segui sempre os teus trabalhos na escola. Até mandei saber como te tinhas portado num ano em que foste para casa dos teus avós, na Queixoperra, fazer a segunda classe. 

Em silêncio fui ouvindo e muito contente, porque as três professoras que te ensinaram disseram-me que podes ir longe; que gostavam de te ver professor, talvez para ensinares o avô a ler!... 

Olhava para a folhinha e ficava com ela na mão, horas a fio. Fazia uns riscos num papel por cada pinheiro que contava. Tinha umas pedras para não esquecer alguns dinheiritos que trazíamos por aí a juros…

Até que, um dia, na Serra do Corvo, a roçar mato, levantei-me e disse ao teu pai: 

Oh! Amorim, hás-de ir ali à Queixoperra e perguntar, ao compadre Armindo Pereira, tudo sobre o colégio do Mação. O Zé está a acabar a escola e temos de decidir o que vai ser dos teus filhos. De caminho passa também pela Maria Baleja e pergunta tudo sobre o colégio das Mouriscas, onde anda o dela. 

Como a tarde não ia longe do fim e os chuviscos não paravam, meu pai, arrumou a roçadora, tirou as dedeiras de cana, desapertou as polainas, pôs a saca às costas e preparou-se para partir. Então vou já! Esperem-me para a ceia!... 

Vejo que estás de acordo. Mas pede segredo nos dois lados; não é que precisemos disso, mas não quero que o assunto seja comentado, por enquanto. 

Mesmo lá em casa nem a Carmelinda, nem a tua sogra, precisam de saber nada, para já. Quando estiver tudo decidido e combinado, saberão o que se vai passar. Vai já fazendo as contas, vê o que temos, quanto precisamos e não podemos esquecer que onde for um, hão-de ir os outros. 

Não nascemos para luxos, nem somos fidalgos, mas não quero que façam figuras tristes, pois não serão menos que os outros; pelo menos os mais remediados, como nós. À noite, falamos depois da ceia, no palheiro da mula; até lá, nada!... Foste à Queixoperra por causa duma courela que lá vendem!... 

Fique descansado! Nunca cheguei tão depressa dum lado ao outro, nem quando ia namorar! Isso é o que eu penso, mas… sem a sua decisão; afinal é tudo seu. 

Vai e sabe-me tudo direitinho; há muitas coisas a tratar: em Outubro já o Zé há-de andar no colégio, vais ver!... 

Oito anos depois: seis, em Mação, e mais dois em Lisboa, deram-lhe a felicidade, que presumo deve ter sido um gozo e prazer indescritíveis, de ter o seu neto professor. 

Faço ideia da vontade que teria de gritar e chamar burros àqueles que puderam e não mandaram os filhos e netos estudar. Mas, sempre se dirigiu com humildade e bons conselhos a quem lhos pediu sobre o colégio. 

Que me lembre, nunca deixei um ano sem levar da feira de Mação a “folhinha das luas”, que o meu avô não se esquecia de me pedir. 

Depois, mais tarde, quando fui para Lisboa, mandava-a numa carta, até que… quando no serviço militar andei pela Guiné, soube que meu avô perguntava por mim e gostava imenso de ficar horas a ver as fotografias: gostava mais da de Oficial, em farda de gala, com um bonito boné; as outras, pela farda com camuflado e sempre com metralhadora, ou pelos cenários com muitas matas e poucas casas, não lhe agradavam. 

Acho que sofria como sabia e fazia o que podia: rezava. Tinha os dois netos, ao mesmo tempo, na guerra, na Guiné. 

Dois meses depois de eu voltar da Guiné, no dia do meu casamento, morreu um dos maiores homens que nasceu lá na aldeia. 

Não esperou e, tão tranquilamente como viveu, foi-se embora, não sem antes me dizer: não vale a pena marcarem o casamento à pressa, porque eu não hei-de lá chegar, mas já têm a minha bênção e ficarei a olhar por vocês, até ao fim dos tempos. 

Esta é uma história de gente genuína, tão simples quanto a simplicidade permite e que guardei para este Natal de 2009. 

No 42º Natal em que vela por nós, lembramo-lo, com sentida saudade. 

Que descanse em paz, avô Zé Lourinho!...

quarta-feira, 16 de maio de 2012

O lobão dos Bandos



Constava, entre os pastores dos Santos, que o maior lobo dos Bandos ia, todos os dias, beber água ao Casal dos Brejos, porque aquela água o tinha curado de um envenenamento, provocado por uma armadilha em que tinha caído, para os lados da serra do Caratão. 

Combinaram que haviam de se certificar sobre os hábitos do lobão – assim chamado por ser a maior fera em todas as serras dos Bandos e o autêntico rei daqueles predadores em todo o centro do País -. 

Foi escolhido o Zé de Aldeia de Eiras, mais velho dos pastores das redondezas, para analisar os locais, hábitos, cuidados a ter, horas e rotinas e tudo o mais que pudesse saber, com vista à elaboração de um plano para capturar a fera e eliminá-la, pois, só nos primeiros quatro meses desse ano, a sua matilha já tinha dado cabo de nove ovelhas, três cabras e meia dúzia de cabritos. 

Para o ajudar, no estudo do inimigo, o Zé escolheria três pastores. 

Também cinco cães tinham ficado inutilizados e outros tantos apanharam tais receios que fugiam a sete pés, sempre que andasse fera por perto. 

E os pastores não confessavam, mas tremiam de terror só de ouvir falar no lobão. 

O grupo, chefiado pelo Zé, incluía um pastor dos altos do Castelo, outro dos Santos e um terceiro do Caratão. 

O encontro seria meia hora depois do por do sol, atrás da capela do Castelo. 

Podiam levar arma para legítima defesa, se necessário, cajado com moca ferrada e faca de mato. Nada de cães. 

No primeiro dia, foram subindo no monte de forma a chegarem às vistas da represa dos Brejos já depois de escondida a lua e, sob orientação do Zé pastor. 

Como o vento, embora suave, soprasse de norte, fizeram a aproximação pelo lado sul, evitando assim o cheiro de bicho homem que a fera lobo apanhava a quilómetros de distância. 

Colocaram-se numa roda, de costas uns para os outros, espreitando as redondezas e de ouvido alerta para averiguarem tudo o que mexesse nas proximidades do Casal e da represa. 

Até ao romper da manhã não houve qualquer movimento nas áreas vigiadas. 

Quando o Sete-estrelo se escondeu, desceram para o local de partida e cada um foi para sua casa, combinando para meia hora depois do sol-posto novo encontro, para mais uma noite de vigília. 

Na segunda jornada, aí pela meia-noite, ouviram uivos em diversos picos distantes; não era muito de acreditar que viesse alguma coisa, mas havia que esperar. 

Olharam uns para os outros e o pastor dos Santos identificou a origem dos uivos que desencadearam as respostas, como partidos dos lados do Caratão, ou mesmo Vale do Grou e um último uivo teria sido emitido ali perto, por trás do Bando dos Santos. 

Depois, por volta das duas horas, um casal de rapositas, envolvidas em derriços, andaram por ali, calmamente. 

Mau sinal, disse o Zé; andarem tão à vontade é sinal de que não andam ali feras; vamos ter outra noite sem ver nada. 

Voltaremos amanhã e tantos amanhãs quantos forem preciso, pois a terra há-de dá-los. 

Ouviram dizer que ontem fizeram razia em dois rebanhos: um de Domingos da Vinha e outro de Alvisquer? E, pelos sinais, deve ter sido a nossa fera e a sua matilha. 

Na terceira noite, soprava uma brisa forte, dos lados do mar, mesmo ali por baixo de onde o sol se escondera. 

Redobraram de cuidados na aproximação e logo depois do lusco-fusco ouviram uivos de chamamento não longe dos cimos que vigiavam. 

Esfregaram as mãos de contentamento e, uma boa hora depois, desciam dois lobos, de orelhas muito arrebitadas e andar cauteloso. 

Estariam a uns quinhentos metros, da represa dos Brejos, do outro lado do grupo. 

O Zé de Aldeia de Eiras, fez sinal de silêncio e mostrou esperança de que atrás da guarda avançada viesse o lobão, que anda sempre bem guardado. 

Mais uns dez ou quinze minutos e, depois daqueles dois beberem uma barrigada de água, se não derem sinal, estou que irá beber o chefão. 

Servem de batedores e, ao mesmo tempo, de provadores da água, por causa dos venenos. É que o machacaz já ia indo desta para melhor e agora só bebe pelo seguro; é finório. É, com certeza, mais esperto que muitos de nós, que por aí andam. 

O lobão com um aspecto imponente, foi, finalmente, avistado pelos quatro pastores. 

Nunca imaginaram que houvesse uma fera daquele tamanho, com uma cabeçorra descomunal e uma bocarra que metia, seguramente, de uma só vez, uma rês de umas duas arrobas. 

Parecia meio desconjuntado de quartos traseiros, mas também não precisaria de fazer grandes corridas, pois trazia sempre protecção e seria muito difícil cair em esparrelas. 

Parou, a poucos metros da represa, esteve ao pé dos dois lobos que chegaram antes e chegando-se à água, bebeu durante largos minutos: acho que por várias vezes, comentou o Zé. 

Olhe que me fez perder três noites, mas teria perdido outras tantas se soubesse a corpulência do demónio do bicho. 

Não dá para descrever: é imponente; um autêntico rei dos animais, pois não creio que outro bicho seja capaz de se lhe adiantar; aquela bocarra mete respeito. 

Os colegas de vigília, igualmente admirados, só desejavam nunca o ter cara a cara. 

Depois de beber, bateu com o focinho nos outros dois, que estavam ali mirando tudo em redor e se puseram a andar até uma portelita ali perto. 

Foi a vez do lobão se deitar, aí a uns quarenta ou cinquenta metros e chegarem depois os restantes dois que, até então, ainda não se tinham mostrado. 

Aproximaram-se da represa e foram beber também; um de cada vez e sempre vigiando a área. 

Terminado o abastecimento ficaram por ali, afastados e de protecção ao rei que parecia estar dormitando. 

Aí umas duas horas depois, o lobão ergueu-se, uivou, prolongadamente e ouviu as respostas vindas dos cumes vizinhos, parecendo que estava tudo calmo. 

Sempre a passo, com os dois mais pequenos na frente e os dois mais encorpados na retaguarda, desceram a encosta, atravessaram a linha de água e caminharam encosta acima rumo ao topo do Bando dos Santos, onde, segundo consta estão as grutas que lhes servem de esconderijo, durante o dia e quando pressentem perigo, ou não têm necessidade de ir caçar. 

Estava agora definido o caminho de aproximação à represa dos Brejos e a volta para os refúgios algures lá nos altos das penedias do cume dos Bandos; a organização das guardas e a protecção do lobão. 

Mas não se pense que andavam escondidos ou com ares de receios: marchavam lentamente, paravam nos altinhos para observarem tudo em volta, contactavam uns com os outros. 

Até parecia uma patrulha como as que o Zé fizera na tropa, em Abrantes. 

Não se afigurava fácil apanhar de surpresa o lobão; antes de chegar a ele haveria de se encontrar as guardas avançadas, ou a cobertura de retaguarda. 

Mesmo em ataque, a matilha nunca se expunha toda ao mesmo tempo e retirava com ordem, como qualquer organização inteligente. 

Lá em cima, nos penedos do Côxo, sítio mais elevado e agreste destes Bandos daqui, há grutas onde as feras se reúnem e onde são distribuídas as missões de caça, de vigia, de protecção ao Lobão e até se combinam os acasalamentos entre as várias crias, enquanto estas crescem. 

Diz-se que, há muitos anos atrás, um homem viveu largos anos entre as feras que um dia o encontraram caído na serra, bêbedo e sem sentidos. 

Como os lobos raramente atacam os humanos, acabaram por levar o pobre infeliz para as suas grutas e ali lhe lamberam e curaram as feridas, lhe deram sempre carne fresca da boa e da melhor e acabaram por entender a linguagem gestual do homem e também fazer-se entender. 

O pior foi quando o homem, restabeleceu as forças e, cansado de viver entre os lobos, tentou ir-se embora. 

A uns quinhentos metros da toca onde estava guardado, um dos lobos que sempre o acompanhava, apercebeu-se que ele se preparava para partir e colocando-se à frente dele impediu-o de fugir, fazendo uivos de pedido de socorro, até que dois lobos lhe pegaram pelos restos de trapos que o cobriam e o levaram para as tocas. 

Só uns anos mais tarde, na confusão de uma batida, o homem conseguiu fugir. 

Porém, sempre que contava a sua história, acabava por se mostrar arrependido; estava bem melhor no meio dos bichos que aqui no meio dos homens! 

E depois das lendas, seguem-se as histórias: 

Dizem, os mais antigos, que o Senhor Doutor Samuel que tantas vezes atravessou os Bandos, montado no seu cavalo, para ir tratar os seus doentes por essas aldeias fora, foi socorrido pelos lobos dos Bandos, quando uma noite caiu do cavalo e ficou gravemente ferido. 

Foi aquecido e reanimado pelas feras e arrastado para local visível e de tal forma foram sentidos os uivos que as buscas acabaram por dar rapidamente com o médico e conseguiram salvá-lo. 

O Senhor Doutor Samuel sempre alegou que não se lembrava bem do que se passou, mas admitia que não tinha qualquer receio dos lobos; porque esses, dizia, não nos fazem mal! 

E rematava, sempre: 

Não há memória de um lobo ter feito mal a uma criatura humana.


segunda-feira, 7 de maio de 2012

O cabeço do loureiro


Um cabeço não está virado para coisa nenhuma; é um cabeço, elevado, acima das terras das redondezas, sobressaindo-lhes e projectando uma sombra maior sobre as terras avesseiras e as ribeiras que, de um modo geral lhe correm nas faldas, onde se situam as terras mais férteis e por vezes, lameiras de boas pastagens e hortas de terras de regadio.


O cabeço do loureiro, impunha-se, como uma barreira intransponível, como que a esconder as terras de Vila de Rei e os acessos mais facilitados pelo norte, acabavam por implicar uma boa hora de caminho, para chegar ao local de melhor aproximação.

Isto para quem se lhe chegava pelo Nascente, terras finais do concelho de Mação e termos da Serra e Alcaravela. 

Ainda se não vislumbrava sinal de sol no penedo da Lameira, Vale da Mata e Eirinhas e já o coruto do cabeço do loureiro, reflectia a luz que lhe chegava mais temporã.

Um desperdício, dizia o velho Tonho Roçador; lá, onde até os melros, tordos e perdizes se vão esconder, porque não aparece vivalma, já está quentinho. Aqui onde até os dedos se nos enregelam, com o codo das manhãs frias, só daqui a uma boa meia hora virão, a medo, as primeiras réstias de sol.

E ainda se diz que o Criador fez tudo bem feito! 

Eu, que já levo calcorreadas muitas milhas deste mundo, que já fiz de tudo um pouco, esgravatando o sustento para mim e algum para trazer para os meus, não tenho nada a não ser a força do meu trabalho; outros, nada fizeram, nem fazem e têm tanto que nem sabem o que é seu.

Está tudo bem feito, está! Para eles, pela certa; para mim, acho que não, e parece-me que sempre mereceria um pouco mais.

É verdade que nos quatro anos que andei na escola, eram mais os dias em que fugia para a ribeira, ou para a galderice, que aqueles que dedicava ao único trabalho que tinha na altura. Mas, era uma criança! 

E, de conclusão em conclusão, lá ia roçando o mato; trabalho que fazia com desembaraço e pelo qual era pago com dois ou três escudos acima dos outros ganhões contratados para o mesmo efeito.

Quando endireitava as costas para acigarrar, ou para urinar atrás de um pinheiro, encarava com o cabeço loureiro e dizia: até tu foste desenhado, pela Natureza, maior que os outros. E para quê, se ainda acabas por valer menos! Sim, que lá nos teus altos, onde já subi uma vez, o vento e o frio não deixam vingar nada e pouco mais lá vi que ervas rasteiras e água fresca. 

Entretanto, já com a encosta bem coberta de sol, e umas boas de dezenas de paveias de mato e carquejas roçadas pelo Tonho, chegava o Ti’Abílio da Júlia, com o almoço de pão, azeitonas, queijo e um naco de toucinho, para servir de repasto a meio da manhã e fazer o lastro para o palhinhas de três litros de vinho da produção da casa.

Antes porém, apertava os safões, metia as dedeiras de canas nos dedos da mão esquerda, tirava a roçadoira da saca e alinhava junto do Tonho, até que as sombras diminuíssem e chegassem as horas de almoço.

O Ti’Abílio, marcou um terço do corte para si e deixou os outros dois para o companheiro. E mesmo assim, passado algum tempo já a linha do corte ia avançada do lado do Tonho e atrasada uns metros do lado do patrão. 

O almoço caiu bem, a pinga foi gabada pelos dois e, como era hábito, lá vieram as tiradas do Tonho:

Oh! Ti’Abílio, vomecê também acha que a Natureza está toda bem feita? Estive, esta manhã, a olhar além para o cabeço do loureiro e, enquanto eu aqui cheguei a ter de esfregar as mãos que o codo eriçava o mato e arrefecia demais os ossos, lá, onde só algum pássaro ou qualquer outro bicho se encontraria, já o sol brilhava e, certamente, aquecia. 

E quem seria o gajo que inventou o dinheiro? Se não foi um grande lorpa há-de ter-se aviado bem! Mas os que a seguir o dividiram é que devem ter sido uns bons asnos: uns, nem sabem o que lhe hão-de fazer e outros, mal o vêem já lhe deram o destino.

Que lhe parece Ti’Abílio? 

Olha Tonho, em muitas coisas terás razão. Trabalhas de sol a sol e não sais da cepa torta.

Eu, que tive pais e sogros que me deixaram alguma coisa, trabalho tanto como tu e o que te parece? Achas que nado em abundância?

Às vezes basta uma aragem fora de tempo, umas chuvadas mal caídas, ou uma moléstia no gado e lá vai tudo por água abaixo.

Andamos aqui os dois a roçar mato, tu, és o melhor neste trabalho e não tens um dia sequer para descansar e ganhas mais que os teus camaradas que igualmente trabalham.

Ao fim do dia levas a tua soldada e eu? Se passar por aí o lume, se me vierem roubar o mato já roçado, se a terra não produzir, o que apuro ao fim de tudo? 

Não é que estejas, ao fim e ao cabo, melhor que eu. Levantaste-te mais cedo, sentiste o codo e aqui, nesta chapada, o taró que vem além dos lados de Vila de Rei é muito pouco amigo.

Mas tens saúde, vives honradamente, és livre, respeitado e… há por aí muitos mais desgraçados! Que isso não és, nem nunca foste! Graças ao teu trabalho e à tua honra e dignidade de homem. 

Quanto a tudo ter sido bem feito ou não, nem sei que te hei-de dizer? Já tenho a minha quantidade de histórias e por mais que pense, ainda não cheguei a nenhuma conclusão.

Mas, duma coisa tenho a certeza: se cada um fizesse as coisas como entendesse, então é que a desgraça seria total. Disso não me resta dúvida nenhuma. 

Olha, acabo por olhar para o cabeço do loureiro e ver que apesar do frio e do vento, andam por lá os passaritos e crescem lá ervas e flores.

Um dia, num sermão da Quaresma, ouvi um pregador dizer:

Olhai os lírios do campo, ninguém os semeia, rega ou alimenta e crescem lindos e maravilhosos!

E as aves dos céus, não semeiam nem colhem e têm sempre a mesa posta e a comida na mesa!... 

E recordo também aquele pastor que deitado à sombra duma azinheira, olhou para cima e pensou com os seus botões: como é que se pode dizer que a Natureza fez tudo bem feito! Uma árvore tão grande com frutitas tão pequenas – as bolotas – e além, aquela aboboreira, tão insignificante que nem é capaz de se erguer, com frutos daquele tamanhão - as abóboras -.

Afinal há muitas coisas, na criação que não fazem lá muito sentido.

E, mergulhado nos seus pensamentos, adormeceu…

Porém, passado um bom bocado, acordou estremunhado com uma bolota que se desprendeu da árvore e lhe acertou na testa, fazendo-lhe um pequeno galo.

Esfregou os olhos, olhou para a bolota que caíra, voltou-se para a abóbora que ali estava na horta e penitenciou-se de ter feito reparos à obra do Criador!

Olha se fosse como eu queria e as abóboras fossem geradas lá nos ramos das azinheiras!

E, ao levantar os olhos, reparou na atenção que o Tonho tinha dado a todas as suas palavras.