sexta-feira, 27 de abril de 2012

A passarada dos brejos

Meu pai e minha mãe na horta dos Brejos

Quase todas as Terras, sobretudo nas nossas Beiras, têm um, ou vários brejos. 

Mas, contrariando a etimologia e significado literário da palavra, a maior parte dos brejos não são terrenos baldios e incultos, matagais, pântanos ou lamaçais. 

São, de um modo geral, conjuntos de pequenas hortas, onde a água abunda, situadas no cimo dos vales, bem expostos ao sol e bastante arborizados. 

Não longe das povoações são os lugares mais apetecíveis para os pequenos canteiros de toda a espécie de legumes, para os mimos das casas e, geralmente bastantes árvores de fruto e, não raro, também, bastante verdura nos valados, com trepadeiras e tapetes de fetos e musgos sobre o solo. 

Uma coisa atrai a outra e, assim, facilmente se compreende a grande variedade de passarada, que aproveitando o ambiente para nidificar, acaba por ficar por ali e fazer pela vida, uma vez que abundam os meios de sustento, desde frutos a gramíneas das mais variadas espécies a todo o tipo de pequena fauna, tão propícia à alimentação das diversas aves. 

Especialmente na Primavera, é digna de audição a variedade de trinados das aves que, por lá, se atarefam no arranjo dos ninhos. 

A avaliar pelo desbaste que davam nas uvas das parreiras que emolduravam a horta dos vimes, deviam andar bem gordos e anafados os melros do cimo dos Brejos. 

E nem se davam ao trabalho de catar os bichitos que acabavam por dar cabo da fruta; com o calor, erva até querer, água sempre a correr e a sombra das laranjeiras, estavam nas suas sete quintas, os gafanhotos, grilos, lagartas, e um sem números de pequenos animais que por ali viviam. 

Porém, os bagos de uva, cheinhos e reluzentes, eram mais substanciais e, por isso, os eleitos para os bons repastos. 

Aquilo é comer e forricar, como dizia o meu avô, lamentando a vindima antecipada daquelas videiras; mas, tudo tem direito a viver e, sempre um ou outro acaba por pagar com a vida e fazer um belo caldo. 

Mas são poucos os que se deixam enganar pelas costelas, boízes, laços e pedradas; pousam nos espantalhos e riem-se de nós com um bago no bico. 

E já reparaste de que cor são os bicos dos melros? 

Bem amarelos!... Sinal de esperteza e malícia. 

Quando dão por nós, ali pela horta, dão meia volta, vão até ao cabeço do Lavadouro, ou mesmo até à Lomba e acabam por vir passar a noite aqui debaixo das nossas videiras. 

Assim, ainda mal nasce o sol, já os estardalhos têm o papo bem cheio e, na maior parte dos casos, já foram dar uma barrigada aos pequenitos que ainda estão no ninho. 

Só temem duas coisas: um gato bravo que por ali se abastece de carnes e as cobras, que também os perseguem. 

Já quanto a nós, nunca se viu maior descaramento. 

E enquanto comem nem cantam. Parece que aprenderam com o velho ditado da sabedoria popular: ovelha que berra é bocado que perde. 

Um dia, vi o meu avô a limpar e consertar uma velha gaiola abandonada lá por casa. 

Perguntei-lhe para que queria semelhante coisa, pois ainda devia lembrar-se que, desde que vi os pintassilgos do nosso quintal a envenenar os filhos presos nas gaiolas, jurei, que nunca mais prenderia nenhum passarito. E também não me parecia bem que o meu avô o fizesse. 

O bom homem, aproveitou para, mais uma vez, me transmitir toda a sua grande humanidade e respeito pela natureza: 

Os passaritos que aqui metias, não eram predadores de carreiras de videiras que deixavam totalmente vindimadas. 

Se queres a minha opinião, também não concordo com esta experiência que vou fazer, mas nesta altura aquilo já atinge tamanho de verdadeira praga e, as pragas são prejudiciais e acabam por ser reguladas pela própria Natureza. 

Então os gatos que acabam por eliminar alguns ratos e, como te disse, também os pássaros, as cobras, as aves de rapina – nunca viste os milhanos a pairar lá no ar? Que julgas que andam a fazer? – E as raposas não acabam a comer os gatos? 

É provável que eu não tenha argumentos para te convencer. 

A razão que te levou a por de parte as gaiolas é muito forte e digna de respeito. 

Mas, na Natureza, há leis naturais que regulam a conservação das espécies: no mar, há peixes que se alimentam de outros peixes e que são, por sua vez, comidos por outros. 

Em terra, há toda uma cadeia de espécies em que os que comem, acabam comidos. 

Até com os homens se passam coisas muito estranhas, que condenamos, mas existem, desde que o Mundo é Mundo e sempre hão-de existir: guerras, latrocínios, tiranias, escravatura. 

A lei do mais forte, do mais rico, do menos leal, do menos honesto!... E:

Hás-de ver muitos pés pisarem os de baixo – não ponhas o teu! 

Hás-de ver muitas faltas de respeito, de dignidade, de honradez – esquece isso! 

Hás-de ser tentado a ser pior que o que julgas mau – não desças, recusa o fácil! 

Hás-de sentir-te injustiçado e ver subir outros piores que tu – aguarda a tua vez! 

Como prova de que ouvi, percebi e aceitei os teus princípios, vamos partir a gaiola! 

E, que me conste, nunca mais se fizeram gaiolas lá em casa!....

quarta-feira, 18 de abril de 2012

A azenha da Renda




O Joaquim Caldaça era filhote da Ribeira das Caldeiras, mas foi muito cedo para a Quinta das Gaias, no termo de Sardoal, junto do ramal da estrada da Venda Nova, a vistas do convento. 


Os pais, caseiros na Quinta de Arcês, mudaram-se lá para cima, por ordem do senhor das terras e porque a Adelaide – mãe do Joaquim – era jeitosa para o amanho dos mimos e muito habilidosa para vender, na praça da vila, as novidades que arranjava na horta. 

O pai, cavador, tanto fazia num lado como no outro. 

Na Quinta das Gaias estava mais perto das tabernas, o que não deixava de ser uma grande preocupação para a pobre mulher. 

O casal tinha quatro filhos, um dos quais – o Joaquim – ainda garoto, que não jogava com o baralho todo – como dizia o pai –, desde que caíra, na ribeira, e batera com a cabeça no chão. 

Na escola primária do Convento, ali à entrada do Sardoal, onde o garoto foi matriculado aos sete anos, mostrou dificuldades, até que, já com catorze anos, fez o exame da quarta classe. 

A partir daí, acompanhava o pai nos trabalhos do campo. 

Porém, dada a frágil compleição física, começou a ajudar os pastores e, sempre que se podia escapar, era vê-lo na taberna, perto de casa, onde passava horas a ouvir histórias de passantes: candongueiros, almocreves, pedintes e gentes dos lugarejos vizinhos, que ali petiscavam e bebiam uns copos, antes de entrarem na vila, onde iam pagar a décima, aviarem uns remédios, ou comprar mercearia. 

Aos baldões, cresceu e fez-se homem. 

Foi-se acentuando o tique no olho esquerdo, que piscava, com intermitência e a claudicação da perna, do mesmo lado, que eram tanto mais notórios quando já estava com um grão na asa. 

Ainda assentou praça, em Abrantes, mas não passou de básico, acabando licenciado, e mandado para casa. 

Numa visita do senhor doutor Simão – um dos genros do patrão –, a Adelaide pediu-lhe que desse um jeito à vida do filho Joaquim. 

A sua grande preocupação era o que haveria de ser do rapaz, quando ela um dia faltasse! 

O doutor prometeu que trataria do assunto e não se esqueceu; procurou um velho amigo – o José Rodrigues – que era o delegado da Hidráulica do Tejo, no concelho de Sardoal e falou-lhe das preocupações da empregada lá de casa, quanto ao filho. 

Sabia que não era muito esperto, mas serviço que se lhe entregasse havia de ser cumprido, custasse o que custasse. 

Óptimo, caro doutor, disse o Rodrigues. Temos aí um lugar de guarda-rios no cantão da ribeira da Serra de Mação e posso propô-lo para lá, se assim quiser. 

Depois o director da Zona aprova e é tudo. 

São uns seiscentos mil réis por mês, mais abonos e uns tostões de deslocações e ajudas, mas também o trabalho não é muito. É um lugar disputado, pode crer. 

Combinou-se que o Joaquim iria à delegação da Hidráulica, na semana seguinte, para preparar o processo e ser elucidado sobre o serviço; começaria também a acompanhar um colega, com quem aprenderia a ser guarda-rios. 

O doutor Simão informou a Adelaide do que se passava e chamou o Joaquim para lhe dizer o que teria de fazer. 

A mãe, lavada em lágrimas, agradeceu como sabia, deixando o patrão muito sensibilizado; o Joaquim, garantiu que o senhor doutor poderia ficar descansado que, pela parte dele, nunca ficaria mal. 

Na segunda -feira seguinte, às nove horas, apresentou-se, ao chefe da delegação da Hidráulica do Tejo, no Sardoal, o Joaquim Caldaça, candidato ao lugar de guarda-rios. 

Às perguntas do costume, o Joaquim respondeu, naturalmente e, no fim, ouviu a explicação do chefe sobre o Cantão, o serviço, os deveres e regalias com que iria contar e aceitou tudo, sem pestanejar. 

Voltaria, dali a duas semanas para saber qual o Despacho do Senhor Director, de Santarém, ou receberia recado, lá na Quinta. 

O “cantão”da ribeira da Serra era dos mais pobres do concelho; ribeira pouco caudalosa, sem obras de arte nem engenhos, dignos de registo. 

As povoações que servia pertenciam a Mação e Sardoal e não havia problemas com o anterior guarda-rios – o sr. Grácio – que deixara de trabalhar, havia três meses, por se ter reformado. 

O serviço consistia em acompanhar os proprietários das margens da ribeira, desde a Lameira da Serra, passando pela Saramaga e Pisco, até ao Pisão. 

Dali em diante era outro Cantão – ribeira de Arcês e, depois, das Caldeiras. 

O leito da ribeira deve andar sempre limpo, as licenças dos açudes, em dia, e a meia dúzia de azenhas, visitadas, de vez em quando. 

O Cantão é percorrido todos os meses – usará a bicicleta do serviço e as pernas, pois a maior parte do serviço é feito a pé. 

O Ti’Joaquim, como o conhecemos, petiscou, na nossa casa, muitas vezes; não tinha grande custo pelo que comia; valia por dois, ou três, no que bebia. 

Depois de jantar, dirigia-se ao local de trabalho – a ribeira – e, numa boa sombra, ferrava o galho, até à tardinha. 

Seguia, depois, ao longo da ribeira; falava aqui com um meeiro que trazia o açude aberto, além com outro que cortava umas balças e, para todos, tinha uma palavra, em geral apreciada. 

Aproveitando as deslocações, como dizia, passou muitas noites em palheiros ou outros cómodos junto das azenhas, onde asilava uns petiscos e acamaradava com os moleiros, ao serão. 

Em casa não tinha ninguém; nunca se casara, a mãe já tinha morrido e o pai andava por casa dos irmãos, passando o resto dos dias. 

O Ti’Amorim, da Serra, – meu pai – era exemplar, como dizia o Caldaça. 

Pagava as licenças dos quatro açudes – uma meia folha de papel selado e quatro mil réis de selos fiscais – sempre na hora, isto é, quando lhe pedia. 

Um dia, meu pai perguntou ao sr. Joaquim – como costumava tratá-lo –, o que era preciso para fazer uma azenha, no cimo da horta da Renda, logo junto do açude. 

Pensou que podia ter ali uma bela horta, pois as maquias que dava aos moleiros nos taleigos para a farinha dos porcos somavam muito, cada ano. 

Parece que estou a ver o ar solene do guarda-rios, sentado connosco à mesa, falando e bebendo, a perguntar ao meu pai que tipo de engenho queria licenciar, que caudal iria utilizar, quais as confrontações da construção, se iria usar alvenaria ou madeira, etc. 

A resposta foi muito simples: uma pequena casinha, aí com três metro por dois, coberta com uma placa de cimento, destinada a moer só para a nossa casa e, evidentemente, quando houvesse água no açude e não fosse época de regas. 

A levada entre o açude e a azenha seria reforçada. 

Bem, não é o que eu estava a imaginar. Sendo um pequeno engenho, construído no que é seu, para uso particular e fora do caudal principal da ribeira, não precisa de grandes coisas: falo com o meu chefe Rodrigues e trato-lhe de tudo. 

Vai demorar uns dias, porque a autorização tem de vir de Santarém, mas é de pouca monta. 

Estão ainda no local as paredes e a placa; no interior havia, até há pouco, uma maceira e outros apetrechos, de madeira, carcomidos. O eixo e o rodízio, foram devorados pela ferrugem. As mós estão, uma sobre a outra, prontas a moer. 

Os ratos, mesmo sem grão, continuam a usar o espaço como habitação e refúgio de predadores. A porta, de madeira está calcinada e reduzida a cinzas. 

Um dos meus gostos seria voltar a pôr a azenha da Renda a moer milho e centeio – só para a “casa “ – que também já não existe. 

O seu arquitecto e construtor não teve olhos para vê-la, nos últimos dos seus noventa e seis anos. 

Todavia perguntava, por vezes, como estava a azenha da Renda, se fora restaurada e ainda poderia moer uns taleigos. Foi um homem zeloso e muito equilibrado, empreendedor quanto baste e bom e zeloso administrador do que havia em casa.

Era ele: 

Meu pai, analfabeto, que, já adulto, ainda aprendeu a fazer o seu nome e a ler e escrever pequenas frases – o suficiente para se fazer entender. 

Meu pai, que, sem saber uma nota de música, foi escolhido para “clarim”, do regimento de Abrantes, onde serviu, como soldado, e, orgulhosamente, se ufanava de saber de cor todos os cento e cinquenta e três toques, que aprendeu, de ouvido. 

Meu pai, que, em sintonia com meu avô – seu sogro –, foi dos primeiros da aldeia a mandar estudar os filhos, “para que fossem mais do que ele”, como orgulhosamente respondia aos seus críticos, lá da terra. 

Meu pai, que, em questões de equilíbrio e bom senso, nada ficaria a dever aos bons gestores da nossa praça: nunca teve grandes meios para administrar, mas aí reside a sua grande sabedoria, fazendo com que nunca faltasse o essencial. 

Meu pai, que tantas noites passou a dormitar ao som da azenha da Renda: que sonhos e projectos não terão tido lugar entre aquelas quatro exíguas paredes! 

Meu pai, que um dia viu partir os dois filhos, em simultâneo, para a Guiné, fazer a guerra. E, com o mesmo coração, que terá sangrado mais de ano e meio, acompanhou, com garbo e orgulho, um deles, num dez de Junho, a Elvas, onde assistiu à condecoração, que lhe foi imposta. 

Meu pai, onde – até aos noventa e seis anos -, esteve a fonte e inspiração das virtudes que defendo e recordo, os princípios que a Sociedade actual teima em esquecer, ou mesmo banir, mas continuam a distinguir e dignificar os homens – sejam eles cultos, sejam analfabetos –.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

A cabana do Ti’Zé Maria



À entrada do Ribeiro, onde saía o beco para o fim da azinhaga da Bica, derivando para a casa do Ti’Jerolme Alves, um pouco antes da curva do caminho, estava a cabana do Ti’Zé Maria. Dali seguia-se para a Amarela e Barreirinhas, até à igreja, ou virava-se pela azinhaga acima até à Bica. 

Sempre bem atapetada de palha, com os arreios e a carroça, ao centro e na parede de trás, sobre o arado, a grade e a aguilhada que conduzia e espicaçava os bois, quando puxavam o arado, ou a carroça, era poiso certo do Ti’Zé Coroado que ali exercia a sua arte – cesteiro. 

Quando chegava o Outono e o sol mal saía de riba do outeiro do Pito do Cerro, as águas do ribeiro começavam a engrossar e havia dias em que não se podia sair para os campos. Abria-se o gado e faziam-se trabalhos nas hortas ao pé da porta. 

Era o melhor tempo para o cesteiro começar a fazer as encomendas e ir a casa de alguns fregueses fazer cestas, cestos e canastros, segundo se destinassem a trazer na mão, à cabeça e ao ombro, ou na carroça com as uvas e a azeitona. 

As cestas e os cestos eram feitos de vimes e os canastros de vergônteas de freixo, transformadas em fitas, com o auxílio de uma faca grande montada sobre um suporte de tábuas de pinheiro. Parecia que se estavam a fazer correias, só que eram de madeira branca. 

Havia, na terra o mestre José Coroado e mais dois “curiosos” que ele tinha ensinado. Para cabazes de mão, açafates, peças de mesa e adornos de casa, era sempre chamado o mestre; para peças mais grosseiras e destinadas a transportes servia qualquer dos três. 

O Coroado levava dez mil réis por dia, comidos; os outros levavam sete mil e quinhentos, comidos – dizia o meu avô, que acrescentava: mas vale bem a pena, pois é outro trabalho e outra limpeza, além do desembaraço. Nos vimes cá de casa só deita as mãos o compadre Coroado; obra que faz dura três ou quatro vezes mais que as dos outros trapaceiros. 

E explicava-me o que eu gostava imenso de ouvir: o segredo dum bom trabalho de verga está no começo e no arremate da obra; vês aqui estas guias mais grossas que se cruzam no centro do fundo e só vão acabar já nas asas? E as fitas mais finas que tecem a peça, que nunca começam no mesmo sítio, deixando as ligações desencontradas e não tirando, por isso, a resistência? E a arrematação que mais parece uma corda que uma borda de cesto de vime? É nisto que se distingue o trabalho de quem sabe do daqueles que ainda têm muito que aprender, se lá chegarem. 

Na cabana, ali à volta do cesteiro, juntavam-se os garotos e, se chovia muito, também os homens por lá acantonavam. 

Às tantas, enquanto já corria de mão em mão a pichorra do vinho, que de golada em golada ia ficando vazia, aparecia um açafate de passas pingo de mel e uns bolinhos feitos pela Ti’ Maria Freira que a garotada apreciava sobremaneira. 

Vinham a seguir as adivinhas em que o João do Ribeiro e o Casimiro eram os maiores barras. 

Num canto, em cima do fundo de um cesto virado com a boca para baixo, o Jaime e o Florêncio disputavam uma partida de damas. Eram dois campeões da terra e cada um tinha a sua claque. Porém toda a gente seguia silenciosamente as jogadas, esperando que uma dama comesse quatro ou cinco pedras. 

Do outro lado, sentados nuns mochos, em volta de um tambor de petróleo com a boca para baixo, servindo de mesa, jogava-se uma rija partida de sueca: O Laurindo Machado e o enteado, contra o Zé Lourinho e o pai. No papel pardo, rasgado de um saco de cimento, ia fazendo a escrita, muito compenetrado, o Salvador, dando ênfase especial à letra R, sempre que se fazia uma rapa, também chamada limpa, ou chita. 

No meio da rua, quando não chovia, jogava-se o chinquilho, onde o canhoto Armando era o rival do Ti’Américo que, não só na caça, mas em tudo o que metesse pontaria, era imbatível. Só perdia para o Armando e poucas vezes. 

Mais ao fundo da rua, os candidatos a homens, ou brincavam à saca, ou jogavam à pata – que nalgumas terras se chama jogo da bilharda –. 

Havia ainda uma figura típica que passava algumas vezes e era adorado pela garotada, quer estivesse a contar histórias, quer trouxesse um livro de que lia contos e relatos de aventuras. 

Era o Ti’João Sabino, que ia aproveitando a sua arte para meter pelo meio das histórias, anedotas, adivinhas e leituras, as passagens do Catecismo, pois era o principal ajudante desses trabalhos, lá na capela. 

O homem mais velho da terra era o Ti’Adriano Ventura; dizia-se que havia de andar pelos cento e tal anos, fizera a guerra na França, e muitos anos antes, estivera nas tropas que prenderam o Gungunhana, no norte de Moçambique. 

Via muito pouco e ouvia ainda menos; era uma enciclopédia de histórias e não havia bicho da África que não tivesse morto, ou prendido. 

Até uns lagartos com para aí dois metros de carcaça, que abriam muito a boca, mostrando uma grande fiada de dentes, e fugindo para a água dos rios quando nos chegávamos a eles, tinham ficado esticados pelas balas da sua mauser. 

Elefantes, com dentes de perto de um metro, eram às dúzias. Bem, quando começava a contar as suas grandes aventuras nunca mais se calava e, na maior parte das vezes, era o sobrinho que acabava por chamá-lo, pois o sol já se tinha posto e eram horas de ceia. 

Esta era a terra onde passei um ano, em casa dos meus avós paternos, para fazer a segunda classe. Relembro com saudade e mantenho a admiração pelo que soube, anos mais tarde, ser o espírito de solidariedade e boa vizinhança, muito cultivado na aldeia. 

Ainda hoje, as gentes da Queixoperra são um exemplo de bairrismo, sentido do colectivo, espírito gregário e sentimento de entreajuda. Não conheço outra terra, do nosso concelho, onde esse sentimento seja tão evidente. 

Registo e louvo os que lá vivem e espero que os poderes locais ajudem e incentivem tais costumes.

domingo, 1 de abril de 2012

O pardina



As noites andavam muito rigorosas naquele mês de Janeiro. As chuvadas caíam umas atrás das outras e as trovoadas não faltavam um único dia. 

Todos os ribeiritos rebentavam pelas costuras e os caminhos pareciam charcos que ao reflectirem o luar geravam uma luminosidade feérica e anormal. 

O vivo selvagem – raposas, gatos-bravos e lobos – aproximava-se dos povoados e a míngua obrigava a aventuras nas capoeiras e redis das quintas e casais. 

Quando se acabavam os cavacos que durante as primeiras horas do serão ardiam na lareira, para ferverem a panela das viandas e servirem de aquecimento ao pessoal, e as brasas já estavam completamente apagadas, era hora da deita. 

Depois, nas enxergas, agasalhados quanto podiam, homens e mulheres aconchegavam-se e aqueciam-se, mutuamente, até adormecer. 

O ruído do vento e o martelar da chuva, na telha vã, cortados pelo ladrar dos cães e ribombar das trovoadas, criavam o ambiente para crendices, almas do outro mundo e fenómenos anormais de bruxarias e coisas semelhantes. 

As noites, escuras como breu, eram apenas cortadas pelas lanternas de azeite que se usavam para uma necessidade maior, ou para pensar o gado. O convívio com a escuridão era normal nas gentes das aldeias e o escuro, em si, não incomodava. 

Só muitos anos mais tarde, durante a década de setenta, do século passado, se generalizou a extinção das estrumeiras, o calcetamento das ruas das aldeias e a iluminação pública. 

Até aí, mato, lama, excrementos e todo o género de imundície, enchiam as ruas, onde se fazia parte do estrume para adubar as terras. Ainda não estava generalizado o uso dos adubos químicos. 

O “pardina” dormia grande parte das noites no palheiro da horta da Cova do Pereiro. 

Paredes de pedra e barro, sem qualquer janela e uma porta de tábuas de pinho, fechada, por fora, com uma tranqueta e, por dentro, trancada por uma costaneira grossa, enfiada em dois buracos da parede, um de cada lado. 

Quem tentasse entrar, com a porta trancada por dentro, não tinha maneira de fazê-lo, a não ser pelo telhado, de telha vã, afastando as telhas e depois de partir algumas ripas. 

O espaço, amplo, teria quatro metros de frente, por três metros de profundidade. As paredes eram grossas e sem qualquer reboco. 

Entrando na porta, a parede da esquerda era mais alta e daí desciam os barrotes de vergônteas de castanho, já de provecta idade e pouco espaçados, que suportavam as ripas sobre que se estendiam as telhas de canudo, vulgarmente chamadas mouriscas. 

A toda a volta do palheiro, menos pela frente, havia um fosso de sessenta centímetros de largura, entre as paredes e as barreiras de terra e xistos – lousinhas, como se diz na região –. 

O palheiro enquadrado no desnível do terreno era, praticamente, invisível, uma vez que o telhado ficava ao nível do solo pelos lados norte, onde ficavam as traseiras, e poente, onde estava a empena mais alta. Pela frente as árvores da horta completavam a camuflagem. 

Junto à parede mais alta, a da empena, o “pardina” montou um catre tosco. Uma espécie de manjedoura cheia de palha, coberta com um panal da azeitona e umas duas ou três mantas velhas, encardidas e esfarrapadas. No topo oposto à porta, uma saca cheia de camisas de milho, servia de travesseiro. Estacas espetadas na parede serviam de cabides para o fato e de suporte a sacos que tinham de ser preservadas dos ratos. 

Junto à porta, do lado direito, uma pequena choça de colmo, ligada à parede, servia de casa ao cachorro. 

Com o chão atapetado de palha, o “bimbo” não passava frio e além do caneco, onde não se acabava a água, uma pia de pedra estava, usualmente, abastecida de comida. Havia autonomia para três ou quatro dias, não contando com caça e fruta, abundante na horta, todo o ano. 

Os acessos eram recônditos, pois à volta havia estevas altas, carrasqueiros e balças e, pelo lado da horta, as laranjeiras, oliveiras e videiras, fechavam as vistas do caminho que passava ao fundo da horta em direcção à Pedreguina, Cabeço Seixo e Serra do Corvo, continuando para os lados da Queixoperra. 

O “pardina” era um tipo especial. Tinha, e cultivava, ar de lorpa e fingia aceitar todas as petas que lhe pregavam. 

Na escola foi andando, até à terceira classe; nos trabalhos do campo era teso mas muito pouco organizado; tinha habilidade nata e propensão para lidar com animais, para tratar de colmeias e para armar os ferros aos coelhos e lebres que comia todo o ano e nunca se acabavam na “arca”: uma caixa, de latão, dentro duma saca de adubo, pendurada no poço, por uma corda, de forma a ficar a uns dois metros da água. Conservava a caça, uma ou duas semanas. A cabaça, com água do próprio poço, estava também, pendurada no fresco. 

No serviço militar foi soldado em Abrantes e Elvas e desempenhou, a contento, os serviços básicos de que foi incumbido: tratar de animais, limpar cavalariças e fazer recados, dentro e fora do quartel. Sempre passou despercebido; apesar de um sargento, mais perspicaz lhe andar constantemente a dizer: saíste-me uma grande mula!... 

Em casa fazia todo o tipo de trabalhos: cavava, roçava mato, regava e trabalhava com a carroça e o arado. Foi a azeitonas, ceifas, mondas e “alimpas” e podas. 

Nunca se lhe conheceu namorada, se bem que fosse com os restantes rapazes do seu tempo a bailes e descantes, na terra e fora dela. Porém, nesta área, era muito calado e, como dizia o Ti’Alfredo, seu avô materno, comia, pela calada, e fechava-se em copas. 

A alcunha “pardina” vinha-lhe de um estudo – como orgulhosamente dizia – que fizera, durante anos a fio, a umas avezinhas migratórias que chegam, em bandos, às nossas terras, aí por meados de Agosto. Uma verdadeira nuvem que quando chegava até tapava o sol. 

O nome desses taralhões é chascos, embora vulgarmente se chamem pardinhas – provavelmente pelo tom pardacento da sua plumagem. O Luís eliminou o “h” e sempre disse “pardinas”; ficou com esse apelido, que nada o incomodava e, uma vez em cada ano, no mês de Agosto, haviam de vir os passaritos que traziam anilhas, de lata, nas patitas. Tinham escritas umas letras e muitos números. 

Pensava o “pardinas” com os seus botões: “Látvia” não sei o que é, mas a acreditar nos números, tão grandes, das anilhas, são milhões de passaritos e, entre doze e catorze de Agosto, já tinha o lameiro, na frente da horta, coberto de costelas, com agúdias a luzir, aos primeiros raios do sol da aurora. 

Ia, depois, na companhia do “bimbo”, para o cabecito, em frente, e, olhando para o céu, esperava a nuvem de passaritos que havia de chegar. 

Impacientava-se mais que o companheiro e, depois da invasão de toda aquela multidão, que, momentos depois, acabava por levantar voo para outro lado, o “pardina” recolhia os despojos. 

Dizia, mais tarde, na taberna, que numa das caçadas, nas cento e oitenta costelas que espalhou, apanhou cento e sessenta pardinas. Vezes sem conta repetia a história e sempre o Chico coxo resmungava: mentiroso sou eu e nunca fiz tal caçada; aldra!... 

Embora pernoitasse no palheiro, que ficava a uns quinze minutos da casa dos pais, no Casal, nunca deixava de comparecer, chovesse ou fizesse sol, a tratar dos animais, comer uma bucha e acompanhar o pai nas lides da casa. Estava sempre a horas no seu lugar e, raramente, se atrasava para as refeições. 

Esta situação fazia desconfiar a vizinhança: que raio teria ele no palheiro que o fizesse deixar a casa de baixo, onde tinha uma enxerga, lareira e cozinha, ali a dois passos da taberna e junto de pai e mãe? E a saca que traria ela? 

Bem, nestas alturas há logo quem pense coisas e loisas e não falta quem invente de tudo, para todos os gostos. Foi, pois, a curiosidade que moveu o Ti’Zé do Codes a montar a espreita com o fim de descobrir o mistério. 

Começou a sair de casa logo depois do pôr do sol e após uma primeira passagem pelo caminho da Queixoperra, desviava-se em direcção ao Cabeço Seixo e subia a um pinheiro de onde conseguia ver, vagamente, a porta do palheiro do “pardina”. 

Esperava e caso o visse entrar, normalmente, descia do pinheiro e voltava para casa, uma vez que nada de anormal se passava. Nas noites seguintes tudo igual, afora os dias em que o “pardina” dormia na casa dos pais e o Ti’Zé se cansava e desesperava em cima da árvore, enregelado. 

Junto do palheiro o guarda de serviço era um rafeiro, que dava pelo nome de “bimbo” e reagia à menor ameaça de aproximação de intrusos, ou ao mais pequeno ruído não identificado. 

Na presença do dono, imobilizava-se e só fazia o que ele lhe mandava. Comia do que caçava e das sobras do dono e nada lhe faltava, na casota. 

Se o dono queria ir a algum lado sem companhia, voltava-se para o bimbo e ordenava: que é da copa, bimbo!? Tanto bastava para que o bicho largasse à desfilada, mais parecendo um galgo, e fosse tomar o seu lugar na sua casota, à porta do palheiro. E ali se quedava até que o dono voltasse; demorasse o tempo que demorasse. 

Se ia com o dono armar um ferro aos coelhos ou lebres, ou tocaiar outra qualquer presa, ou se recebia sinal de que a sua presença, os seus odores, ou o seu barulho eram prejudiciais, metia o rabinho entre as pernas e retirava-se para não incomodar. 

Os estranhos que passavam no caminho que circundava a horta, eram, discretamente, acompanhados até o convencerem de que não se dirigiam às imediações do reino do dono. Caso contrário, eram ameaçados por ruídos e atitudes, chegando mesmo a vias de facto se o intruso teimasse em aproximar-se do seu local de guarda. 

Conhecia e permitia a aproximação ao palheiro apenas a quatro pessoas: o dono, o Ti’Jorge do Casal e a Ti’Joaquina, pai e mãe do dono e a Amélia – uma amiga –. 

O Luís do Casal, vulgo “pardina”, já ia nos quarenta e embora conseguisse viver com a solidão, olhava para os pais, já de idade bastante avançada, lembrava a única irmã, há muitos anos ausente no Alentejo, para onde casara e de onde raramente voltara à terra onde nascera e pensava em mudar o seu estado de vida; arranjar uma mulher e casar-se. 

A mãe, que não era excepção nas dúvidas que toda a gente tinha quanto ao modo de vida do filho, perguntou-lhe uma vez: Oh Luís, já pensaste que, um dia, podes ficar sozinho, envelheces e nem sequer tens ninguém chegado que cuide de ti!? Vê se arranjas uma mulher que te mereça, que te ajude na lida das terras e cuide de ti, mesmo que não tenha grandes posses. Tens bem que chegue para te ocupar e filhos já não serão muito de esperar; como sobrinhos não tens, para ti há-de chegar e sem ninguém a quem deixares, não adianta esfalfares-te com trabalho. Ouve o que te digo! 

Aquela meia dúzia de ideias encheram-lhe a cabeça e, durante longas noites, pensava no que a mãe lhe dissera. Porém, não era fácil abandonar o palheiro da Cova do Pereiro, deixar de partilhar com o fiel “bimbo” a cumplicidade das horas boas e más, abdicar do gozo que lhe causava a vida que conseguia fazer com a Amélia, nas barbas de todo o mundo, sem que ninguém tivesse topado. 

O segredo de ambos, era a coisa mais bonita que alguma vez tinham conseguido e era de tal modo doentio e forte que, tanto ele como ela, engendravam tudo e levavam a tal ponto os cuidados para que jamais fossem surpreendidos, que, muitas vezes, se surpreendiam a eles próprios e se desencontravam. Mas, baixar a guarda é que nem pensar. 

O “bimbo” único conhecedor e cúmplice das intimidades do casal, tivessem elas lugar no palheiro do Manel, nos cómodos da casa da Amélia, ou em lugares recônditos do campo, parecia gozar com o segredo e passava horas, parado, em guarda, à espera que tudo acabasse e tivesse, por fim, no olhar de ambos, a merecida recompensa pela sua colaboração. 

Quando o casal se separava, o “bimbo” acompanhava, discretamente, a Amélia, até que a considerasse em segurança e livre de suspeitas. 

A Amélia, mulher robusta, poucos anos mais velha que o Luís, era filhota da Saramaga e a viver nos fundos da Pedreguina, onde a família passava os dias, na horta e courela – espécie de casal, com casa, criação, e cómodos – tinha o secreto desejo de casar. 

Recusara vários pretendentes, em benefício de um ideal que só ela, o Luis e o “bimbo” conheciam e alimentavam. 

O pai, de idade muito avançada, sabia que havia mouro na costa, mas não se metia na vida da filha, que andava feliz e contente e dava mostras de nada lhe faltar. Ao fim de contas, se também a Amélia nada deixava faltar-lhe, para que havia de se meter. 

O Ti’Chico Pedra enviuvou cedo e ficou só, com a Amélia, a tratar daquele casal. Pela filha deixou de ir a muitos trabalhos que lhe dariam algum dinheirito junto, mas nunca lhe faltou nada. A rapariga cresceu e embora nunca tivesse frequentado a escola era esperta e zeladora da casa; não lhe faziam o ninho atrás da orelha. Conhecia o dinheiro e andava bem arranjada para o meio em que vivia: umas vezes ia à missa dos domingos à Saramaga, outras à Queixoperra e, menos vezes, à Serra. 

Nos descantes e festas, ficava em casa de parentes e acompanhava as outras, da sua idade. Numa dessas andanças veio às falas com o “pardina”, um dos seus vizinhos mais chegados e pessoa de que gostou logo na primeira prosa. 

O rapaz tinha vindo da tropa e passava muitos dias na Cova do Pereiro. Filho de boas gentes e de trato e maneiras muito simples, agradou à Amélia. 

Pouco depois morreu a mãe da rapariga e o Luís foi-se aproximando, chegando mesmo a dar uns dias em casa do Ti’Chico, lavrando e semeando as hortas e começando a aparecer em malhas, descamisadas e matanças. 

Cruzava-se com a rapariga, olhavam-se, demoradamente, e depois, mais uma semana de separação. Até que no regresso de umas festas de Penhascoso, em pouco mais de meia dúzia de palavras, acertaram que haviam de ser um para o outro, demorasse o tempo que demorasse, acontecesse o que acontecesse. E, assim foi, alguns anos mais tarde, para o povo, nem tantos, para eles. 

Encontravam-se, ou faziam-se encontrados, fortuitamente. Andavam perto um do outro, fruindo uma auréola de bem-estar e cumplicidade, olhavam-se em silêncio e realizavam-se, platonicamente, até que um dia de S. João, ao voltar da missa, o Luis chamou a Amélia e perguntou se podia falar com ela, depois do pôr do sol, na horta dos limoeiros, junto da represa. De preferência depois do pai se deitar e sem a presença dos cães, para que nada pudesse ser suspeito, ou pensado por alguém. 

Lá te esperarei, homem. Temos muito que conversar. Até logo!... 

O Luís saíu ali da igreja da Queixoperra, passou pelo palheiro e dirigiu-se a casa dos pais. Comeu qualquer coisa, arrumou uma camisa, um par de ceroulas e umas meias no fundo da saca e voltou para a Cova do Pereiro. 

Contra o que lhe era habitual, sentiu que o tempo passava devagar demais e nunca mais se fazia noite. 

Ao sol-posto, saiu, tomou a direcção da Serra, atravessou nos altos do Cabeço Seixo, tomou o caminho das Vagens, até à portela da Azenha. Dali, a corta mato, tomou a direcção da horta dos limoeiros e, às vistas da represa, ocultou-se entre os arbustos e esperou. 

Esperou, todavia, pouco tempo; a Amélia estava oculta entra as videiras da horta e, em resposta a um ruído estranho, mostrou-se, para que o amigo saísse da sombra e se dirigissem, os dois, para junto da represa. 

O escuro já tinha caído e o ar estava quente naquela noite calma de verão. A pouca luz e a propensão para ver de noite, puseram a nu um tom claro e muito brilhante nos olhos da Amélia. 

Pela primeira vez o Luís tinha, a uns dois palmos, os lindos olhos duma mulher; sentia o arfar do peito, robusto e apetitoso da Amélia e ao tomar-lhe uma das mãos, sentiu uma humidade, anormalmente, fria. 

O Luís, sem saber porquê, mantinha uma calma e presença de espírito, anormais. Respirava um pouco mais rapidamente que o costume, mas estava perfeitamente controlado. 

Apertou a mão da Amélia, olhou-a bem nos olhos e, simultaneamente, chegaram-se um ao outro, com os braços estendidos e os rostos proeminentes. Estava dado o primeiro de muitos beijos que haveriam de trocar, entre si. 

Pararam e ficaram a olhar-se, dizendo, em rigoroso silêncio, aquilo que durante tanto tempo teriam ensaiado; prometendo o que sentiam e queriam para ambos, antevendo uma longa vida a dois, em paz, harmonia e comunhão. 

Nem deram pelo passar das horas, sentados, de mãos dadas, calados na maior parte do tempo e, cada um por seu lado, pensando e arquitectando uma vida em comum. 

Mais tarde, confessaram, um ao outro, que aquele foi o seu verdadeiro casamento e mesmo que mais nada tivesse acontecido, não voltariam a ser de ninguém, senão um do outro. E, de facto, assim viria a ser. 

O luar veio com a sua claridade, aproximar mais aquelas duas almas que acabaram por se levantar e, sempre agarradinhos, caminharem pela levada, até ao cabanal do carro e sentaram-se na guarda da eira, junto a um monte de camisas de milho. Continuavam a falar pouco, suprindo com o olhar tudo o que as palavras não diziam. 

Porém, mais por ingénua insinuação e atrevimento da Amélia que por destemor e desenvoltura do Luís, com a lua por testemunha e os panos da carroça por leito, foi feita mulher a donzela da Pedreguina. 

Extasiados, incrédulos, admirados e com a felicidade expressa nos rostos, beijaram-se, carinhosamente, e continuaram, em silêncio, até altas horas da madrugada. 

Despediram-se e cada um por seu lado, ela depois de guardar, ciosamente os panos ensanguentados, dormiu, profundamente, até que o pai a chamou. Ele, no catre do palheiro do Vale do Pereiro, não acordou, como habitualmente, e, contra o seu costume, só apareceu, em casa dos pais, com o sol já alto. 

O “pardina” tinha ouvido algumas conversas sobre relacionamento entre pessoas, vida em comum, relacionamento sexual, e ávido de saber coisas, estava sempre de ouvido à espreita; era muito mais amigo de ouvir que de falar e, como ele às vezes dizia: “ouvi um dia dizer, lá na tropa, a um oficial, que as pessoas têm dois ouvidos e só uma boca. Devem ouvir em dobro e falar em singelo. Assim, estou certo.” 

Mas voltemos ao assunto que marcava toda a sua conduta e o seu relacionamento com o da sua mulher. Só uma coisa muito forte poderia impedir que se fizesse um casamento, certamente do agrado de todos e sem nada aparente que impedisse aquela união. 

E isso não era assim tão mau; sempre que se encontravam, passados mais de quinze anos sobre aquela primeira vez na eira, era tal a intercomunicação, tão forte a comunhão, tão verdadeira a entrega dos dois que poderia ser descrito como perfeito. 

Nada, nem ninguém, poderia quebrar o vínculo que unia aquelas duas almas, porque, como o Luís aprendeu: nunca ninguém forçava ninguém, havia um verdadeiro segredo – qual pacto de sangue –, cada um só queria satisfazer o outro, acertavam na perfeição os tempos e as reacções, numa palavra: eram dois num só. Entendiam-se na perfeição, quando se amavam. 

O “pardina” e a Amélia nunca casaram; mantiveram sempre uma relação perfeita. Acabaram por baixar a guarda e, já com avançada idade, foram, um dia, surpreendidos, no palheiro do Vale do Pereiro. 

O “bimbo” tinha sido apanhado pelo carro do veterinário que, de visita à aldeia, não foi capaz de evitar o atropelamento. Estava fora do seu posto, quando o “Samarra” que havia muito tempo seguia a Amélia, a viu entrar no palheiro e ficou à coca. 

Esperou toda a noite, mas na manhã seguinte estava sentado na nora da horta do “pardina” e surpreendeu o casalinho a sair do ninho de amor. 

Com a maior tranquilidade do mundo, o Luís, depois de salvar, apenas disse: vamos Amélia que se calhar o animal já está pior e, se não chegamos a tempo, não haverá ajuda que o salve. Fizeste bem em vir-me chamar!... 

E, ainda nesta vez, deixaram o intruso de boca à banda e avisado que tivesse cuidado com a língua, pois qualquer história que “inventasse” podia sair-lhe cara. E todos sabiam que o “pardina” não era para brincadeiras pelo que no caminho o “Samarra” ia tomando uma decisão: 

Lá ver fazer alguma coisa não vi e, se calhar, vou ficar calado, uma vez que é melhor não comprar brigas com o Luís que não é nada bom de assoar. 

O Luís e a Amélia seguiram na direcção da Pedreguina, onde acabaram por se rir da cara do estouvado do “Samarra”, que, mais uma vez, acabou enganado, e engasgado, quanto ao que julgava poder espalhar, aos sete ventos, sobre o segredo do Palheiro da Cova do Pereiro.