terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

O Tonho das Inguias



O António Freixo, mais conhecido por Tonho das Inguias, era temente a Deus e cumpridor dos seus deveres de cristão. 

Casado, pai e já avô, honrara sempre os seus compromissos e, ali onde o viam, era um caçador de se lhe tirar o chapéu. 

Não só pela sua boa pontaria, como pelo conhecimento dos sítios, hábitos e costumes da caça, era conhecido em toda aquela faixa do cimo da Cova da Beira, já a puxar para a Guarda. 

Um dia, regando um chão de batatas, na horta do Pedrógão, a caminho da Bendada, aproveitava para vigiar o vivo que tasquinhava no lameiro de cima, encostada ao baldio. 

Era tempo de caça e tinha a espingarda encostada a um carvalho, à entrada da horta. Naquele cair de tarde reinava o sossego e calma. 

De repente, surgiu de trás de umas pedras um caçador, que depois de dar a salvação, disse ser de Quarta-Feira e ter chumbado uma perdiz, pouco depois de Dirão da Rua, na encosta da Sortelha. 

Pela direcção que tomou era bem possível que tivesse vindo cair para aquelas bandas. 

O Tonho gostava de chalaças, mas fazer-lhe o ninho atrás da orelha era coisa para que não estava pelos ajustes. Era dos poucos casos em que reagia mal. 

Todavia, enchendo-se de calma, dispôs-se a gozar o pratinho e, o mais lentamente que pôde, disse: 

Ora bem, vamos lá a ver!... Atão vomecê diz que é de Quarta-feira e andava a caçar perto da Sortelha. Do lado de lá, ou na encosta das Águas?... 

E, sem esperar pela resposta, continuou: E, na sua opinião, quantos chumbos e em que parte do corpo, meteu na avezinha?... 

Não deve ter sido grave o ferimento para achar que poderia ter vindo até aqui!... Quanto tempo demorou vomecê a chegar cá?...

De duas a três horas, calculo!... E cães não traz?... Ou cansaram-se da longa jornada e ficaram a descansar?!... 

Ah!... Agora se me alembra que há aí uns três quartos de hora, pousou uma diaba além naquele barroco cimeiro e olhe que trazia tal velocidade que arrastou o pedregulho mais de cinco metros pela minha adentro. 

Veja vomecê, uma coisa que está ali, desde que o mundo é mundo!... Ele sempre há coisas, amigo!... 

Olhe, ou está para lá aninhada, ou morreu no embate, ou levantou outra vez e, Vale do Zêzere acima, já a estas horas passou de Valhelhas, a caminho de Manteigas!... 

Se arrancar já, e for ligeirinho, estará lá antes de manhã!... E como qualquer caçador que se preza a reclamar o que lhe pertence. 

O caçador andou a rondar a pedra enorme que o Tonho lhe ensinara e, com nova salvação partiu dali, em direcção ao sol-posto, sem nunca mais ser visto. 

O Tonho andou incomodado, pois não voltou a ver a criatura. Como não desse por qualquer notícia de morte ou desaparecimento, acabou por ir-se desculpando, mas, na Quaresma, a consciência pesou-lhe e foi ao padre António, de Caria, confessar-se. 

Estava arrependido de ter mandado para o desconhecido um caçador, que, embora mais mentiroso que ele, o obrigou a faltar à verdade. 

É que, senhor padre, eu informei-o que a perdiz tinha empurrado o barroco maior, da minha do Pedrógão, uns cinco metros. E, na verdade, o penedo só se deslocou um palmo, bem medido!... 

O padre, fez-lhe o sinal da cruz sobre a cabeça e deu-lhe como penitência: 

Agora, vais arranjar amigos e repor o barroco no sítio onde sempre esteve. Se Deus o deixou ali não vamos ser nós a mudá-lo. 

Mas, se chegares lá e o barroco já estiver no lugar, descansa. Estás absolvido.