quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Sinfonia inacabada


O canteirito, no cimo da testada, é uma nesga de terra com pouco mais de metro e meio de largura por uns vinte de comprimento. 

Ali, junto da levada, não podia queixar-se da falta de água, até ao dia em que ela deixou de ser um camalhão de terra e o cômoro foi substituído por cimento, tijolos e pedras. 

A meio da hortita ia dar a ponte de tábuas de madeira, com uns oitenta centímetros de largura, assentes num lado sobre a calha de cimento, que levava a água e no outro sobre um barrote de eucalipto. 

O valado, no topo da ponte conduzia à levada e dali, para a direita ficava o açude e para a esquerda a casita da azenha. 

A ponte era de pé-posto; a besta ficava no palheiro, poucos metros antes da ribeira. 

Não tinha guardas, nem corrimão e em períodos de taró mais intenso, era escorregadia e perigosa. 

Porém, não consta que, de lá, tenha caído alguém. 

No cimo do canteirito acabavam-se as hortas, até ao açude, uns vinte metros a montante, para norte. 

A levada deixava de ser de alvenaria e passava a um simples rego entre o cômoro e a encosta do monte, que dali subia, para poente, até ao cume da lomba, povoada de estevas e pinheiros. 

Entestado entre as paredes das hortas do Ti’Abílio Lindo, pelo poente, e do Ti’Manuel Rosa, a nascente, o açude da Pleissa era formado por uma fiada de quatro ou cinco grandes calhaus – que deviam estar ali “desde que o mundo é mundo, para os homens”, como me dizia o meu avô quando queria ir longe, no tempo –. A segurá-los, leivas de terra, barro, raízes de carriços, gramas e outras aquáticas. 

Não eram raras as queixas dos meeiros quanto à má qualidade do açude, sobretudo em anos de maior canícula. 

Faziam-se reparos na represa, remendava-se a levada, dava-se caça às eirós que furavam as leivas e os cômoros. Por último, substituiu-se a manilha do bueiro, e acabou por ficar a contento de todos. 

Na pequena veiguita, antes da azenha, criavam-se os mimos da casa: os alfobres de cebolinho, de couves (galega, sete-semanas, tronchuda, repolho, couve-flor, couve-nabo, coração de boi), de alfaces, almeirões, tomates e pimentos. 

Não faltava o canteiro da salsa, o rego da hortelã e a belga de coentros, cenouras e espinafres. 

No tempo do feijão verde, três ou quatro leiras de outros tantos regos, semeados a intervalos de quinze dias, davam vagens por um período ininterrupto de três meses, no Verão. 

Estavam lá, também, abaceladas as vides escolhidas para fazer o bacelo e para os garfos das enxertias da vinha. 

Embora o calor nunca apertasse muito, ali junto da ribeira, no pino do Verão fazia-se sentir, de tal forma que era preciso regar, dia-sim, dia-não. 

As regas já quase se não fazem, pois aqueles canteirinhos, então tratados como jardins, têm, agora, mais ervas e menos desvelos. 

Porém, o chilrear dos pássaros, o roçar do vento nas ramagens, o rumorejar das águas e até o som desafinado das cigarras, continuam a compor a mais bela sinfonia que nos foi dado ouvir. 

…No açude, continua a poisar a arvéloa, agitando a cauda, com tal leveza, qual a batuta de maestro… 

A sinfonia continua … 

E, caro leitor, considere-se convidado. O traje é informal…

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Convite



Disponha-se o leitor a esquecer as agruras da vida, a deixar o stress bem longe, a abstrair-se do barulho da cidade e, a pouco e pouco, ouvir toda a Natureza a tocar, só para si, a mais bela das sinfonias que já imaginou. 

Se gosta de ler, leve um clássico e misture o idílio com a leitura. Acabará por sentir-se onde nunca foi, nem nunca esteve. 

A paz invadi-lo-á. 

Sente-se, na pequena ponte de madeira, sobre o ribeirito, com os pés pendentes para a corrente de água que, uns dois metros abaixo, segue o seu caminho, rumorejando no talvegue do riacho. 

Contemple o leito, atapetado em tons de verde; nas margens, as torgas e balças que amarinham pelas paredes das hortas, até ao topo. Junto das poças de água e dos pequenos pegos, onde nadam peixitos e outros anfíbios, crescem carriços e juncos. 

As amoras negras, das balças, e as flores de variadas cores das trepadeiras, completam a primeira moldura, no mínimo feérica. 

No cimo das paredes, na orla das hortas, filas de videiras, entrecortadas por figueiras, oliveiras, macieiras, marmeleiros e tufos de plantas indeterminadas, têm, como continuação natural, os milheirais e outras culturas da época, que nos meses de Verão enchem as hortas de frescura, junto das ribeiras. 

Pelo lado esquerdo, a levada estende-se até ao açude que, àquela hora da manhã, completamente cheio de água, em completa quietude, reflecte o azul do céu, dando um contexto tridimensional de todo o cenário. 

O sol, que no mês de Agosto se levanta bem cedo, tem certa dificuldade em afastar a neblina matinal – a maresia que desfazendo-se em gotas, deixa tudo a pingar de orvalho -, ergue-se já e faz-se anunciar pelos primeiros raios que, penetrando por entre os pinheiros, vão projectar-se no monte, em frente. 

Para lá do açude, na curva da ribeira, erguem-se os cabecinhos, de um e outro lado, completando a moldura. 

A nascente e poente, partindo da linha de água, elevam-se as encostas, até onde não vemos o cume e tudo está coberto, para lá do bordo das hortitas, de pinheiros, mato e outros arbustos. 

À retaguarda, o vale abre-se, pelos brejos, em direcção à aldeia, de onde vem o ladrar dos cães, o balido dos rebanhos e o chiar dos rodados das carroças. 

Mas, já tão fora de cena que nem sequer é ruído de fundo. 

Nas proximidades da ponte toma posição a carricita e a megengra, que junto com a toutinegra e o cata-piolhos, fazem pela vida, em silêncio, e levam para os filhos, ainda pouco experientes, o que vão apanhando. 

Mais além, sobre a esquerda baixa, os melros ensaiam os primeiros acordes, no que são seguidos pelas felosas e verdilhões; ao centro, os rouxinóis, que estiveram calados sob as videiras e na laranjeira, atiram os trinados melodiosos e sublimes, qual naipe de violinos. Da direita, vêm os tentilhões e as milheiras, seguidos pelos verdilhões, ferreiros e rabos-vermelhos. Mais atrás, o trinado dos pintassilgos e, em fundo, um pouco mais longe, a cotovia vem completar o naipe, em completa harmonia e angélica sintonia. 

Sobre a represa do açude, a arvéloa, qual maestro, agita a cauda, imperturbável à passagem do pica-peixe e, sob o olhar atento do peneireiro, dirige aquela orquestra sinfónica, onde dos graves aos agudos, dos metais à percussão, não falta nada. 

Dos altos, o solo de um gaio e uma pega sobrepõe-se às batidas cadenciadas do pica-pau que vinha dando o ritmo e anuncia a passagem do “molto vivace” para o “moderato”. 

As rolas, nos pinheiros, num arrulhar doce, introduzem o “pianíssimo”, serenando as crias, despertas pelo wagneriano gaio. 

As cigarras, embora não sendo pássaros, ascendem da surdina, em crescendo, e, no momento mais quente, quebram a quietude. 

São secundadas pelos restantes naipes da orquestra e, num final apoteótico, dão lugar ao sol que irradia calma e força e convida os intérpretes a um merecido intervalo. 

Os sons, as cores e os odores, inundam os ares de frescura e, conjugando-se com a aragem, transformam-se num cenário natural de perfeita harmonia, cuja dimensão e beleza, apenas dependem dos olhos, dos ouvidos … e da sua sensibilidade, caro leitor!...

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

O Tonho das Inguias



O António Freixo, mais conhecido por Tonho das Inguias, era temente a Deus e cumpridor dos seus deveres de cristão. 

Casado, pai e já avô, honrara sempre os seus compromissos e, ali onde o viam, era um caçador de se lhe tirar o chapéu. 

Não só pela sua boa pontaria, como pelo conhecimento dos sítios, hábitos e costumes da caça, era conhecido em toda aquela faixa do cimo da Cova da Beira, já a puxar para a Guarda. 

Um dia, regando um chão de batatas, na horta do Pedrógão, a caminho da Bendada, aproveitava para vigiar o vivo que tasquinhava no lameiro de cima, encostada ao baldio. 

Era tempo de caça e tinha a espingarda encostada a um carvalho, à entrada da horta. Naquele cair de tarde reinava o sossego e calma. 

De repente, surgiu de trás de umas pedras um caçador, que depois de dar a salvação, disse ser de Quarta-Feira e ter chumbado uma perdiz, pouco depois de Dirão da Rua, na encosta da Sortelha. 

Pela direcção que tomou era bem possível que tivesse vindo cair para aquelas bandas. 

O Tonho gostava de chalaças, mas fazer-lhe o ninho atrás da orelha era coisa para que não estava pelos ajustes. Era dos poucos casos em que reagia mal. 

Todavia, enchendo-se de calma, dispôs-se a gozar o pratinho e, o mais lentamente que pôde, disse: 

Ora bem, vamos lá a ver!... Atão vomecê diz que é de Quarta-feira e andava a caçar perto da Sortelha. Do lado de lá, ou na encosta das Águas?... 

E, sem esperar pela resposta, continuou: E, na sua opinião, quantos chumbos e em que parte do corpo, meteu na avezinha?... 

Não deve ter sido grave o ferimento para achar que poderia ter vindo até aqui!... Quanto tempo demorou vomecê a chegar cá?...

De duas a três horas, calculo!... E cães não traz?... Ou cansaram-se da longa jornada e ficaram a descansar?!... 

Ah!... Agora se me alembra que há aí uns três quartos de hora, pousou uma diaba além naquele barroco cimeiro e olhe que trazia tal velocidade que arrastou o pedregulho mais de cinco metros pela minha adentro. 

Veja vomecê, uma coisa que está ali, desde que o mundo é mundo!... Ele sempre há coisas, amigo!... 

Olhe, ou está para lá aninhada, ou morreu no embate, ou levantou outra vez e, Vale do Zêzere acima, já a estas horas passou de Valhelhas, a caminho de Manteigas!... 

Se arrancar já, e for ligeirinho, estará lá antes de manhã!... E como qualquer caçador que se preza a reclamar o que lhe pertence. 

O caçador andou a rondar a pedra enorme que o Tonho lhe ensinara e, com nova salvação partiu dali, em direcção ao sol-posto, sem nunca mais ser visto. 

O Tonho andou incomodado, pois não voltou a ver a criatura. Como não desse por qualquer notícia de morte ou desaparecimento, acabou por ir-se desculpando, mas, na Quaresma, a consciência pesou-lhe e foi ao padre António, de Caria, confessar-se. 

Estava arrependido de ter mandado para o desconhecido um caçador, que, embora mais mentiroso que ele, o obrigou a faltar à verdade. 

É que, senhor padre, eu informei-o que a perdiz tinha empurrado o barroco maior, da minha do Pedrógão, uns cinco metros. E, na verdade, o penedo só se deslocou um palmo, bem medido!... 

O padre, fez-lhe o sinal da cruz sobre a cabeça e deu-lhe como penitência: 

Agora, vais arranjar amigos e repor o barroco no sítio onde sempre esteve. Se Deus o deixou ali não vamos ser nós a mudá-lo. 

Mas, se chegares lá e o barroco já estiver no lugar, descansa. Estás absolvido.