sábado, 8 de outubro de 2011

O "engenheiro" Tonho


O "Tonho" anda para pregar alguma.


Sai por aí sozinho, corre tudo o que é vereda e carreiro, com os olhos postos no chão, longe de tudo e de todos; muitas vezes nem à salvação responde e quando, distraidamente, levanta os olhos e encara alguém, cai das nuvens e fica, completamente, a leste.


Achas normal, Manel? E olha que quando um turrão como ele encasquilha uma coisa na cabeça, é preciso ficar de olho aberto, antes que o Diabo as teça.


Coisas na cabeça metes tu, mulher! Deixa lá o moço em paz! Então, sempre soube bem o que queria e agora, que está com um pé nas sortes, tem de voltar a mãezinha do menino a tratá-lo como um garoto.


O rapaz pensa na vida, faz os seus planos e, se calhar, não enxerga, por aqui, ninguém com quem se possa abrir. Ainda vais ter muitas surpresas e olha que, ou muito me engano, ou vão ser bastante agradáveis.


Foi um erro não termos pensado em mandá-lo estudar; é esse o maior remorso que me há-de consumir todos os dias.


Lembras-te do que dizia a professora? Que há muito que não lhe passava uma cabeça melhor que a dele, pelas classes que ia ensinando!


Mas homem, onde íamos nós buscar...


Não, por aí não há desculpas: só temos este e o teu pai tem dinheiro a render.


E também não tem mais netos. Mas, ao que por aí dizem, não há dia nenhum que se deite sem ir olhar e apalpar as notas que tem numa caixa de lata, escondida numa pilheira do quarto, mesmo por trás da cabeceira.


Até as raparigas, com quem gastava sempre dez réis de saliva num piropo, se queixam da distância do Tonho. Mesmo a Leonor, com quem vai falando, diz que não consegue perceber o que ele pensa, mas que tem tudo programado e a volta da vida, será a tropa.


Até já terá pensado em se oferecer como voluntário!


Vê lá tu, homem, se um dia nos dá um desgosto desses!


Não te rales mulher, que ele sabe ao que vai e, se queres saber a minha opinião, nunca lhe darei para trás e não será por mim que deixará de voar tão alto quanto puder.


Peço a Deus que o ajude e ilumine o seu caminho, que tudo o que lhe puder dar, não lho recusarei.


O nosso filho sempre se interessou por tudo o que não conhecia. Gosta de tudo o que mexe. Tem um jeito especial para os animais. Fica a olhar para o céu quando ouve barulho de avião que por aqui passe.


Lembras-te de quando há, por aí, alguma obra? Passa horas esquecidas a ver fazer as paredes, medir e planear os degraus das escadas, fazer as armações dos telhados, acertar portas e janelas ...


A senhora professora sempre disse que tinha uma queda especial por Ciências Naturais, Geografia, Aritmética e Geometria.


E, nos seus desenhos, havia sempre casas, estradas, pontes, barragens, torres e tudo o que metesse formas geométricas e medidas.


Olha mulher, por brincadeira chamam-lhe o "engenheiro", não é verdade?


Pois, Deus dê muita saúde aos que lhe puseram essa alcunha; para terem tempo de lhe chamar "Sr. Engenheiro".


Cá para mim, era a melhor prenda que o nosso filho podia dar-nos: Chegar aqui, um dia, com um diploma de engenheiro!


E, tenho a certeza que isso há-de acontecer e que o nosso filho ainda vai ganhar mais dinheiro, num mês, do que o teu pai juntou em anos de vidas e apertos.


Mas homem, já lhe falaste no assunto e sabes que os que se dizem amigos do meu pai não dão bons conselhos; nunca puderam ir mais além.


Dali não vamos esperar muito e, ainda que tenha medo, gosto de te ouvir e sei que o Tonho sabe que tu pensas isso e ganha mais coragem.


Rezo para que tudo se realize, como tu e ele imaginam ... O nosso menino, engenheiro! Nunca houve outro cá na Terra!...


Saiu da escola há três anos e desde guardar o gado a começar a aprender a carpinteiro, nada o satisfaz; Há dias falou-me em ir para Lisboa, para casa do primo Chico. Por enquanto, pode empregar-se no comércio ou nas obras, mas perto da casa há escolas com aulas à noite e ele quer estudar a sério para fazer exames, antes de ir para a tropa. Se calhar, vou com o rapaz a Lisboa, ver o que se arranja. É que me começa a custar muito que o tempo passe...


Também acho isso boa ideia, deixa-me só comprar-lhe alguma roupita.


Não, mulher, arranjar-lhe algum dinheiro para as primeiras despesas com livros e estudos e deixar a roupa à vontade dele, parece-me melhor.


Daí a dias, pelos fins de Agosto, pai e filho saíram de manhã cedo, com uma malita e uma cesta de lembranças para o primo e, na camioneta dos Claras, foram, a Alferrarede, apanhar o comboio para Lisboa.


Era a primeira viagem do Tonho que pouco disse, durante todo o percurso. Não queria perder nada do que ia passando diante dos seus olhos.


Já na cidade grande, tudo o encantava: dos eléctricos aos centos de automóveis, das casas mais baixas às que tinham muitos andares, dos jardins às muitas árvores ao longo dos caminhos.


Ficou muito admirado com os polícias sinaleiros e gostou de ouvir dizer que os mais artistas eram uns Cigalhos de Alcaravela.


Até que lá chegaram a casa do primo; umas águas furtadas, perto do Jardim da Estrela.


Ainda nessa tarde, foram falar a um parente que tinha uma Drogaria em Campo de Ourique.


Logo ficou apalavrado o novo marçano/caixeiro. A loja fechava às sete horas e, aos sábados, à uma da tarde. Podia frequentar a escola ali perto, que dava aulas entre as sete e as onze da noite. Ficava, por isso, autorizado a sair às seis horas.


Iria começar a ganhar trezentos escudos e comida; pois o patrão morava no prédio do estabelecimento e queria ajudar o primo. No serviço de entregas, em casa dos fregueses também iria receber alguma coisa em gorjetas; isso dependia do serviço que fizesse e da simpatia que despertasse.


Estou de acordo, disse o Tonho: daqui até ir para a tropa quero ver se tiro o terceiro ano e depois logo se verá. Trabalhar não é problema, desde que possa estudar.


Nos três anos seguintes, o Tonho completou o quinto ano da escola industrial e depois, graças aos bons ofícios do primo e de uma cliente, esposa de um coronel, fez o serviço militar como amanuense, no Hospital Militar da Estrela.


Passou à disponibilidade dois meses antes de completar o sétimo ano e o exame de aptidão à Faculdade de Ciências, na rua da Escola Politécnica, onde iria fazer os três primeiros anos do Preparatório de Engenharia.


Depois do serviço militar, foi trabalhar nos escritórios de uma empresa de construções, onde fez um pouco de tudo, desde medidor/orçamentista, a desenhador, passando por encarregado de obras e fiscal de execução de projectos.


Finalmente, completados os Preparatórios, iniciou a última etapa da sua carreira académica no Instituto Superior Técnico, onde, aos vinte e seis anos, recebeu o diploma de Engenheiro Civil, com a classificação de 16 valores e uma mão cheia de ofertas de estágio, bem como um convite de um dos Professores, para Assistente no Instituto.


Mas o que o "Senhor Engenheiro" queria era trabalhar como engenheiro, no terreno, vendo crescer as obras.


Esteve uns doze anos sem ir à aldeia. Porém, os pais passavam grandes temporadas em casa do filho.


Mas não iria ficar por ali a vida do Eng. António Matos Mendes:


Trabalhou, já com funções directivas, numa das maiores empresas nacionais, até que foi convidado para tirar um curso nos Estados Unidos, seguido de estágio, ao mais alto nível.


Três anos depois, o Engenheiro Matos Mendes, considerado como um dos técnicos mais competentes da época, dava aulas no IST de Lisboa, onde tinha, sob sua orientação, uma larga equipa de colegas e técnicos auxiliares.


Os seus proventos mensais ultrapassavam todo o pecúlio que o avô materno terá poupado durante toda a sua vida.


Estava completado o ciclo que enchera, um dia, a capacidade limitada da cabeça do pai, que a doença teimava em reter num leito de hospital, mas vivo o tempo suficiente para ver um percurso brilhante de um Engenheiro com o seu nome.


Faltava-lhe uma coisa, dizia o velho, não tanto pelos anos mas pela doença: assistir ao casamento do filho e conhecer os seus netos. A compensação por todas as angústias que lhe roeram a alma, vinha aos poucos e todas as vezes que alguém lhe perguntava pelo Senhor Engenheiro, especialmente os que, em tempos, lhe chamavam "engenheiro", a mãe, lamentava-se pela saúde do marido e só dizia que tinha muita pena de não poder gozar, com o seu homem, todas as coisas boas que o filho lhes punha à disposição.


Mas a hora chegou; no dia do casamento, o Senhor Engenheiro, já perto dos quarenta anos, encontrou-se finalmente na encruzilhada da vida: o pai, com a plenitude dos seus desejos satisfeitos e, principalmente, vendo realizados os sonhos do filho, partiu, na maior das serenidades.


Foi muito comentado o aspecto tranquilo, sereno e feliz, do rosto de quem tanto sofreu e se transfigurou, completamente, quando chegou a sua realização e soou a sua hora.


Não chegou a poder ver na placa toponímica do bairro construído no seu concelho o nome de Joaquim Mendes, que o Senhor Engenheiro mandou colocar no lugar que, por direito próprio, estava destinado ao seu próprio nome.


Não viu também o seu neto que recebeu o nome de Joaquim.


Estes foram os homens que, na maior parte das vezes, contra tudo e contra todos, ousaram um dia desafiar o destino e cometer o sacrilégio de contrariar a vontade dos deuses, arrancando os filhos à vida dura, ingrata e desumana, que os manteria na mediocridade, incultura e pobreza, que os recursos das terras das nossas províncias, proporcionavam nos meados do séc. XX.


Nós, os filhos destes homens, ainda não conseguimos elevar as nossas terras ao nível que eles sonharam: que as suas terras fossem prósperas, as pessoas cultas e livres, os seus recursos pródigos e abundantes e as suas gentes cordatas e felizes.


E, se há falhas irreversíveis, esta é uma delas; não se afigura que os que depois de nós hão-de vir, já sem o fermento que nos levedou e fez crescer, suprimam as nossas faltas e compensem as nossas omissões.


Ter-se-á perdido a oportunidade.

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