segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O "cornel" Isidoro


Era finório, o Isidoro! 

Não havia, nas redondezas, quem se lhe comparasse a imitar um casal de perdizes, na altura do acasalamento, ou uma lebre, nas ocasiões do cio. Apanhava pássaros, à mão, e pescava sem rede nem anzol. 

Órfão de mãe e sem pai conhecido, vivia com o avô, nos casebres das azenhas da ribeira do Verdigal, já a caminho de Mouriscas.

Era companhia desejada por todos os caçadores. 

A bater mato e a descobrir tocas, ninguém o batia e a seguir pistas, tinha mais faro que qualquer cão bem dotado. 

Sempre que podia fugia ao avô e aparecia, depois, com três ou quatro peças de caça, ou um junco, da ribeira, cheio de peixes.

Nascido e criado lá nos casebres das azenhas do avô, nunca soube fazer muito mais que abrir e fechar águas, remendar buracos nos açudes e cômoros das levadas, ligar e desligar rodízios e, embora pouco sabendo de contas, fazia, rigorosamente, as maquias dos taleigos. 

Tinha uma sensibilidade muito especial, segundo as palavras do avô, para picar as pedras das azenhas. Desde pequeno que o rapaz tratava das pedras da farinha triga e todas as freguesas gabavam a farinha moída por elas.

Completava o grupo um velho burrito - o cornel -, que distribuía os taleigos de farinha e transportava, no retorno à azenha, as sacas de grão para moer. 

Fazia cinco voltas por semana, habitualmente acompanhado pelo Isidoro, pois o velho Severino raras vezes saía dos limites dos moinhos. 

Eram, assim, poucos os dias em que o cornel não tinha de alombar com os taleigos e, escarrapachado sobre eles, o matulão do dono novo, que em termos de mimos era muito mais pródigo que o velho moleiro. 

A cacheira trabalhava muito mais, o tempo para ir tosando umas ervas era encurtado e, se o dono se lembrasse de ir até à ribeira pescar ou nadar, acabava por ficar carregado, preso a um pinheiro, muitas vezes ao sol, até que o soltassem para continuar caminho, até ao seu destino. 

Sorte de burro, pensaria resignado o cornel, na esperança que, um dia, a vida pudesse mudar. Às vezes suspirava pelo patrão velho, mas que havia de fazer!...

O cornel era manso como as pedras do chão, dizia o velho Severino. 

Porém era melhor guardar-lhe a traseira; pois se pressentisse algo ao seu alcance, por trás da rabada, mesmo carregado, levantava as traseiras e lá vai disto: coice que acertasse era para fazer mossa! 

Mas, para mim, que me lembre, nunca levantou uma pata, sentenciava o velho moleiro.

A lei entre moço e cornel era bem clara: se se portasse às direitas, como lhe dizia o dono, comia, bebia água, levava uma ou outra cacheirada, mas muito raramente e tudo ia correndo bem. 

Se se armasse em vivo, se levantasse as patas para o dono, se mostrasse os dentes, ou se tentasse despejar a carga, era bordoada que fervia, sem dó nem piedade, ficando muitas vezes as marcas bem à vista, na cabeça, especialmente junto dos olhos.

Até as freguesas diziam: Ah! Isidoro, que se um dia o cornel te puder ser bom, vais pagá-las todas juntas! Podias tratar um pouco melhor o pobre animal! Mas espera-lhe pela pancada e talvez ainda venhas a ver a falta que te faz se um dia o não tiveres!

Ora, o burro é ele e quando se arma em esperto tem de saber por onde elas lhe doem, respondia, quando estava para aí virado, o Isidoro.

Um dia de fins de inverno, depois de semanas de chuva, com os caminhos para os engenhos cheios de lama e algumas barreiras caídas, impedindo a passagem nas zonas mais estreitas, o Isidoro, a pé, atrás do animal, reparou que tinha carregado de mais para as condições do caminho, mas que aguentasse e, lá ia desfechando umas cacheiradas sobre o lombo do cornel.

Numa passagem mais estreita do caminho, ao desviar-se de umas pedras caídas, o animal colocou uma pata em falso e caiu para um barranco, espalhando os taleigos e não conseguindo libertar-se a ponto de sair do buraco. 

Os puxões pela arreata e as ajudas do rapaz, foram insuficientes para fazer voltar o cornel ao caminho. 

Mais não restou ao Isidoro que ir chamar o avô a ver o que poderiam fazer, para salvar taleigos e burro.

Chegados ao local, encontraram os taleigos todos espalhados pelo chão, restos da albarda e do cabresto, mas do burro, nem sinais. 

Procuraram nas imediações, seguiram pistas de pegadas, olharam em redor, até onde podiam alcançar e nada. 

Foram até ao povo e perguntaram a quem encontraram e tudo em vão. Ninguém dera pelo burro nem vira quaisquer sinais dele. 

Regressaram às azenhas, ainda com alguma esperança de que o animal se tivesse libertado e puxasse à malhada, mas não havia mais nada a fazer senão ir pedir uma besta emprestada, recolher os taleigos e começar na distribuição, até que o tempo se encarregasse de fazer aparecer o cornel, ou alguém desse notícias dele. 

Foram passando os tempos; o Ti'Severino comprou outro burro a que acabou por pôr o nome de "major" até que fizesse o tempo suficiente para ser cornel se merecesse ser promovido. 

O avô mandou o Isidoro às feiras de gados das redondezas, acercar-se e revistar acampamentos de ciganos, e chamando, disfarçadamente, o nome "cornel" quando passava por algum burro, mas tudo tempo perdido. Do burrito, nem novas, nem mandados.

Até que um dia, um pedinte que passava habitualmente pela aldeia, e sabia do desaparecimento do burrito, foi procurar o moleiro e disse-lhe que na feira de Santa Cita, a muitos quilómetros dali, lá para os lados de Tomar, ouviu um cigano a vender um burro, que disse ter encontrado para os lados de Alcaravela, sem arreios nem cabresto, mas manso como as pedras do chão. 

Não sabia como se chamava mas só o venderia a quem fosse de terras de sentido contrário, como medida de segurança. O que queria era negociá-lo para bem longe e tinha pressa no negócio, pelo que aceitava vinte notas e não se falava mais nisso. Jurava, à fé de quem era, que o burro não fora roubado.

Numa feira de Abrantes, o Isidoro, já homem e dono dos engenhos - o velho avô já o tinha deixado -, viu um burrito e, de repente, alguma coisa lhe fez lembrar o cornel. 

Só que o achava mais novo; mas os ciganos fazem do velho novo e também o contrário, quando lhes convém e foi chamar um parente para o ajudar nos entretantos de um possível negócio. 

Começaram por qualidades, defeitos, força, idade, enfim tudo o normal para avaliar uma besta. Quando o Manel lhe garantiu que o burro tinha entre doze e quinze anos, o Isidoro que pouco conhecia de números e contas pensou: 

Então se tem entre doze e quinze e o cornel desapareceu vai para cinco e já tinha mais de vinte e cinco em nossa casa, não é possível que seja ele.

Ao perceber aqueles pensamentos do parente, o Manel disse-lhe: mesmo que encontrasses agora o teu burro não te serviria para nada: se estiver vivo há-de ter mais de trinta e cinco anos - para que quererias um animal tão velho; para teres, daqui a alguns dias, o trabalho de enterrá-lo?

O que te dói, sei eu: tratava-lo mal, mas ainda foi o melhor que tiveste e como castigo nunca conseguiste livrar-te das culpas do seu desaparecimento. Deixa lá que com o tempo tudo passa e hás-de deixar de pensar no pobre burro.

Das três alcunhas que mimoseavam o moleiro, uma só o incomodava e tirava do sério, sempre que lhe chegava aos ouvidos: "cornel Isidoro". 

Muitas das mágoas que afogava nas tabernas das terras por onde ia entregando os taleigos eram mais penosas quando alguém lhe tocava no assunto. 

Acabou por ser encontrado, sem vida, sobre o catre onde passava as noites, com os restos do cabresto do velho burrito, à cabeceira.