Um pequeno alto, liso e plano – restos de uma eira, que o povo deixara de usar havia muito tempo -, com o chão de lajes unidas por tapetes de margaridas, brancas e amarelas, a que é vulgar chamar-se pampilhos, com uma cercadura de roseiras bravas, onde se apanhavam flores para secar e guardar para as “mezinhas”.
Com a porta virada a nascente e a maior parte das telhas, ou retiradas, ou partidas, pouco restava da casita que servira para guardar os feijões, grãos-de-bico, chícharos, ervilhas, favas e até milho, que ali se malharam e secaram.
Do outro lado, a nascente, portanto, havia ainda restos de marmeleiros, já cobertos de balças, e duas romãzeiras, que faziam os encantos e delícias da menina.
Ah! E pelo norte, ainda se podia ver o rego da represa, já sem uso, mas demarcando o início da courela de pinheiros que por ali se estendia até aos altos do monte, onde a menina nunca subira.
Dali, porque se via até um pouco mais longe que da rua de baixo, onde estavam as casas quase todas, via-se todo o caminho da fonte, por onde as mulheres crescidas passavam com os cântaros e os asados, debaixo do braço, quando iam para cima, com eles vazios, e bem direitos e equilibrados, sobre as rodilhas de trapos, no alto da cabeça, quando voltavam, para casa, com eles cheios, até os pousarem na cantareira, ao canto da cozinha.
Ainda que exposto aos ventos e sem outras guardas, estava ali o castelo da menina, a sua fortaleza, o seu reduto, o centro do seu mundo. Nasceram ali, sem conhecerem destino, nem termo, muitos dos sonhos, inquietações e dúvidas da menina que por ali cresceu, amadureceu e um dia abalou.
Que maravilha! Aqueles milhões de gotinhas de água, que confluíam na bica da fonte, vindas de todos os recantos do mundo - sim, porque a água é sempre a mesma; não se perde nem se cria, só não fica, nunca, parada -!...
A menina pensou então, para onde seguiriam todas aquelas irmãzinhas que se tinham juntado ali na fonte e estavam, agora, prisioneiras dentro dos cântaros.
Mas, que interessava isso; podiam ser bebidas por justos ou pecadores, por homens ou por animais, por plantas e até pela própria terra. Porém, haviam todas de voltar a ser livres e seguir o seu destino, até, talvez, quem saberia, voltariam a uma outra bica de outra qualquer fonte.
Mas voltou a inquietar-se: seria possível que alguma daquelas gotinhas já por ali tivesse passado e reconhecesse o local? E que diferenças teria encontrado? Seria bonito saber-se. Pelo menos valeria a pena imaginar!... E a menina meditava, voava, voltava e nem dava pelo passar do tempo…Ainda no viço e vigor da vida, nunca se cansava, nem desiludia, a imaginar coisas e a sonhar.
Quando voltava a fixar-se nos pinheiros da portela em frente, lá para os lados do rio grande, que começa perto dali, ainda tão pequenino, lembrava-se do que sentiram aquelas gotas prisioneiras, ao ver as irmãs correrem livres e felizes na corrente do ribeirito? E, depois, ao entrarem no mar, com aquele sal todo? Como iriam sobreviver naquela tão grande multidão?!...
Quedou-se, depois, à ilharga de um pequeno alegrete, onde resistiam os restos de uma velha roseira mansa, com cinco botões floridos e extasiou-se com o cheiro suave e autêntico daquela maravilha da Natureza.
E o rosa, tão natural e belo, daquelas pétalas a começar a despontar?! Seria justo colhê-las? Seria melhor deixá-las morrer ali, onde nasceram, sem nunca conhecerem uma carícia, um carinho, uma ternura?!
Apanhou uma pedrita do chão e olhou-a, cuidadosamente. Tinha muitas cores e brilhos muito intensos quando reflectia a luz do sol. Era formada por uma infinidade de partículas, semelhantes a areias pequeninas, que alguma força enorme teria juntado umas às outras.
E porque se teriam juntado aquelas partículas e não outras? E quantas mais já se teriam desagregado e partido, levadas pelos ventos, pelas águas, pela acção de homens ou máquinas, por algum passarito?!
Porém as pedras pareceram-lhe diferentes da água; não sabia bem porquê, nem lhe apeteceu aprofundar isso. Eram diferentes e pronto.
Naquele enlevo da Natureza, deu consigo a olhar-se, a ver-se diferente, a sentir mudanças, a pensar-se e a imaginar muitas coisas. Afinal, também ela era um conjunto de tantas e tão variadas partes e, como ouvira dizer que a maior parte do nosso corpo é formado por água, sentiu-se carcereira de milhões de pequenas gotículas desse líquido.
Mas estas tinham outra finalidade, eram, afinal, o suporte da vida e da alma. Por ali não avançou, pois ainda não tinha conseguido compreender o que isso era e na Catequese não lhe tinham acabado com as dúvidas. Pelo contrário, tinham-lhe despertado muitas outras questões que, tinha esperança, haviam de vir a ter resposta.
Nas oliveiras dos fundos da tapada faziam os ninhos muitas espécies de passaritos.
A menina conhecia os pintassilgos, os tentilhões e as carricitas; aos pardais, porque não cantavam, não dava muita atenção.
A maior das maravilhas residia na tão grande amálgama de trinados, que, embora diversos, acabavam por produzir efeitos harmoniosos e parecia até que se calavam uns para que outros se fizessem ouvir.
Numa variedade tão grande de sons, maravilhoso é o maestro que harmoniza toda aquela panóplia, pensava a menina!... E entretinha-se a descobrir acordes e melodias.
Acabou a pensar que a água, as pedras, as flores e os pássaros eram felizes: podiam viajar pelo mundo, conhecer novas coisas, subir ao cimo das árvores e dos montes, descer às entranhas da terra e percorrer caminhos nunca antes conhecidos.
E então os passaritos da sua terra que sempre têm solinho, ventos pouco fortes e comidinha com fartura, deviam ser felizes e, por isso, cantavam tão bem, tão afinadinhos e tão contentes!...
E, ao pensar em tudo o que a rodeava, reparou que a poucos metros dali se erguiam os cumes dos cerros e as curvaturas dos vales, fechando o horizonte. Para baixo, só a água se infiltrava, na terra. E para cima? Ora aí está, pensou ela: para cima não há horizonte, posso ver até ao céu que nada se mete na frente – as nuvens não param; por isso não incomodam -.
Feliz, nessa cogitação, logo se lembrou do escuro da noite. Tão terrível e potente que conseguia apagar o próprio sol, que tanta força parecia ter quando cobria toda a terra e, mal se aproximava a noite, fugia, não se sabendo para onde, para se esconder, com medo. Iria para outro lado? Não parecia natural, pois que ele está em toda a parte que podemos ver.
Ao ver todas aquelas coisas a menina sentiu alegria; sentiu-se bem, saboreou a brisa que baixava ao fim da tarde, enlevou-se com as sinfonias dos passaritos, regalou-se com a água pura da fonte, inebriou-se com o cheiro das rosas, deliciou-se com o colorido das flores, saciou-se com os sabores das frutas e das hortaliças da horta. Até o escuro, que todas as noites caía, lhe traziam paz e serenidade para dominarem o medo e a angústia da solidão.
É preciso experimentar todas estas pequeninas coisas para se sentir verdadeira alegria; os que têm tudo, não conhecem a sensação dos simples quando desfrutam das pequenas coisas e não compreendem a sua alegria.
É que a alegria é um estado de alma e, comparando a alma a um copo de água, tanto o podem ter os mais simples como os menos simples. A diferença estará no tamanho dos copos: enquanto uns os enchem facilmente, porque os têm mais pequenos, outros necessitarão de mais água, porque têm os copos maiores. Mas, quando ambos estiveram cheios, alcançarão ambos a plenitude.
A menina lembrava-se, então, da Tia Maximina, quando ela lhe dizia: “para comer, escolhe os figos mais pequenos; a figueira levou menos água e por isso dá os frutos mais doces e saborosos. Os outros, das figueiras que tiveram fartura de tudo, são sensaborões e deslavados. Só são maiores.”
A menina habituou-se a falar, melhor dizendo a comunicar com as árvores, as flores, as fontes e as outras coisas simples de todos os dias.
Fez as suas confidências, deixou queixas, pediu conselhos, partilhou mágoas, segredou desejos, saboreou consolos, confiou lágrimas e teve alegrias; nunca, porém, se sentiu traída ou defraudada, embora muitas esperanças nunca alcançassem a realização, algumas paixões não tenham sido sublimadas e muitos caminhos não tenham tido saída.
Nisso reside a verdadeira felicidade, o consolo dos simples: não valorizar o que visionam, mas o que têm; não usar copos maiores que a sede que têm e bebê-los cheios; não desperdiçar, antes aproveitar, cada momento que a vida lhe entregar.
Não prescindir do sonho, pois o poeta tem razão: o sonho comanda a vida!
E nós podemos acrescentar: o sonho, devidamente seguido, é o melhor caminho para alcançar e conquistar aquilo a que temos direito!