segunda-feira, 24 de outubro de 2011

O“drama”no Rochoso



Assisti, na aldeia da minha mulher, na Beira Alta, entre a Guarda e Vilar Formoso, a um espectáculo inédito, para mim, mas com profundas tradições na região e representativo e mobilizador das gentes daquelas paragens. 

Foi anunciado, à boa maneira dos antigos arautos e pregoeiros, um “drama” que teria lugar na sala da casa paroquial, no sábado seguinte, uma hora depois das trindades, logo a seguir à reza do terço na igreja da terra. 

Eram convidadas todas as pessoas da aldeia e amigos, para assistir ao “drama – Dª Inês de Castro”, representado pelas pessoas da terra e ensaiado pelo senhor Antoninho, como habitualmente. 

Os “dramas” representados na terra, tinham tradição: contavam os mais velhos que desde que se lembravam e segundo o que sempre ouviram, eram muitíssimo antigas aquelas representações lá na aldeia. 

Visavam histórias e cenas do tempo dos Romanos, autos de Gil Vicente e outros autores portugueses, especialmente Almeida Garrett e, quer se tratasse de tragédias, comédias, ou histórias de final feliz, eram sempre “dramas” para o povo. 
Nos tempos mais remotos da memória dos mais idosos, eram, invariavelmente, representados no cabanal do senhor vigário, ao tempo Cónego Domingos, tendo daí passado para a casa das almas, quando deixou de funcionar lá a escola primária e, mais tarde, para a casa paroquial. 

Havia, ainda, vários ensaiadores vivos, embora, nos últimos anos, fosse o senhor Antoninho o mestre de serviço, recebendo, todavia, uma mãozinha, muito útil, da irmã Ritinha que, ao tempo, estava no colégio da Cerdeira. 

Os actores, cujas idades variavam entre a meia dúzia e as muitas dezenas de anos, incluíam estudantes, funcionários, emigrantes, gente da terra e outros de boa vontade, como costumava dizer o ensaiador. 
Os textos eram levados a preceito e passados, à mão, pelo senhor Antoninho que os distribuía aos “actores” a quem dava os seus conselhos e orientações e depois ia corrigindo nos ensaios, de modo que no dia (15 de Agosto) tudo estivesse afinado para que ninguém fizesse figuras tristes. 

Ah!... É bom não esquecer que antes da representação pública e quando tudo já estava mais ou menos apresentável, era feita uma sessão, à porta fechada, para que o senhor Cónego Domingos pudesse aferir o conteúdo dos textos e a moralidade dos desempenhos dos actores, censurando o que, do seu ponto de vista, devia ser retirado e tudo o que ofendesse a moral e os bons costumes. 
Poucas vergonhas, não!... Gritava o senhor Cónego; pelo menos enquanto eu por aqui estiver e for responsável por vós. E tu, Antoninho, vem aqui para ao pé de mim e toma bem nota: 

A Inês e as suas damas de companhia serão representadas por rapazes que, com a tua habilidade não será difícil caracterizar. Não são necessárias cenas que envolvam e impliquem contactos físicos entre as pessoas. Os senhores Conselheiros serão pessoas de bem e, em respeito pela nossa História, não são religiosos, nem nas outras cenas há padres e freiras, que nunca se misturaram naquelas tristes andanças. 

Os filhos de Inês não precisam estar presentes no drama. E agora vê lá o que tens de corrigir e prepara tudo como acabo de te dizer. Verás que não ficarás mal e toda a gente perceberá o drama e não verá imoralidades. 

Bem, o senhor Antoninho nem queria acreditar no que acabava de ouvir: O que o senhor Cónego queria mudava quase todos os actores, alterava muitos papéis que tinham de voltar a ser escritos e acabava por falsear a verdade histórica. 

Ainda pensou em mandar recolher os prospectos que tinha mandado afixar nas aldeias das redondezas, mas também não era com ele dar parte de fraco e optou por meter mãos à obra e fazer as alterações exigidas por quem, afinal de contas, sempre saberia mais que ele. 
Começou pelas personagens: Dª Inês, que estava a ser ensaiada pela Dulce, passaria para o Acácio; D. Pedro continuava a ser representado pelo Ti’ Alberto Martins, as aias também não eram muito importantes e, se fossem rapazes bem vestidos de mulher, também haveriam de guardar as distâncias e evitar as brejeirices que não podiam aparecer no drama. 

Afinal tudo se havia de arranjar e ele passava agora a ter de desempenhar um papel muito importante: convencer que as novas personagens estavam mais conformes com a verdade da História. 

Por isso, as meninas iam ser trocadas. Pareceu-lhe, todavia, que as açafatas mais velhas, que serviam no paço, poderiam ser representadas por mulheres idosas e respeitáveis e, para isso, acabou por ter a anuência do senhor Cónego Domingos. E atirou-se ao trabalho. 
Num dos ensaios em que a Dª Inês apareceu sem ser caracterizada, a irmã Ritinha que tinha vindo ajudar, sorriu-se ao ver o Acácio. Porém, vendo o bom desempenho e enlevo com que o rapaz assumia a personagem, dirigiu-se ao senhor Antoninho e, com um sorriso nos lábios, disse-lhe: 
Deixe lá, tudo há-de correr bem e acabaremos por fazer o que pode não ser o mais correcto, mas, pelo menos, respeitamos a vontade do senhor Cónego. 

Do Jornal “A Região da Guarda”: A representação do “drama”, na casa paroquial do Rochoso, foi um dos momentos em que a cultura do povo se elevou a tal nível, que temos dificuldade em classificar este espectáculo tão autêntico e genuíno, pois ele, por si só, já conquistou a nota máxima. 

O senhor Antonino foi um homem de grande influência na terra, onde controlava a maior parte do que se passava e ia pautando o pulsar da vida e vivência no povoado. 

Homem de teres e haveres, acumulava a função de guarda-rios com a gestão dos negócios que iam da taberna à recolha e venda do leite da maioria dos proprietários de vacas, e à arrebanha e venda, para Lisboa, de muitas arrobas de batatas produzidas no Rochoso e anexas. 
Homem de fino faro por tudo o que se passasse na terra, conhecia e geria muitos interesses de gentes que a ele recorriam, para um bom conselho ou intermediação numa demanda. Movia influências de paz e concertação entre desavindos; sabia fechar os olhos ao que lhe convinha e ser duro e rigoroso, quando era conveniente. Usava o bom senso e dava-se ao respeito; coisas que muito agradavam às gentes dos meios rurais. 

Era intransigente na defesa dos interesses da família e sempre colocou numa das suas primeiras prioridades a educação e instrução dos quatro filhos. 

Quando foi arrastado para a esfera do genro, difícil de conciliar com a sua experiência e nível de instrução, conduziu-se com habilidade e perícia, usando cautelas e ousadias, retirando os dividendos possíveis para a família, mas preservando o núcleo duro dos interesses e património da casa. 

Navegou à vista e aproveitou o que as circunstâncias lhe permitiram; soube, no entanto, ficar imune a tudo o que interpretou, correctamente, como contrário aos princípios e ofensivo daquilo que considerava sagrado: o seu bom nome e o bem-estar e segurança da família e do seu património. 

Tive o privilégio de conviver com o “padrinho Antoninho” e muito aprender com ele, sobre os usos, costumes, hábitos e maneiras de ser das gentes daquelas terras. Sempre apreciei a sua inteligência prática e objectiva e sempre o vi como indefectível zelador dos seus interesses e dos dos seus. Essas eram as motivações básicas da sua conduta, pondo a família acima de tudo. 

Nos tempos conturbados dos anos setenta e oitenta, esperou, deixou assentar a poeira, tirou os azimutes e pairou. Soube estar por dentro, sem se comprometer e sacudir o pó, sem se enxovalhar. Mais uma vez foi exímio na defesa dos seus familiares e até dos interesses da sua terra. 

Esteve sempre bem com gregos e troianos, nunca se comprometeu abertamente, comungou das mesas de fartura e benesses, mas como as enguias da ribeira, quanto mais escorregadio mais desejado. Parecia movimentar-se, qual actor, num “drama”: pode correr melhor ou pior; o que importa é que na memória das pessoas fique o final e, esse sim, deve ser, invariavelmente, feliz. E fez isso e foi assim sem nunca ter ocupado cargos políticos; movia-se melhor na sombra. 
Mas porque realço desta forma a personagem que ensaiava os dramas? Então o sucesso, ou insucesso, resultam mais do desempenho dos intérpretes ou do trabalho do ensaiador, por natureza débil e difícil? 
Por duas razões: porque me parece justa esta singela homenagem e porque, sem ele, muita coisa que se fez teria ficado por fazer. A maior parte dos textos acabava por ter a sua intervenção, pois sabia suprir as carências académicas com a sua experiência e o sentido censório do senhor Cónego. 

Dizia-me, quando lhe espicaçava a memória e me sentia verdadeiramente interessado em conhecer e compreender as verdadeiras motivações que o levavam a pôr de pé realizações culturais dignas de qualquer compêndio de Cultura e Arte Popular Portuguesas: 

Os maiores dramas, cujo autor (senhor Cónego) dificultava mais o meu trabalho que os escritores que tinham os nomes nos livros, eram os que faziam cabelos brancos. 
Sabe lá, afilhado, o que era aquele senhor Cónego Domingos!.. 
Era capaz de tudo o que possa pensar!... Chamava, do púlpito, os homens que tinham ficado fora da porta da igreja!.. 
Mas, tinha razão nalgumas coisas!... 

Deus lhe tenha a alma!... 
Bem-haja pelo que me ajudou e ensinou!...

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A eira dos sonhos


A eira dos sonhos


Um pequeno alto, liso e plano – restos de uma eira, que o povo deixara de usar havia muito tempo -, com o chão de lajes unidas por tapetes de margaridas, brancas e amarelas, a que é vulgar chamar-se pampilhos, com uma cercadura de roseiras bravas, onde se apanhavam flores para secar e guardar para as “mezinhas”. 

Com a porta virada a nascente e a maior parte das telhas, ou retiradas, ou partidas, pouco restava da casita que servira para guardar os feijões, grãos-de-bico, chícharos, ervilhas, favas e até milho, que ali se malharam e secaram. 

Do outro lado, a nascente, portanto, havia ainda restos de marmeleiros, já cobertos de balças, e duas romãzeiras, que faziam os encantos e delícias da menina. 

Ah! E pelo norte, ainda se podia ver o rego da represa, já sem uso, mas demarcando o início da courela de pinheiros que por ali se estendia até aos altos do monte, onde a menina nunca subira. 

Dali, porque se via até um pouco mais longe que da rua de baixo, onde estavam as casas quase todas, via-se todo o caminho da fonte, por onde as mulheres crescidas passavam com os cântaros e os asados, debaixo do braço, quando iam para cima, com eles vazios, e bem direitos e equilibrados, sobre as rodilhas de trapos, no alto da cabeça, quando voltavam, para casa, com eles cheios, até os pousarem na cantareira, ao canto da cozinha. 

Ainda que exposto aos ventos e sem outras guardas, estava ali o castelo da menina, a sua fortaleza, o seu reduto, o centro do seu mundo. Nasceram ali, sem conhecerem destino, nem termo, muitos dos sonhos, inquietações e dúvidas da menina que por ali cresceu, amadureceu e um dia abalou. 



Que maravilha! Aqueles milhões de gotinhas de água, que confluíam na bica da fonte, vindas de todos os recantos do mundo - sim, porque a água é sempre a mesma; não se perde nem se cria, só não fica, nunca, parada -!... 

A menina pensou então, para onde seguiriam todas aquelas irmãzinhas que se tinham juntado ali na fonte e estavam, agora, prisioneiras dentro dos cântaros. 

Mas, que interessava isso; podiam ser bebidas por justos ou pecadores, por homens ou por animais, por plantas e até pela própria terra. Porém, haviam todas de voltar a ser livres e seguir o seu destino, até, talvez, quem saberia, voltariam a uma outra bica de outra qualquer fonte. 

Mas voltou a inquietar-se: seria possível que alguma daquelas gotinhas já por ali tivesse passado e reconhecesse o local? E que diferenças teria encontrado? Seria bonito saber-se. Pelo menos valeria a pena imaginar!... E a menina meditava, voava, voltava e nem dava pelo passar do tempo…Ainda no viço e vigor da vida, nunca se cansava, nem desiludia, a imaginar coisas e a sonhar. 

Quando voltava a fixar-se nos pinheiros da portela em frente, lá para os lados do rio grande, que começa perto dali, ainda tão pequenino, lembrava-se do que sentiram aquelas gotas prisioneiras, ao ver as irmãs correrem livres e felizes na corrente do ribeirito? E, depois, ao entrarem no mar, com aquele sal todo? Como iriam sobreviver naquela tão grande multidão?!... 

Quedou-se, depois, à ilharga de um pequeno alegrete, onde resistiam os restos de uma velha roseira mansa, com cinco botões floridos e extasiou-se com o cheiro suave e autêntico daquela maravilha da Natureza. 

E o rosa, tão natural e belo, daquelas pétalas a começar a despontar?! Seria justo colhê-las? Seria melhor deixá-las morrer ali, onde nasceram, sem nunca conhecerem uma carícia, um carinho, uma ternura?! 

Apanhou uma pedrita do chão e olhou-a, cuidadosamente. Tinha muitas cores e brilhos muito intensos quando reflectia a luz do sol. Era formada por uma infinidade de partículas, semelhantes a areias pequeninas, que alguma força enorme teria juntado umas às outras. 

E porque se teriam juntado aquelas partículas e não outras? E quantas mais já se teriam desagregado e partido, levadas pelos ventos, pelas águas, pela acção de homens ou máquinas, por algum passarito?! 

Porém as pedras pareceram-lhe diferentes da água; não sabia bem porquê, nem lhe apeteceu aprofundar isso. Eram diferentes e pronto. 

Naquele enlevo da Natureza, deu consigo a olhar-se, a ver-se diferente, a sentir mudanças, a pensar-se e a imaginar muitas coisas. Afinal, também ela era um conjunto de tantas e tão variadas partes e, como ouvira dizer que a maior parte do nosso corpo é formado por água, sentiu-se carcereira de milhões de pequenas gotículas desse líquido. 

Mas estas tinham outra finalidade, eram, afinal, o suporte da vida e da alma. Por ali não avançou, pois ainda não tinha conseguido compreender o que isso era e na Catequese não lhe tinham acabado com as dúvidas. Pelo contrário, tinham-lhe despertado muitas outras questões que, tinha esperança, haviam de vir a ter resposta. 

Nas oliveiras dos fundos da tapada faziam os ninhos muitas espécies de passaritos. 

A menina conhecia os pintassilgos, os tentilhões e as carricitas; aos pardais, porque não cantavam, não dava muita atenção. 

A maior das maravilhas residia na tão grande amálgama de trinados, que, embora diversos, acabavam por produzir efeitos harmoniosos e parecia até que se calavam uns para que outros se fizessem ouvir. 

Numa variedade tão grande de sons, maravilhoso é o maestro que harmoniza toda aquela panóplia, pensava a menina!... E entretinha-se a descobrir acordes e melodias. 

Acabou a pensar que a água, as pedras, as flores e os pássaros eram felizes: podiam viajar pelo mundo, conhecer novas coisas, subir ao cimo das árvores e dos montes, descer às entranhas da terra e percorrer caminhos nunca antes conhecidos. 

E então os passaritos da sua terra que sempre têm solinho, ventos pouco fortes e comidinha com fartura, deviam ser felizes e, por isso, cantavam tão bem, tão afinadinhos e tão contentes!... 

E, ao pensar em tudo o que a rodeava, reparou que a poucos metros dali se erguiam os cumes dos cerros e as curvaturas dos vales, fechando o horizonte. Para baixo, só a água se infiltrava, na terra. E para cima? Ora aí está, pensou ela: para cima não há horizonte, posso ver até ao céu que nada se mete na frente – as nuvens não param; por isso não incomodam -. 

Feliz, nessa cogitação, logo se lembrou do escuro da noite. Tão terrível e potente que conseguia apagar o próprio sol, que tanta força parecia ter quando cobria toda a terra e, mal se aproximava a noite, fugia, não se sabendo para onde, para se esconder, com medo. Iria para outro lado? Não parecia natural, pois que ele está em toda a parte que podemos ver. 

Ao ver todas aquelas coisas a menina sentiu alegria; sentiu-se bem, saboreou a brisa que baixava ao fim da tarde, enlevou-se com as sinfonias dos passaritos, regalou-se com a água pura da fonte, inebriou-se com o cheiro das rosas, deliciou-se com o colorido das flores, saciou-se com os sabores das frutas e das hortaliças da horta. Até o escuro, que todas as noites caía, lhe traziam paz e serenidade para dominarem o medo e a angústia da solidão. 

É preciso experimentar todas estas pequeninas coisas para se sentir verdadeira alegria; os que têm tudo, não conhecem a sensação dos simples quando desfrutam das pequenas coisas e não compreendem a sua alegria. 

É que a alegria é um estado de alma e, comparando a alma a um copo de água, tanto o podem ter os mais simples como os menos simples. A diferença estará no tamanho dos copos: enquanto uns os enchem facilmente, porque os têm mais pequenos, outros necessitarão de mais água, porque têm os copos maiores. Mas, quando ambos estiveram cheios, alcançarão ambos a plenitude. 

A menina lembrava-se, então, da Tia Maximina, quando ela lhe dizia: “para comer, escolhe os figos mais pequenos; a figueira levou menos água e por isso dá os frutos mais doces e saborosos. Os outros, das figueiras que tiveram fartura de tudo, são sensaborões e deslavados. Só são maiores.” 

A menina habituou-se a falar, melhor dizendo a comunicar com as árvores, as flores, as fontes e as outras coisas simples de todos os dias. 

Fez as suas confidências, deixou queixas, pediu conselhos, partilhou mágoas, segredou desejos, saboreou consolos, confiou lágrimas e teve alegrias; nunca, porém, se sentiu traída ou defraudada, embora muitas esperanças nunca alcançassem a realização, algumas paixões não tenham sido sublimadas e muitos caminhos não tenham tido saída. 

Nisso reside a verdadeira felicidade, o consolo dos simples: não valorizar o que visionam, mas o que têm; não usar copos maiores que a sede que têm e bebê-los cheios; não desperdiçar, antes aproveitar, cada momento que a vida lhe entregar. 

Não prescindir do sonho, pois o poeta tem razão: o sonho comanda a vida! 

E nós podemos acrescentar: o sonho, devidamente seguido, é o melhor caminho para alcançar e conquistar aquilo a que temos direito!

sábado, 8 de outubro de 2011

O "engenheiro" Tonho


O "Tonho" anda para pregar alguma.


Sai por aí sozinho, corre tudo o que é vereda e carreiro, com os olhos postos no chão, longe de tudo e de todos; muitas vezes nem à salvação responde e quando, distraidamente, levanta os olhos e encara alguém, cai das nuvens e fica, completamente, a leste.


Achas normal, Manel? E olha que quando um turrão como ele encasquilha uma coisa na cabeça, é preciso ficar de olho aberto, antes que o Diabo as teça.


Coisas na cabeça metes tu, mulher! Deixa lá o moço em paz! Então, sempre soube bem o que queria e agora, que está com um pé nas sortes, tem de voltar a mãezinha do menino a tratá-lo como um garoto.


O rapaz pensa na vida, faz os seus planos e, se calhar, não enxerga, por aqui, ninguém com quem se possa abrir. Ainda vais ter muitas surpresas e olha que, ou muito me engano, ou vão ser bastante agradáveis.


Foi um erro não termos pensado em mandá-lo estudar; é esse o maior remorso que me há-de consumir todos os dias.


Lembras-te do que dizia a professora? Que há muito que não lhe passava uma cabeça melhor que a dele, pelas classes que ia ensinando!


Mas homem, onde íamos nós buscar...


Não, por aí não há desculpas: só temos este e o teu pai tem dinheiro a render.


E também não tem mais netos. Mas, ao que por aí dizem, não há dia nenhum que se deite sem ir olhar e apalpar as notas que tem numa caixa de lata, escondida numa pilheira do quarto, mesmo por trás da cabeceira.


Até as raparigas, com quem gastava sempre dez réis de saliva num piropo, se queixam da distância do Tonho. Mesmo a Leonor, com quem vai falando, diz que não consegue perceber o que ele pensa, mas que tem tudo programado e a volta da vida, será a tropa.


Até já terá pensado em se oferecer como voluntário!


Vê lá tu, homem, se um dia nos dá um desgosto desses!


Não te rales mulher, que ele sabe ao que vai e, se queres saber a minha opinião, nunca lhe darei para trás e não será por mim que deixará de voar tão alto quanto puder.


Peço a Deus que o ajude e ilumine o seu caminho, que tudo o que lhe puder dar, não lho recusarei.


O nosso filho sempre se interessou por tudo o que não conhecia. Gosta de tudo o que mexe. Tem um jeito especial para os animais. Fica a olhar para o céu quando ouve barulho de avião que por aqui passe.


Lembras-te de quando há, por aí, alguma obra? Passa horas esquecidas a ver fazer as paredes, medir e planear os degraus das escadas, fazer as armações dos telhados, acertar portas e janelas ...


A senhora professora sempre disse que tinha uma queda especial por Ciências Naturais, Geografia, Aritmética e Geometria.


E, nos seus desenhos, havia sempre casas, estradas, pontes, barragens, torres e tudo o que metesse formas geométricas e medidas.


Olha mulher, por brincadeira chamam-lhe o "engenheiro", não é verdade?


Pois, Deus dê muita saúde aos que lhe puseram essa alcunha; para terem tempo de lhe chamar "Sr. Engenheiro".


Cá para mim, era a melhor prenda que o nosso filho podia dar-nos: Chegar aqui, um dia, com um diploma de engenheiro!


E, tenho a certeza que isso há-de acontecer e que o nosso filho ainda vai ganhar mais dinheiro, num mês, do que o teu pai juntou em anos de vidas e apertos.


Mas homem, já lhe falaste no assunto e sabes que os que se dizem amigos do meu pai não dão bons conselhos; nunca puderam ir mais além.


Dali não vamos esperar muito e, ainda que tenha medo, gosto de te ouvir e sei que o Tonho sabe que tu pensas isso e ganha mais coragem.


Rezo para que tudo se realize, como tu e ele imaginam ... O nosso menino, engenheiro! Nunca houve outro cá na Terra!...


Saiu da escola há três anos e desde guardar o gado a começar a aprender a carpinteiro, nada o satisfaz; Há dias falou-me em ir para Lisboa, para casa do primo Chico. Por enquanto, pode empregar-se no comércio ou nas obras, mas perto da casa há escolas com aulas à noite e ele quer estudar a sério para fazer exames, antes de ir para a tropa. Se calhar, vou com o rapaz a Lisboa, ver o que se arranja. É que me começa a custar muito que o tempo passe...


Também acho isso boa ideia, deixa-me só comprar-lhe alguma roupita.


Não, mulher, arranjar-lhe algum dinheiro para as primeiras despesas com livros e estudos e deixar a roupa à vontade dele, parece-me melhor.


Daí a dias, pelos fins de Agosto, pai e filho saíram de manhã cedo, com uma malita e uma cesta de lembranças para o primo e, na camioneta dos Claras, foram, a Alferrarede, apanhar o comboio para Lisboa.


Era a primeira viagem do Tonho que pouco disse, durante todo o percurso. Não queria perder nada do que ia passando diante dos seus olhos.


Já na cidade grande, tudo o encantava: dos eléctricos aos centos de automóveis, das casas mais baixas às que tinham muitos andares, dos jardins às muitas árvores ao longo dos caminhos.


Ficou muito admirado com os polícias sinaleiros e gostou de ouvir dizer que os mais artistas eram uns Cigalhos de Alcaravela.


Até que lá chegaram a casa do primo; umas águas furtadas, perto do Jardim da Estrela.


Ainda nessa tarde, foram falar a um parente que tinha uma Drogaria em Campo de Ourique.


Logo ficou apalavrado o novo marçano/caixeiro. A loja fechava às sete horas e, aos sábados, à uma da tarde. Podia frequentar a escola ali perto, que dava aulas entre as sete e as onze da noite. Ficava, por isso, autorizado a sair às seis horas.


Iria começar a ganhar trezentos escudos e comida; pois o patrão morava no prédio do estabelecimento e queria ajudar o primo. No serviço de entregas, em casa dos fregueses também iria receber alguma coisa em gorjetas; isso dependia do serviço que fizesse e da simpatia que despertasse.


Estou de acordo, disse o Tonho: daqui até ir para a tropa quero ver se tiro o terceiro ano e depois logo se verá. Trabalhar não é problema, desde que possa estudar.


Nos três anos seguintes, o Tonho completou o quinto ano da escola industrial e depois, graças aos bons ofícios do primo e de uma cliente, esposa de um coronel, fez o serviço militar como amanuense, no Hospital Militar da Estrela.


Passou à disponibilidade dois meses antes de completar o sétimo ano e o exame de aptidão à Faculdade de Ciências, na rua da Escola Politécnica, onde iria fazer os três primeiros anos do Preparatório de Engenharia.


Depois do serviço militar, foi trabalhar nos escritórios de uma empresa de construções, onde fez um pouco de tudo, desde medidor/orçamentista, a desenhador, passando por encarregado de obras e fiscal de execução de projectos.


Finalmente, completados os Preparatórios, iniciou a última etapa da sua carreira académica no Instituto Superior Técnico, onde, aos vinte e seis anos, recebeu o diploma de Engenheiro Civil, com a classificação de 16 valores e uma mão cheia de ofertas de estágio, bem como um convite de um dos Professores, para Assistente no Instituto.


Mas o que o "Senhor Engenheiro" queria era trabalhar como engenheiro, no terreno, vendo crescer as obras.


Esteve uns doze anos sem ir à aldeia. Porém, os pais passavam grandes temporadas em casa do filho.


Mas não iria ficar por ali a vida do Eng. António Matos Mendes:


Trabalhou, já com funções directivas, numa das maiores empresas nacionais, até que foi convidado para tirar um curso nos Estados Unidos, seguido de estágio, ao mais alto nível.


Três anos depois, o Engenheiro Matos Mendes, considerado como um dos técnicos mais competentes da época, dava aulas no IST de Lisboa, onde tinha, sob sua orientação, uma larga equipa de colegas e técnicos auxiliares.


Os seus proventos mensais ultrapassavam todo o pecúlio que o avô materno terá poupado durante toda a sua vida.


Estava completado o ciclo que enchera, um dia, a capacidade limitada da cabeça do pai, que a doença teimava em reter num leito de hospital, mas vivo o tempo suficiente para ver um percurso brilhante de um Engenheiro com o seu nome.


Faltava-lhe uma coisa, dizia o velho, não tanto pelos anos mas pela doença: assistir ao casamento do filho e conhecer os seus netos. A compensação por todas as angústias que lhe roeram a alma, vinha aos poucos e todas as vezes que alguém lhe perguntava pelo Senhor Engenheiro, especialmente os que, em tempos, lhe chamavam "engenheiro", a mãe, lamentava-se pela saúde do marido e só dizia que tinha muita pena de não poder gozar, com o seu homem, todas as coisas boas que o filho lhes punha à disposição.


Mas a hora chegou; no dia do casamento, o Senhor Engenheiro, já perto dos quarenta anos, encontrou-se finalmente na encruzilhada da vida: o pai, com a plenitude dos seus desejos satisfeitos e, principalmente, vendo realizados os sonhos do filho, partiu, na maior das serenidades.


Foi muito comentado o aspecto tranquilo, sereno e feliz, do rosto de quem tanto sofreu e se transfigurou, completamente, quando chegou a sua realização e soou a sua hora.


Não chegou a poder ver na placa toponímica do bairro construído no seu concelho o nome de Joaquim Mendes, que o Senhor Engenheiro mandou colocar no lugar que, por direito próprio, estava destinado ao seu próprio nome.


Não viu também o seu neto que recebeu o nome de Joaquim.


Estes foram os homens que, na maior parte das vezes, contra tudo e contra todos, ousaram um dia desafiar o destino e cometer o sacrilégio de contrariar a vontade dos deuses, arrancando os filhos à vida dura, ingrata e desumana, que os manteria na mediocridade, incultura e pobreza, que os recursos das terras das nossas províncias, proporcionavam nos meados do séc. XX.


Nós, os filhos destes homens, ainda não conseguimos elevar as nossas terras ao nível que eles sonharam: que as suas terras fossem prósperas, as pessoas cultas e livres, os seus recursos pródigos e abundantes e as suas gentes cordatas e felizes.


E, se há falhas irreversíveis, esta é uma delas; não se afigura que os que depois de nós hão-de vir, já sem o fermento que nos levedou e fez crescer, suprimam as nossas faltas e compensem as nossas omissões.


Ter-se-á perdido a oportunidade.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O "cornel" Isidoro


Era finório, o Isidoro! 

Não havia, nas redondezas, quem se lhe comparasse a imitar um casal de perdizes, na altura do acasalamento, ou uma lebre, nas ocasiões do cio. Apanhava pássaros, à mão, e pescava sem rede nem anzol. 

Órfão de mãe e sem pai conhecido, vivia com o avô, nos casebres das azenhas da ribeira do Verdigal, já a caminho de Mouriscas.

Era companhia desejada por todos os caçadores. 

A bater mato e a descobrir tocas, ninguém o batia e a seguir pistas, tinha mais faro que qualquer cão bem dotado. 

Sempre que podia fugia ao avô e aparecia, depois, com três ou quatro peças de caça, ou um junco, da ribeira, cheio de peixes.

Nascido e criado lá nos casebres das azenhas do avô, nunca soube fazer muito mais que abrir e fechar águas, remendar buracos nos açudes e cômoros das levadas, ligar e desligar rodízios e, embora pouco sabendo de contas, fazia, rigorosamente, as maquias dos taleigos. 

Tinha uma sensibilidade muito especial, segundo as palavras do avô, para picar as pedras das azenhas. Desde pequeno que o rapaz tratava das pedras da farinha triga e todas as freguesas gabavam a farinha moída por elas.

Completava o grupo um velho burrito - o cornel -, que distribuía os taleigos de farinha e transportava, no retorno à azenha, as sacas de grão para moer. 

Fazia cinco voltas por semana, habitualmente acompanhado pelo Isidoro, pois o velho Severino raras vezes saía dos limites dos moinhos. 

Eram, assim, poucos os dias em que o cornel não tinha de alombar com os taleigos e, escarrapachado sobre eles, o matulão do dono novo, que em termos de mimos era muito mais pródigo que o velho moleiro. 

A cacheira trabalhava muito mais, o tempo para ir tosando umas ervas era encurtado e, se o dono se lembrasse de ir até à ribeira pescar ou nadar, acabava por ficar carregado, preso a um pinheiro, muitas vezes ao sol, até que o soltassem para continuar caminho, até ao seu destino. 

Sorte de burro, pensaria resignado o cornel, na esperança que, um dia, a vida pudesse mudar. Às vezes suspirava pelo patrão velho, mas que havia de fazer!...

O cornel era manso como as pedras do chão, dizia o velho Severino. 

Porém era melhor guardar-lhe a traseira; pois se pressentisse algo ao seu alcance, por trás da rabada, mesmo carregado, levantava as traseiras e lá vai disto: coice que acertasse era para fazer mossa! 

Mas, para mim, que me lembre, nunca levantou uma pata, sentenciava o velho moleiro.

A lei entre moço e cornel era bem clara: se se portasse às direitas, como lhe dizia o dono, comia, bebia água, levava uma ou outra cacheirada, mas muito raramente e tudo ia correndo bem. 

Se se armasse em vivo, se levantasse as patas para o dono, se mostrasse os dentes, ou se tentasse despejar a carga, era bordoada que fervia, sem dó nem piedade, ficando muitas vezes as marcas bem à vista, na cabeça, especialmente junto dos olhos.

Até as freguesas diziam: Ah! Isidoro, que se um dia o cornel te puder ser bom, vais pagá-las todas juntas! Podias tratar um pouco melhor o pobre animal! Mas espera-lhe pela pancada e talvez ainda venhas a ver a falta que te faz se um dia o não tiveres!

Ora, o burro é ele e quando se arma em esperto tem de saber por onde elas lhe doem, respondia, quando estava para aí virado, o Isidoro.

Um dia de fins de inverno, depois de semanas de chuva, com os caminhos para os engenhos cheios de lama e algumas barreiras caídas, impedindo a passagem nas zonas mais estreitas, o Isidoro, a pé, atrás do animal, reparou que tinha carregado de mais para as condições do caminho, mas que aguentasse e, lá ia desfechando umas cacheiradas sobre o lombo do cornel.

Numa passagem mais estreita do caminho, ao desviar-se de umas pedras caídas, o animal colocou uma pata em falso e caiu para um barranco, espalhando os taleigos e não conseguindo libertar-se a ponto de sair do buraco. 

Os puxões pela arreata e as ajudas do rapaz, foram insuficientes para fazer voltar o cornel ao caminho. 

Mais não restou ao Isidoro que ir chamar o avô a ver o que poderiam fazer, para salvar taleigos e burro.

Chegados ao local, encontraram os taleigos todos espalhados pelo chão, restos da albarda e do cabresto, mas do burro, nem sinais. 

Procuraram nas imediações, seguiram pistas de pegadas, olharam em redor, até onde podiam alcançar e nada. 

Foram até ao povo e perguntaram a quem encontraram e tudo em vão. Ninguém dera pelo burro nem vira quaisquer sinais dele. 

Regressaram às azenhas, ainda com alguma esperança de que o animal se tivesse libertado e puxasse à malhada, mas não havia mais nada a fazer senão ir pedir uma besta emprestada, recolher os taleigos e começar na distribuição, até que o tempo se encarregasse de fazer aparecer o cornel, ou alguém desse notícias dele. 

Foram passando os tempos; o Ti'Severino comprou outro burro a que acabou por pôr o nome de "major" até que fizesse o tempo suficiente para ser cornel se merecesse ser promovido. 

O avô mandou o Isidoro às feiras de gados das redondezas, acercar-se e revistar acampamentos de ciganos, e chamando, disfarçadamente, o nome "cornel" quando passava por algum burro, mas tudo tempo perdido. Do burrito, nem novas, nem mandados.

Até que um dia, um pedinte que passava habitualmente pela aldeia, e sabia do desaparecimento do burrito, foi procurar o moleiro e disse-lhe que na feira de Santa Cita, a muitos quilómetros dali, lá para os lados de Tomar, ouviu um cigano a vender um burro, que disse ter encontrado para os lados de Alcaravela, sem arreios nem cabresto, mas manso como as pedras do chão. 

Não sabia como se chamava mas só o venderia a quem fosse de terras de sentido contrário, como medida de segurança. O que queria era negociá-lo para bem longe e tinha pressa no negócio, pelo que aceitava vinte notas e não se falava mais nisso. Jurava, à fé de quem era, que o burro não fora roubado.

Numa feira de Abrantes, o Isidoro, já homem e dono dos engenhos - o velho avô já o tinha deixado -, viu um burrito e, de repente, alguma coisa lhe fez lembrar o cornel. 

Só que o achava mais novo; mas os ciganos fazem do velho novo e também o contrário, quando lhes convém e foi chamar um parente para o ajudar nos entretantos de um possível negócio. 

Começaram por qualidades, defeitos, força, idade, enfim tudo o normal para avaliar uma besta. Quando o Manel lhe garantiu que o burro tinha entre doze e quinze anos, o Isidoro que pouco conhecia de números e contas pensou: 

Então se tem entre doze e quinze e o cornel desapareceu vai para cinco e já tinha mais de vinte e cinco em nossa casa, não é possível que seja ele.

Ao perceber aqueles pensamentos do parente, o Manel disse-lhe: mesmo que encontrasses agora o teu burro não te serviria para nada: se estiver vivo há-de ter mais de trinta e cinco anos - para que quererias um animal tão velho; para teres, daqui a alguns dias, o trabalho de enterrá-lo?

O que te dói, sei eu: tratava-lo mal, mas ainda foi o melhor que tiveste e como castigo nunca conseguiste livrar-te das culpas do seu desaparecimento. Deixa lá que com o tempo tudo passa e hás-de deixar de pensar no pobre burro.

Das três alcunhas que mimoseavam o moleiro, uma só o incomodava e tirava do sério, sempre que lhe chegava aos ouvidos: "cornel Isidoro". 

Muitas das mágoas que afogava nas tabernas das terras por onde ia entregando os taleigos eram mais penosas quando alguém lhe tocava no assunto. 

Acabou por ser encontrado, sem vida, sobre o catre onde passava as noites, com os restos do cabresto do velho burrito, à cabeceira.