Teria os meus seis anos; a história ter-se-á passado há mais de sessenta anos.
Era a primeira vez que saía da aldeia, acompanhando o meu pai, na carroça, numa viagem de um dia inteiro, percorrendo os vinte quilómetros até Alferrarede, e outros tantos, no regresso, desde antes de nascida a estrela da manhã até pouco antes do sol se esconder.
E devia ter sido por alturas da Primavera, pois pelas imagens difusas que ficaram, cantavam muito os passaritos, estava tudo muito verde e corria muita água nos ribeiros e ribeiras que atravessámos.
O objectivo da viagem era a compra de oito sacos de adubo e dois sacos de nitrato nos armazéns da CUF e umas três arrobas de pedras de cal viva, no forno caleiro da Barca do Pego, pertinho da paragem anterior e a dois passos do grande rio Tejo, que pude ver, e admirar, pela primeira vez.
Até aí o maior que vira foi a ribeira que passa lá perto da nossa aldeia e, dizendo-me o meu pai que é filha deste grande rio, lembro-me de perguntar porque razão não se parecia mais com ele: tão grande e com tanta água.
Íamos tão longe, e numa tão esforçada jornada, para poupar algumas dezenas de escudos, pensaria eu? O dinheiro valeria assim tanto? A estas dúvidas respondiam-me as diversas práticas, lá de casa, que consistiam em gastar só quando e quanto fosse indispensável, para ter sempre que se precisasse.
Saíamos de casa ainda antes do Sete-estrelo começar a baixar, com a estrela boieira muito acima do horizonte, e ao romper da madrugada estávamos às vistas de Alcaravela.
Aos primeiros raios de sol estávamos no alto da serra de Santa Clara. Quando parámos no Valongo, na taberna do Costa, comemos um bocado de pão com queijo, a mula comeu uma gavela de pontas de milho e bebeu água e, com o sol a descobrir por sobre os pinheiros, lá fomos, estrada abaixo, rumo à próxima paragem no Olho-de-boi, já a ver as primeiras casas de Alferrarede.
Outra novidade: também nunca tinha visto uma terra tão grande; até passava o comboio no meio dela. E havia uma casa enorme, ao pé da casa onde parava o comboio, que vi pela primeira vez, muito comprido e a deitar muito fumo, puxando muitos carros atrás dele. A casa muito grande era o armazém da CUF, onde íamos fazer as compras.
Tudo na viagem fora muito bem programado e calculado: desde a diferença de preços entre os armazéns, em Alferrarede, os do grémio da Lavoura, em Mação e os do Ti’Zé Matias, lá na Serra. Tenho uma vaga ideia de o meu pai e o meu avô falarem sobre o assunto e o meu pai explicar: nesse péla-cães é quase o dobro; meto os pés ao caminho e ganha bem para as passadas.
Os tempos eram também estudados: saindo bem cedo, direito à Saramaga, Presa, Casal Pedro Maia e Santa Clara, chegava-se à estrada, onde, de noite, era preciso levar luz na carroça, já com sol e com tudo a correr normalmente, antes de o sol se pôr, deixávamos a estrada, mas agora na Lameira, ali às portas de casa, para que a besta não tivesse que puxar, com carga, pelos caminhos ruins, que atravessavam as aldeias de Alcaravela, por onde fomos na viagem da manhã.
Uma criança de hoje, com seis anos, já viu mais coisas, mesmo não tendo saído de casa, que muitas pessoas daquelas terras, naqueles tempos, veriam em toda uma vida de muitas dezenas de anos.
Lembro-me de conversar com muita gente da aldeia, anos depois, que nunca tinha ido além da vila, nunca tinha visto o mar, ou um simples rio, e nunca tinha visto o comboio. Uma velhota, das últimas que a minha memória alcançava, dizia que o mais longe que tinha ido era o cemitério, na freguesia, a acompanhar os mortos.
Os tempos e, principalmente, a televisão, mudaram tudo: para uns, o Mundo é muito maior; para outros, muito mais pequeno, como o meu pai sempre disse até se ir embora, aos seus 96 anos.
Voltemos, porém, à viagem: ainda antes de chegar a Alferrarede, meu pai mostrou-me, lá ao longe, no cimo da encosta, em frente, umas grandes paredes, com umas portas abertas no cimo e disse-me que eram as muralhas do castelo de Abrantes e que ele tinha morado lá dentro, quando esteve na tropa. Junto daquele castelo havia muitas casas e aquela terra chamava-se cidade de Abrantes.
Esclareceu as minhas dúvidas, explicando-me, como pôde, o que era uma cidade e o que havia lá dentro. Recordo que deu muito realce ao valor do castelo na defesa da cidade, se os inimigos atacassem.
Acho que, sendo eu muito curioso, meu pai gastou grande parte da viagem a dar respostas às minhas perguntas sobre as muitas novidades que íamos encontrando.
Depois de carregada e paga a cal branca, lá no forno da Barca do Pego, saímos por outra estrada, que rodeava as casas e fomos ter à estrada principal, já no Olho-de-boi, onde iniciámos a subida, de regresso a casa.
Devia ser pouco mais de meio-dia solar, pois parámos na fonte e o meu pai desengatou a besta da carroça e prendeu-a a uma oliveira.
Deu-lhe o almoço que meu pai chamou “rancho melhorado” porque era dia de bastante trabalho e nós comemos pão com chouriço cozido e queijo e umas maçãs.
O meu pai encostou-se em cima duma saca e penso que ainda fez uma pequena sesta.
Eu olhava, muito admirado, para os automóveis, camionetas, carros, como o nosso, bicicletas e outras coisas que passavam na estrada e fiquei muito admirado com tantos postes de ferro e tantos fios a sair dali, em todas as direcções – era a central eléctrica do Olho-de-boi, que recebia a electricidade vinda da barragem do Castelo de Bode e a enviava para as terras do centro do país.
Claro que devo ter perguntado muitas coisas sobre a barragem, que nunca tinha visto, e a electricidade, mas não recordo quaisquer respostas e duvido que o meu pai soubesse dar-mas.
Quando o meu pai acordou, voltou a engatar a mula, subimos os dois para a carroça e retomámos a estrada, na direcção do norte e só voltámos a apear-nos, num desvio que nunca mais esqueci, em frente do Sardoal, onde havia muitos carvalhos carregadinhos de bugalhas.
O meu pai apanhou umas quantas e cortou duas ou três canas no valado que dava para um grande olival, onde era habitual virem os homens e mulheres do rancho do Ti’Mendes lá da Serra, apanhar a azeitona, nos princípios do Inverno. Chegavam a fazer três semanas, pois as oliveiras iam quase dali até aos nateiros do Tejo, que já víamos, como uma grande cobra, lá em baixo. E recordo-me do meu pai me dizer que havia tantas oliveiras que até fizeram um lagar só para moer aquela azeitona toda.
Outra vez na carroça, lá íamos estrada acima. O meu pai abriu a navalha, que nunca deixava, e cortou um canudo de cana, fechado num dos lados e fez-lhe um pequeno buraquito. Depois com um pau afiado fez uma quantidade de furos numa bugalha das mais secas e, soprando na cana, pôs a bugalha na corrente de ar, sobre o furo, fazendo-a subir e baixar, em rotação constante e mantendo-a no ar a dançar. Eu lá consegui aprender e, nem dei por chegarmos ao alto da serra de Santa Clara, onde fizemos novo alto, para um pequeno descanso.
Vista do cimo da serra, a estrada que seguia para norte, por entre a mancha de pinhal que ali tem início, parecia uma grande cobra que se estendia a perder de vista, contornando os pequenos outeiros. O meu pai explicou-me, mais ou menos, onde ficava a Serra e disse-me que não íamos atravessar as terras de Alcaravela, mas seguiríamos sempre estrada a cima, pois íamos carregados e surdia mais o andar no caminho melhor.
Achei estranho que os homens tivessem feito tantas curvas. Havia sítios em que cortar uma pequena barreira evitaria ir à volta e teria poupado muitos metros de estrada. Perguntei ao meu pai porquê? Porque tinham desenhado assim a estrada, se podiam fazê-la muito mais direita?
Sem fugir à pergunta o meu pai disse-me que quem mandava nas obras das estradas eram uns senhores que se chamavam engenheiros; que vinham com muitos aparelhos ver as terras e depois desenhavam os sítios por onde os homens deviam cavar.
Mas sempre recordo que me disse que havia muita gente para trabalhar e houve até uma altura em que esses engenheiros ganhavam ao metro e quanto maior fosse a estrada mais recebiam pelo trabalho. Assim os homens podiam trabalhar e ganhar dinheiro, como aqueles que costumavam andar lá na nossa casa.
Não percebi a explicação mas…continuámos.
O meu pai explicou-me também os marcos ao longo da estrada: os mais pequenos, de cem em cem metros; depois de cada nove pequenos vinha um maior e ao cabo de quatro desses maiores vinha um ainda maior e de outro feitio. Rematou a conversa dizendo-me que da passagem da Lameira, onde havíamos de deixar a estrada para apanhar o caminho para a Serra, até Alferrarede, havia quatro marcos dos maiores.
E é natural que meu pai tivesse sentido algum alívio, pois durante bastante tempo entretivemo-nos a contar marcos e a descobrir quando viria um dos maiores e depois os grandalhões.
Os pinheiros e algumas outras árvores, que tinham uma espécie de cinto pintado de branco e se estendiam ao longo de toda a estrada, foram também objecto de longa conversa.
Perguntei de quem eram tantos pinheiros e logo os mais grossos de todos, que estavam todos nas barreiras aos lados da estrada.
Mais uma vez meu pai, pacientemente, me explicou que a Sra Junta Autónoma das Estradas, era dona daquelas terras das barreiras das estradas e todas as árvores que lá nasciam eram dela. Explicou-me ainda que eram os cantoneiros que pintavam o branco e que tratavam aquelas árvores todas, ao longo de todas as estradas.
Quando encontrássemos um cantoneiro havíamos de perguntar para que queria a Sra Junta tantos pinheiros e se era assim tão rica que nem mandava resiná-los?
Não me lembro de ter encontrado mais cantoneiros e penso que ainda antes de chegar à saída para a Serra terei adormecido e o meu pai descansado um pouco, pois as minhas perguntas seguiam-se, ininterruptamente.
Muitos anos mais tarde tive resposta a estas dúvidas quando o meu pai me disse que quando eu fui à minha vida, para o colégio, sentiu muito a falta das minhas perguntas.
Que se lembrava de uma que o tinha atrapalhado muito: Porque tinha a estrada tantas curvas? E que durante muito tempo andou a pensar nisso, sem obter resposta, pensando que talvez fosse altura de ser eu a explicar-lhe.