E então o senhor da bata preta que está em riba do sobrado mais alto, atrás da mesa grande, onde bate com um martelo de madeira, para chamar as pessoas, deu duas porradas e mandou-me alevantar, para ouvir a tal de sentença, que, dito por outras palavras, foi isto o que acabei por ouvir:
O réu, Manuel Mendes de Oliveira, também conhecido pelo Manuel da Chêdea, vai condenado em três meses de cadeia, mas pode pagar e não ficar preso.
Tem, ainda, de pagar selos de justiça e uma indemnização ao queixoso, no valor de novecentos e vinte e quatro mil réis, por quase três meses que este esteve sem poder trabalhar.
Até que não me parecia muito, mas oiçam o que vem a seguir, que vale a pena, porque afinal eles são juízes porque estudaram e sabem ver e medir bem as coisas. Homens de valor! E continuou a ler o meu destino:
Mas, como nunca antes veio na justiça, tem bom comportamento e, se usou de força bruta a mais, foi também para se defender, a pena fica em suspenso por um ano. Tome bem atenção: se dentro do próximo ano, a contar de agora, for julgado e condenado, cumprirá a pena que lhe for aplicada, mais a que hoje fica suspensa. Depois fica outra vez limpo. Percebeu?
Se percebi, senhor juiz! Desta já me safei e, pode o diabo estar descansado, que noutra não me vai agarrar. Posso então ir-me embora para casa? E aqui estou!
A brincadeira acabou por me custar uns duzentos mil réis para o doutor advogado, coisa de um meio cento para os tais de selos, e à roda de trinta mil réis para umas latas de sardinha, casqueiros e vinhaça, para o pessoal do meu lado petiscar, à vontade, lá na do Ti’Bicha.
Há ainda os favores dos que perderam tempo a ir ser testemunhas e a esses não há dinheiro que lhes pague – podem contar com os fracos préstimos do Chêdea.
Mas, oh! Ti´Manel, dei-te lá uma rodada, em honra da minha pena suspensa. De tanto falar, até já tenho a garganta seca.
Também já pude saber que o Ti´Tonho já está bem da asa que teve derreada e, quero aproveitar para me acertar com ele. O que lá vai, lá vai e, no fim de contas quem ficou pior foi ele, que acabou desasado e, como eu disse ao juiz, nós é que somos, para aqui, às vezes, piores que as bestas; os homens não se fizeram para andar a bater uns nos outros.
Eu, verdade seja dita, fui lá, à dele, no Vale de Além, buscar dois melões e, é claro, apanhei os mais maduros e jeitosos que lá estavam.
Ele, ao toscar-me, veio para mim, com um estadulho do carro, e ainda me assentou uma ripada no costado. Nisto, apanhei o que tinha à mão e desfechei-lhe duas pauladas, com a moca do junco que costumo trazer para agarrar as reses que vou comprando. A primeira abriu-lhe um lanho na cabeça e a segunda deu-lhe cabo da espalda do braço direito.
Depois, quando vi o homem no chão, a sangrar da cabeça e a gemer, sem reacção no braço, fui em seu socorro e quer o senhor saber como me agradeceu? Deu-me um pontapé, espécie de coice de besta, nas partes baixas e mordeu-me numa perna, o desgraçado.
Se não tem chegado a mulher dele, tinha, pela certa, acontecido uma desgraça maior.
Sem a Ti’Maria a estas horas eu não estaria aqui a contar o sucedido, mas andaria por aí, nalguma prisão, a contar os dias até me vir embora e ele já estaria a fazer tijolo. Mas foi melhor assim, e ainda tenho esperanças de que poderemos entender-nos e voltar a ser, outra vez, amigos. O que lá vai, lá vai!
Eu também já estava, naquele dia, com um copito a mais, como acabaram por reconhecer as testemunhas. Nas palavras do juiz, e parece-me que ele é homem que sabe o que diz, fomos dois brutos a bater um no outro, com violência desnecessária.
Aqui ele não tem lá muita razão: o Ti’Tonho só me acertou de raspão com o estadulho da carroça e eu, que não gostei muito do gesto dele, afinfei-lhe em cheio, para o segurar.
Quando penso naquilo até me parece que o senhor juiz acabou por ser bom para mim! Mas de leis e de justiça saberá ele mais que nós!
Também acabei por ter sorte com o senhor advogado, que percebeu bem o caso e me defendeu, com unhas e dentes. Às tantas, até parecia que eu é que tinha ficado pior na bordoada – é que foi ele o primeiro a levantar a mão e a mordidela que eu apanhei, ali por cima do artelho, foi dada com tal vontade que quase me cortava a perna.
O juiz até lhe perguntou se, dada a sua idade, tinha dentes postiços e, a sorte dele foi dizer que sim e mostrar a dentadura; se não, e calhando, ainda acabava condenado ele e não eu.
Tenho ouvido dizer que às vezes há dessas coisas, mas são lérias, pois o melhor é não ir a casas daquelas.