A dor no braço ainda não o apoquentara, naquele ano.
A ciática não o castigava muito, a pontos de ainda não ter perdido um dia de trabalho desde o último Inverno.
As ovelhitas e a cabra tinham tomado barriga e dado boas crias.
Não podia queixar-se o Hermínio da Silva – vulgo Armindo Courela –, quando meditava na vida, baixado na latrina, atrás da pocilga do porco, no quintalzito de pouco mais de cem metros quadrados, lá ao fundo da nossa tapada, onde se dirigia todas as manhãs, logo que se levantava, depois de enrolar um paivante e dar as primeiras fumaças do dia.
Dali subiria a casa, meteria qualquer coisa na boca e dois dedais de aguardente, antes de enrolar mais um cigarro.
Pegaria no enxadão ou na picareta, na saca com a bolsita do farnel e tomaria o rumo do poço ou da surriba, onde na altura, dava os dias.
O Ti ´´Armindo Courela``, assim conhecido porque o seu verdadeiro nome era invulgar e a alcunha o identificava com um avô conhecido por esse nome, era homem de fraca estatura física, mas rijo no trabalho.
Não ficava atrás dos corpulentos camaradas com quem muitas vezes emparelhava e gabava-se de ninguém lhe pôr o pé adiante, a podar uma árvore, a plantar uma vinha, ou a orientar um tiro, no fundo de um poço.
Lá em casa, era um dos jornaleiros preferidos, ainda que, na opinião do meu avô, acigarrasse demais, acendendo uns cigarros com os outros e fosse mais cego por aguardente que o Diabo por almas.
Depois, era homem que se podia deixar sozinho; tanto trabalhava ao lado do patrão como longe dele.
Desde que, ainda garoto, fez as ceifas, no Alentejo e Espanha, andou nas “alimpas” dos laranjais de Setúbal, nas podas das vinhas do Ribatejo e dos olivais do Pouchão, fez de tudo e tinha já mais de cem poços abertos na aldeia e povoações vizinhas.
Das andanças por esse mundo além, contava histórias sem fim, normalmente romanceadas e sempre com o seu quê de interesse e espírito construtivo; defendia a honra e a dignidade acima de tudo e, como dizia bastas vezes, todas as profissões são importantes e dignas e honram quem as desempenha bem.
Porém, não se cansava de repetir, uma das suas histórias: a daquele grupo de gajos que, numa noite fria de Inverno, nos olivais do casal do Pouchão, onde o frio parece cortar a pele das orelhas e do nariz, o mandou pegar num saco grande – o maior que encontrasse no rancho – e os acompanhasse na caça aos gambozinos que, naquela noite sem luar, deviam andar saídos.
O trabalho dele não era complicado: abria a boca do saco o mais que pudesse, num cruzamento de carreiros e esperava que os gambozinos, que os outros iam bater, para lá se dirigissem e entrassem no saco.
Uma condição: não podia fumar ou fazer o mais pequeno barulho, se não espantava a caça e estragava tudo.
Aguentaria até que eles voltassem para recolher a caça, que depois seria para fazer uma jantarada.
Depois de ter deixado de ouvir os batedores, cada vez mais longe, fez-se silêncio total, apenas cortado pelos noitibós, aves nocturnas e coaxar de rãs, nos charcos próximos.
De vez em quando, espreitava para dentro do saco e só via escuridão; tomava o peso ao saco e parecia-lhe vazio, mas… havia que esperar.
Até que, umas horas depois, com o sol já a anunciar-se na aurora, vieram os farsolas, embrulhados em mantas, depois de um sono bem dormido, buscar caçador e caça.
E, com o ar mais inocente deste mundo, lastimaram que não tivesse apanhado nada, porque os gambozinos, naquela noite, tinham ido enganar outro pató ….