Os cavacos iam ardendo debaixo da panela de ferro, o gato ronronava ao canto da lareira e a candeia bruxuleava no prego do fumeiro, enquanto o farrusco enroscado junto às brasas, sobre as botas do Ti´Manel, que pendia, com o paivante ao canto da boca e a pobre mulher, passando as contas do rosário, quando na porta da rua a aldrava bateu várias vezes, em tom de aflição e já entrava alguém, de rompante, em direcção à cozinha.
Era a Ti´Ana do Vale, ofegante, que se atirou para cima da tripeça de cortiça e lá conseguiu dizer que era muito importante que fosse já, a Ti´Luísa, pois a sua nora estava há mais de dois dias para parir a criança e acabaria por se esvair em sangue, se não lhe acudisse já.
O Ti´Manel, despertou e, dando um pontapé no cachorro, deparou com aquele aparato todo, sem lhe passar despercebido todo o ar de aflição da comadre Ana do Vale.
Ergueu-se de um salto e berrou, para a mulher que ainda por ali andava, com ar atarantado:
Por que esperas, alma do demo? Corre que não há tempo a perder!...
Com a admiração estampada no rosto, a velhota dirigiu-se à pilheira do canto da lenha, pegou uma pequena maleta que a acompanhava sempre que ia fazer nascer alguém, apressou-se em direcção à porta da rua e, seguida da Ti´Ana, tomou o caminho da Horta Velha, até à casa onde agonizava a Zefa.
Entrou na alcofa onde jazia a parturiente, pediu um alguidar com água quente, um cobertor para agasalhar e aquecer bem a doente e abrindo a maleta tirou um instrumento ainda luzidio, se bem que bastante velho e preparou-se para tirar, rapidamente, a criança.
Menos de meia hora depois, toda a gente podia ver um belo moço, robusto e bem parecido, como o avô, que exuberante o exibia aos parentes e curiosos que entretanto ali se juntaram.
A comadre Luísa, ainda confusa com a atitude do marido, saiu discreta e ansiosa por chegar junto do homem para poder saber qual o motivo por que foi tão solícito a mandá-la socorrer a filha do seu maior inimigo.
O Manel, ainda ao canto da lareira, ergueu os olhos, quando a mulher entrou, e perguntou como tinham corrido as coisas.
A mulher, benzendo-se, deu graças a Deus por tudo ter corrido bem.
Todavia ficou espantada ao ver o homem erguer-se e começar a rezar, com ela, o Pai nosso…
Ele que parecia de pedra e nem sequer podia ouvir falar naquela família, a rezar … Não, não estava em si, pensou a Ti´Luísa.
De súbito, o Ti´Manel encarou a mulher e disse-lhe que não ia muitas vezes à igreja, não andava sempre a bater no peito, mas sabia ver as coisas e, no fim de contas, as zangas entre as famílias não passavam de mal entendidos que, de pais para filhos e netos, iam criando inimizades e falsas zangas que nunca podiam levar a lado nenhum.
Rematou, dizendo que a partir daquele dia podia morrer descansado; já não tinha inimigos.
No domingo seguinte, à saída da missa, o Ti´Manel foi abordado pelo Ti´Zé da Horta Velha, acompanhado da mulher, que lhe estendia os braços e lhe oferecia toda a sua amizade.
Naquele abraço enterraram anos de discórdias e celebraram o nascimento de mais uma criança que, por desejo do avô, se iria chamar Manuel.