Passava na aldeia, pelos Santos e por alturas da Páscoa.
Chegado ao alto da Portela da Casinha, parava a bicicleta, apeava-se e tocava a buzina, apertando duas ou três vezes a pêra de borracha.
Não tardavam a deitar o nariz de fora das janelas e dos postigos, as mulheres que nos fins de manhã ultimavam os trabalhos na cozinha.
Entre elas, a ti Maria Rosa conhecia aquele toque melhor que ninguém: o ourives era uma das visitas que mais apreciava; conhecia o senhor Emílio desde que, ainda rapazote, vinha, lá de Cantanhede, ao lado do pai, ajudando no negócio.
Antes de dar a volta, embora fazendo-se anunciar, o ourives dirigia-se à taberna e, sobre o balcão, ou numa mesa metálica ali perto, comia, num prato de esmalte, uma lata de atum com rodelas de cebola – muita cebola –, meio pão de quilo e um queijo fresco, acompanhados de uma “sagres”.
Dali, aproveitando a hora de comer e depois, durante a sesta, passava em casa dos clientes, de que uma das principais era a ti Maria Rosa que nunca tivera filhos mas um rancho de afilhados, que gostava de obsequiar com medalhinhas, crucifixos, fios e brincos, de ouro e prata.
Para isso, comprava, nas duas passagens do ourives, uma ou duas dúzias de peças.
Como dizia a boa mulher: há sempre um baptizado, uns anos, um crisma ou um casamento e é preciso ter qualquer coisa preparada.
Muitas vezes era também solicitado para avaliar algumas peças; apenas, como dizia a ti Maria Rosa, por gostar de saber o que tinha em casa.
Pacientemente, o senhor Emílio ia correspondendo aos desejos da freguesa, sabendo que se tratava de concorrência, uma vez que havia ali caso de penhor, ou empréstimo, com garantia em ouro, de alguém mais necessitado – era a prestamista da terra –.
Dizia depois o protegido de santo Eloi: temos de ter muito cuidado; mandam avaliar a mesma peça a dois ou três ourives, perguntam a pureza do ouro, qual o preço do grama, se damos algum valor ao feitio, etc.
São pessoas que precisam de ter confiança em nós antes de comprarem.
Falámos algumas vezes com este homem de mala de lata – cheia de placas forradas com veludo, onde estavam fixados os objectos que vendia – fechada com cadeado, cuja chave, presa por corrente de prata, guardava no bolso das calças.
Numa dessas conversas veio à baila o caso da ti'Amélia, uma velhota que vivia num tugúrio, no termo de Mouriscas, sempre só, desde que morreram os pais e um irmão, ceifado pela pneumónica, antes de adulto.
A ti'Amélia, sempre andrajosamente vestida, vivia isolada do resto do mundo, tratando duas hortitas ao redor da choupana onde vivia.
Ausentava-se apenas para ir esmolar nas aldeias mais próximas e vendia os ovos das galinhas, alguma criação e uns cestos de maçãs.
A única coisa que comprava, que se soubesse, era uma ou outra peça de ouro, costume que herdara dos pais, cujo modo de vida fora bastante semelhante ao dela.
Quando saía de casa ia descontraída, não revelando qualquer receio de que lhe assaltassem a morada.
Era o melhor dos disfarces, dando a entender que o que tinha – e todos sabiam que devia ter – não estaria ali, no meio daquela miséria.
Um dia, certamente por falta de alimentação, adoeceu, de nada valendo os remédios que o médico lhe receitou, pois nunca chegou a comprá-los. Em poucos dias morreu.
Não houve grande consternação, nem apareceu ninguém a quem se pudesse assacar as despesas, sendo a Junta de Freguesia, na pessoa do Regedor, que se encarregou das exéquias e do enterro.
Apareceram uns parentes que apenas se encarregaram de revolver o local, em busca de qualquer coisa.
Nada foi encontrado, para além de uma pequena caixa redonda, de lata, com duas pequenas medalhas e um fiozito, sem grande valor.
Uns bons meses depois, o Regedor – ti Chico Alberto – aproveitando a passagem do ourives pela terra, mandou-o chamar a casa, para ter com ele um particular.
Convidou-o a entrar, ofereceu-lhe um cálice de vinho abafado e foi direito ao assunto: O senhor e antes de si seu pai, visitaram muitas vezes a cabana onde morava a velhota Amélia, lá para os lados da ribeira.
Depois da sua morte, nada se descobriu sobre o mistério do paradeiro do ouro que ela ia comprando e que, ao que se saiba, não dava a ninguém.
Deixe-me esclarecer que o que for encontrado, se alguma coisa for encontrada, reverterá a favor da Junta de Freguesia – uma vez que se há alguém com direitos, devia ter aparecido para o enterro –.
Convidado a ajudar, o ourives acompanhou o Regedor até ao local onde várias vezes se tinha encontrado com a velhota e feito alguns negócios.
Parecia que tinha havido ali um trabalho de escavações e pesquisas arqueológicas; estava tudo revolvido.
Todavia o ourives foi dizendo que a velhota vinha da cozinha, ou ia para lá, quando fazia negócios com ele, quer se tratasse de ir buscar dinheiro, quer fosse guardar o que acabara de comprar.
Pois vamos ver que diabo podemos encontrar lá, senhor Emílio. E foram até junto do local onde se fazia a fogueira e se guardava a lenha.
Olharam para todos os lados, bateram em todas as paredes que ainda restavam de pé e, nada....
Casualmente, junto de uns restos de cinza, ao bater numa das lajes, o ti Chico sentiu sinal de oco e voltou a insistir, chamando a atenção do ourives, que se baixou para ouvir.
Afastada a lenha, o Regedor passou os dedos ao redor da pedra e sentiu, num dos lados de trás, uma ranhura, onde conseguiu meter a mão.
Como que por encanto, a laje arredou-se e, por baixo, num buraco de mais de dois palmos de fundo, estava qualquer coisa envolvida num pano sujo.
O Regedor agarrou o achado e tirou-o para fora do buraco.
Ao abrir o pano, deparou-se com uma caixa rectangular, de lata, com mais de um palmo de lado. Abriu-a e nem queria acreditar no que os seus olhos contemplavam.
Olhou para o ourives e... atónitos, nem acreditavam no que estavam a ver: centenas de objectos de ouro e prata, alguns deles muito antigos.
Meteram tudo numa bolsa de trapos e foram à taberna pesar o achado – o ourives não tinha balança para tão grande quantidade –: sete quilos e trezentos gramas.
O ourives, fez as contas de cabeça e disse para o Regedor: uma pequena fortuna, senhor Francisco; aí uns duzentos e cinquenta contos – o grama era a trinta escudos –.
Durante três dias o senhor Emílio foi hóspede do Regedor, passando o tempo a analisar e descrever todos os objectos e avaliando-os.
No final, disse: há aqui peças de muito valor; se bem que o que conta é o peso do ouro; há peças com mais de cento e cinquenta anos, o que quer dizer que a “colecção” é obra de várias gerações; eu, até hoje, nunca vi nada igual, ou sequer parecido.
Terá de consultar uma casa especializada, para avaliar tudo isto; se quiser indico-lhe duas, ou três, dessas casas – antiquários do Porto, ou fabricantes de Gondomar –.
Com o produto da venda do espólio da ti Amélia, que rendeu duzentos e oitenta contos, o Regedor gratificou, generosamente o ourives, e fundou uma Associação de Melhoramentos, na Freguesia, cujas primeiras obras foram: construção da escola primária, arranjo exterior e interior da igreja, obras na casa paroquial, compra de paramentos e imagens para a igreja, arranjos de diversos caminhos, das fontes da Terra e comparticipação na ligação da rede de electricidade.
Nas ruínas da velha escola, hoje cobertas de mato e silvas, ainda se pode ler, numa das pedras da portada: Escola Primária ti’Amélia.
sexta-feira, 30 de janeiro de 2009
sexta-feira, 23 de janeiro de 2009
O “Courela”
A dor no braço ainda não o apoquentara, naquele ano.
A ciática não o castigava muito, a pontos de ainda não ter perdido um dia de trabalho desde o último Inverno.
As ovelhitas e a cabra tinham tomado barriga e dado boas crias.
Não podia queixar-se o Hermínio da Silva – vulgo Armindo Courela –, quando meditava na vida, baixado na latrina, atrás da pocilga do porco, no quintalzito de pouco mais de cem metros quadrados, lá ao fundo da nossa tapada, onde se dirigia todas as manhãs, logo que se levantava, depois de enrolar um paivante e dar as primeiras fumaças do dia.
Dali subiria a casa, meteria qualquer coisa na boca e dois dedais de aguardente, antes de enrolar mais um cigarro.
Pegaria no enxadão ou na picareta, na saca com a bolsita do farnel e tomaria o rumo do poço ou da surriba, onde na altura, dava os dias.
O Ti ´´Armindo Courela``, assim conhecido porque o seu verdadeiro nome era invulgar e a alcunha o identificava com um avô conhecido por esse nome, era homem de fraca estatura física, mas rijo no trabalho.
Não ficava atrás dos corpulentos camaradas com quem muitas vezes emparelhava e gabava-se de ninguém lhe pôr o pé adiante, a podar uma árvore, a plantar uma vinha, ou a orientar um tiro, no fundo de um poço.
Lá em casa, era um dos jornaleiros preferidos, ainda que, na opinião do meu avô, acigarrasse demais, acendendo uns cigarros com os outros e fosse mais cego por aguardente que o Diabo por almas.
Depois, era homem que se podia deixar sozinho; tanto trabalhava ao lado do patrão como longe dele.
Desde que, ainda garoto, fez as ceifas, no Alentejo e Espanha, andou nas “alimpas” dos laranjais de Setúbal, nas podas das vinhas do Ribatejo e dos olivais do Pouchão, fez de tudo e tinha já mais de cem poços abertos na aldeia e povoações vizinhas.
Das andanças por esse mundo além, contava histórias sem fim, normalmente romanceadas e sempre com o seu quê de interesse e espírito construtivo; defendia a honra e a dignidade acima de tudo e, como dizia bastas vezes, todas as profissões são importantes e dignas e honram quem as desempenha bem.
Porém, não se cansava de repetir, uma das suas histórias: a daquele grupo de gajos que, numa noite fria de Inverno, nos olivais do casal do Pouchão, onde o frio parece cortar a pele das orelhas e do nariz, o mandou pegar num saco grande – o maior que encontrasse no rancho – e os acompanhasse na caça aos gambozinos que, naquela noite sem luar, deviam andar saídos.
O trabalho dele não era complicado: abria a boca do saco o mais que pudesse, num cruzamento de carreiros e esperava que os gambozinos, que os outros iam bater, para lá se dirigissem e entrassem no saco.
Uma condição: não podia fumar ou fazer o mais pequeno barulho, se não espantava a caça e estragava tudo.
Aguentaria até que eles voltassem para recolher a caça, que depois seria para fazer uma jantarada.
Depois de ter deixado de ouvir os batedores, cada vez mais longe, fez-se silêncio total, apenas cortado pelos noitibós, aves nocturnas e coaxar de rãs, nos charcos próximos.
De vez em quando, espreitava para dentro do saco e só via escuridão; tomava o peso ao saco e parecia-lhe vazio, mas… havia que esperar.
Até que, umas horas depois, com o sol já a anunciar-se na aurora, vieram os farsolas, embrulhados em mantas, depois de um sono bem dormido, buscar caçador e caça.
E, com o ar mais inocente deste mundo, lastimaram que não tivesse apanhado nada, porque os gambozinos, naquela noite, tinham ido enganar outro pató ….
A ciática não o castigava muito, a pontos de ainda não ter perdido um dia de trabalho desde o último Inverno.
As ovelhitas e a cabra tinham tomado barriga e dado boas crias.
Não podia queixar-se o Hermínio da Silva – vulgo Armindo Courela –, quando meditava na vida, baixado na latrina, atrás da pocilga do porco, no quintalzito de pouco mais de cem metros quadrados, lá ao fundo da nossa tapada, onde se dirigia todas as manhãs, logo que se levantava, depois de enrolar um paivante e dar as primeiras fumaças do dia.
Dali subiria a casa, meteria qualquer coisa na boca e dois dedais de aguardente, antes de enrolar mais um cigarro.
Pegaria no enxadão ou na picareta, na saca com a bolsita do farnel e tomaria o rumo do poço ou da surriba, onde na altura, dava os dias.
O Ti ´´Armindo Courela``, assim conhecido porque o seu verdadeiro nome era invulgar e a alcunha o identificava com um avô conhecido por esse nome, era homem de fraca estatura física, mas rijo no trabalho.
Não ficava atrás dos corpulentos camaradas com quem muitas vezes emparelhava e gabava-se de ninguém lhe pôr o pé adiante, a podar uma árvore, a plantar uma vinha, ou a orientar um tiro, no fundo de um poço.
Lá em casa, era um dos jornaleiros preferidos, ainda que, na opinião do meu avô, acigarrasse demais, acendendo uns cigarros com os outros e fosse mais cego por aguardente que o Diabo por almas.
Depois, era homem que se podia deixar sozinho; tanto trabalhava ao lado do patrão como longe dele.
Desde que, ainda garoto, fez as ceifas, no Alentejo e Espanha, andou nas “alimpas” dos laranjais de Setúbal, nas podas das vinhas do Ribatejo e dos olivais do Pouchão, fez de tudo e tinha já mais de cem poços abertos na aldeia e povoações vizinhas.
Das andanças por esse mundo além, contava histórias sem fim, normalmente romanceadas e sempre com o seu quê de interesse e espírito construtivo; defendia a honra e a dignidade acima de tudo e, como dizia bastas vezes, todas as profissões são importantes e dignas e honram quem as desempenha bem.
Porém, não se cansava de repetir, uma das suas histórias: a daquele grupo de gajos que, numa noite fria de Inverno, nos olivais do casal do Pouchão, onde o frio parece cortar a pele das orelhas e do nariz, o mandou pegar num saco grande – o maior que encontrasse no rancho – e os acompanhasse na caça aos gambozinos que, naquela noite sem luar, deviam andar saídos.
O trabalho dele não era complicado: abria a boca do saco o mais que pudesse, num cruzamento de carreiros e esperava que os gambozinos, que os outros iam bater, para lá se dirigissem e entrassem no saco.
Uma condição: não podia fumar ou fazer o mais pequeno barulho, se não espantava a caça e estragava tudo.
Aguentaria até que eles voltassem para recolher a caça, que depois seria para fazer uma jantarada.
Depois de ter deixado de ouvir os batedores, cada vez mais longe, fez-se silêncio total, apenas cortado pelos noitibós, aves nocturnas e coaxar de rãs, nos charcos próximos.
De vez em quando, espreitava para dentro do saco e só via escuridão; tomava o peso ao saco e parecia-lhe vazio, mas… havia que esperar.
Até que, umas horas depois, com o sol já a anunciar-se na aurora, vieram os farsolas, embrulhados em mantas, depois de um sono bem dormido, buscar caçador e caça.
E, com o ar mais inocente deste mundo, lastimaram que não tivesse apanhado nada, porque os gambozinos, naquela noite, tinham ido enganar outro pató ….
quinta-feira, 15 de janeiro de 2009
O “minhoto”
Tinha altura abaixo de mediana, cabelos muito pretos e fartos, ombros anormalmente largos e rosto comprido, de que sobressaía o nariz, muito afiado.
Os olhos, muito negros e de expressão mais melancólica que triste, brilhavam por cima de uma barba negra e farta, mal cuidada e confundindo-se com a cabeleira.
O mais notório, todavia, era o tamanho dos pés – grandes e largos, com sinais de há muito não conhecerem calçado e encardidos pela sujidade acumulada –.
Caminhava com passo curto e apressado e não se misturava com os outros pedintes.
Vinha à aldeia todos os meses, visitando todas as casas como esmolante e, com algum laconismo, apelava à caridade alheia.
Terminada a volta, sentava-se na taberna e ia descarregando, da esmoleira para cima da balança, os nacos de pão, as batatas e cebolas, uma ou outra peça de fruta e uns pedaços de toucinho.
O azeite era pago à parte e, se aparecia algum enchido, diferente de farinheira, era retirado do conjunto da venda.
O Ti Manel, taberneiro e merceeiro, pagava tudo ao mesmo preço: quase sem olhar para a balança, abria a gaveta do dinheiro e retirava duas ou três moedas, que dariam para duas ou três “metades” de vinho. E ia logo enchendo o primeiro copo que, ainda antes de ser lavado, havia de servir para a segunda e terceira doses.
Aí pelas duas horas, havia sempre uma ou outra alma caridosa que vinha trazer a melhor esmola: uma malga de caldo quente.
Depois disso “o minhoto” falava, ralhava consigo próprio, interrogava-se e acabava por cair em sonolência, até que, pouco depois do pôr-do-sol, se recolhia à “malhada”.
No outro dia, ao romper do sol, já andava a dar a volta noutra aldeia.
Dizia-se, desta personagem enigmática, que tinha sido homem de letras, transtornado por algo, muitos anos antes.
Teria à volta de sessenta anos – para mais – e, quando sóbrio, o que era raro, ainda acertava no que dizia e discorria, com os estudantes da terra, sobre Geografia, História e Ciências; deixava escapar conhecimentos de francês, espanhol e inglês, até que...
Calava-se, de repente, quando se apercebia que estava a falar de mais.
Corriam mais de uma dúzia de histórias sobre a “biografia do minhoto”: que era casado e tinha filhos; que a mulher o tentara envenenar e expulsara de casa; que uma fraqueza das ideias o fizera “variar” e abandonar tudo; que era senhor de meios de fortuna, mas preferia a vida de ermitão e pedinte; etc., etc., etc.
A verdade, porém, é que ninguém ousava interpelá-lo, sobre a sua identidade ou vida.
Se era apanhado pela guarda, fazia-se de parvo e apoucado e, ainda antes que conspurcasse e infestasse os calabouços, era posto em liberdade.
Quando não reagia violentamente a uma ou outra pergunta, respondia: sou o minhoto, não tenho terra, nem família, nem sei mais nada a meu respeito... ponto final!...
Um dia, já com mais copos que o normal, outro mendigo ameaçou-o de dizer tudo a respeito dele.
Conheço-te, bem sabes, a ti e a tua família; não és do Minho...
Não disse mais nada, pois uma paulada bem assente, imobilizou e calou de vez o atrevido pedinte, que, a tremer de medo, se escapuliu, sem um simples ai.
Presente ao cabo-de-ordens da aldeia, o minhoto, manso como um cordeiro, entregou o cajado e aguardou.
Depois de passar o raspanete do costume, o ti Manel Mendes, mandou “o minhoto” em paz e avisou que não se metessem com ele, pois em mais de vinte ou trinta anos que passava pela aldeia, nunca provocou desacatos.
Daí em diante, todos os que tentassem, ou simplesmente ameaçassem, identificá-lo, eram avisados que não deveriam fazê-lo, uma vez que, a partir daí, tudo poderia acontecer-lhes... ponto final!....Não gostava que falassem da vida dele.
Correram os anos e “o minhoto” foi passando, tal como tantos outros mendigos, pela aldeia. Um dia, porém, chegou a notícia:
O “pobre”, a que sempre chamaram “o minhoto”, morreu, lá para os lados do Codes. O nome verdadeiro – José de Sousa – foi encontrado entre os trastes que guardava no sarrão das esmolas.
Foi professor e viveu bem, numa aldeia dos contrafortes da Serra da Estrela. Esteve emigrado, na Europa e ganhou muito dinheiro na candonga e no volfrâmio.
Foi atraiçoado pela mulher, conluiada com um sócio dele, acabando os dois por desaparecer, misteriosamente.
Trabalhou nas minas da Panasqueira, tendo desaparecido após uma pequena derrocada numa das galerias.
Não mais foi referenciado e, não se sabe bem porquê, não consta que tivesse sido procurado.
Serão dignos de crédito estes elementos referentes “ao minhoto”, ou continuarão a ser peças de uma existência obscura, que nunca conheceremos e que o próprio guardou, até ao fim dos seus dias?
Os olhos, muito negros e de expressão mais melancólica que triste, brilhavam por cima de uma barba negra e farta, mal cuidada e confundindo-se com a cabeleira.
O mais notório, todavia, era o tamanho dos pés – grandes e largos, com sinais de há muito não conhecerem calçado e encardidos pela sujidade acumulada –.
Caminhava com passo curto e apressado e não se misturava com os outros pedintes.
Vinha à aldeia todos os meses, visitando todas as casas como esmolante e, com algum laconismo, apelava à caridade alheia.
Terminada a volta, sentava-se na taberna e ia descarregando, da esmoleira para cima da balança, os nacos de pão, as batatas e cebolas, uma ou outra peça de fruta e uns pedaços de toucinho.
O azeite era pago à parte e, se aparecia algum enchido, diferente de farinheira, era retirado do conjunto da venda.
O Ti Manel, taberneiro e merceeiro, pagava tudo ao mesmo preço: quase sem olhar para a balança, abria a gaveta do dinheiro e retirava duas ou três moedas, que dariam para duas ou três “metades” de vinho. E ia logo enchendo o primeiro copo que, ainda antes de ser lavado, havia de servir para a segunda e terceira doses.
Aí pelas duas horas, havia sempre uma ou outra alma caridosa que vinha trazer a melhor esmola: uma malga de caldo quente.
Depois disso “o minhoto” falava, ralhava consigo próprio, interrogava-se e acabava por cair em sonolência, até que, pouco depois do pôr-do-sol, se recolhia à “malhada”.
No outro dia, ao romper do sol, já andava a dar a volta noutra aldeia.
Dizia-se, desta personagem enigmática, que tinha sido homem de letras, transtornado por algo, muitos anos antes.
Teria à volta de sessenta anos – para mais – e, quando sóbrio, o que era raro, ainda acertava no que dizia e discorria, com os estudantes da terra, sobre Geografia, História e Ciências; deixava escapar conhecimentos de francês, espanhol e inglês, até que...
Calava-se, de repente, quando se apercebia que estava a falar de mais.
Corriam mais de uma dúzia de histórias sobre a “biografia do minhoto”: que era casado e tinha filhos; que a mulher o tentara envenenar e expulsara de casa; que uma fraqueza das ideias o fizera “variar” e abandonar tudo; que era senhor de meios de fortuna, mas preferia a vida de ermitão e pedinte; etc., etc., etc.
A verdade, porém, é que ninguém ousava interpelá-lo, sobre a sua identidade ou vida.
Se era apanhado pela guarda, fazia-se de parvo e apoucado e, ainda antes que conspurcasse e infestasse os calabouços, era posto em liberdade.
Quando não reagia violentamente a uma ou outra pergunta, respondia: sou o minhoto, não tenho terra, nem família, nem sei mais nada a meu respeito... ponto final!...
Um dia, já com mais copos que o normal, outro mendigo ameaçou-o de dizer tudo a respeito dele.
Conheço-te, bem sabes, a ti e a tua família; não és do Minho...
Não disse mais nada, pois uma paulada bem assente, imobilizou e calou de vez o atrevido pedinte, que, a tremer de medo, se escapuliu, sem um simples ai.
Presente ao cabo-de-ordens da aldeia, o minhoto, manso como um cordeiro, entregou o cajado e aguardou.
Depois de passar o raspanete do costume, o ti Manel Mendes, mandou “o minhoto” em paz e avisou que não se metessem com ele, pois em mais de vinte ou trinta anos que passava pela aldeia, nunca provocou desacatos.
Daí em diante, todos os que tentassem, ou simplesmente ameaçassem, identificá-lo, eram avisados que não deveriam fazê-lo, uma vez que, a partir daí, tudo poderia acontecer-lhes... ponto final!....Não gostava que falassem da vida dele.
Correram os anos e “o minhoto” foi passando, tal como tantos outros mendigos, pela aldeia. Um dia, porém, chegou a notícia:
O “pobre”, a que sempre chamaram “o minhoto”, morreu, lá para os lados do Codes. O nome verdadeiro – José de Sousa – foi encontrado entre os trastes que guardava no sarrão das esmolas.
Foi professor e viveu bem, numa aldeia dos contrafortes da Serra da Estrela. Esteve emigrado, na Europa e ganhou muito dinheiro na candonga e no volfrâmio.
Foi atraiçoado pela mulher, conluiada com um sócio dele, acabando os dois por desaparecer, misteriosamente.
Trabalhou nas minas da Panasqueira, tendo desaparecido após uma pequena derrocada numa das galerias.
Não mais foi referenciado e, não se sabe bem porquê, não consta que tivesse sido procurado.
Serão dignos de crédito estes elementos referentes “ao minhoto”, ou continuarão a ser peças de uma existência obscura, que nunca conheceremos e que o próprio guardou, até ao fim dos seus dias?
terça-feira, 6 de janeiro de 2009
A comadre Luísa
Os cavacos iam ardendo debaixo da panela de ferro, o gato ronronava ao canto da lareira e a candeia bruxuleava no prego do fumeiro, enquanto o farrusco enroscado junto às brasas, sobre as botas do Ti´Manel, que pendia, com o paivante ao canto da boca e a pobre mulher, passando as contas do rosário, quando na porta da rua a aldrava bateu várias vezes, em tom de aflição e já entrava alguém, de rompante, em direcção à cozinha.
Era a Ti´Ana do Vale, ofegante, que se atirou para cima da tripeça de cortiça e lá conseguiu dizer que era muito importante que fosse já, a Ti´Luísa, pois a sua nora estava há mais de dois dias para parir a criança e acabaria por se esvair em sangue, se não lhe acudisse já.
O Ti´Manel, despertou e, dando um pontapé no cachorro, deparou com aquele aparato todo, sem lhe passar despercebido todo o ar de aflição da comadre Ana do Vale.
Ergueu-se de um salto e berrou, para a mulher que ainda por ali andava, com ar atarantado:
Por que esperas, alma do demo? Corre que não há tempo a perder!...
Com a admiração estampada no rosto, a velhota dirigiu-se à pilheira do canto da lenha, pegou uma pequena maleta que a acompanhava sempre que ia fazer nascer alguém, apressou-se em direcção à porta da rua e, seguida da Ti´Ana, tomou o caminho da Horta Velha, até à casa onde agonizava a Zefa.
Entrou na alcofa onde jazia a parturiente, pediu um alguidar com água quente, um cobertor para agasalhar e aquecer bem a doente e abrindo a maleta tirou um instrumento ainda luzidio, se bem que bastante velho e preparou-se para tirar, rapidamente, a criança.
Menos de meia hora depois, toda a gente podia ver um belo moço, robusto e bem parecido, como o avô, que exuberante o exibia aos parentes e curiosos que entretanto ali se juntaram.
A comadre Luísa, ainda confusa com a atitude do marido, saiu discreta e ansiosa por chegar junto do homem para poder saber qual o motivo por que foi tão solícito a mandá-la socorrer a filha do seu maior inimigo.
O Manel, ainda ao canto da lareira, ergueu os olhos, quando a mulher entrou, e perguntou como tinham corrido as coisas.
A mulher, benzendo-se, deu graças a Deus por tudo ter corrido bem.
Todavia ficou espantada ao ver o homem erguer-se e começar a rezar, com ela, o Pai nosso…
Ele que parecia de pedra e nem sequer podia ouvir falar naquela família, a rezar … Não, não estava em si, pensou a Ti´Luísa.
De súbito, o Ti´Manel encarou a mulher e disse-lhe que não ia muitas vezes à igreja, não andava sempre a bater no peito, mas sabia ver as coisas e, no fim de contas, as zangas entre as famílias não passavam de mal entendidos que, de pais para filhos e netos, iam criando inimizades e falsas zangas que nunca podiam levar a lado nenhum.
Rematou, dizendo que a partir daquele dia podia morrer descansado; já não tinha inimigos.
No domingo seguinte, à saída da missa, o Ti´Manel foi abordado pelo Ti´Zé da Horta Velha, acompanhado da mulher, que lhe estendia os braços e lhe oferecia toda a sua amizade.
Naquele abraço enterraram anos de discórdias e celebraram o nascimento de mais uma criança que, por desejo do avô, se iria chamar Manuel.
Era a Ti´Ana do Vale, ofegante, que se atirou para cima da tripeça de cortiça e lá conseguiu dizer que era muito importante que fosse já, a Ti´Luísa, pois a sua nora estava há mais de dois dias para parir a criança e acabaria por se esvair em sangue, se não lhe acudisse já.
O Ti´Manel, despertou e, dando um pontapé no cachorro, deparou com aquele aparato todo, sem lhe passar despercebido todo o ar de aflição da comadre Ana do Vale.
Ergueu-se de um salto e berrou, para a mulher que ainda por ali andava, com ar atarantado:
Por que esperas, alma do demo? Corre que não há tempo a perder!...
Com a admiração estampada no rosto, a velhota dirigiu-se à pilheira do canto da lenha, pegou uma pequena maleta que a acompanhava sempre que ia fazer nascer alguém, apressou-se em direcção à porta da rua e, seguida da Ti´Ana, tomou o caminho da Horta Velha, até à casa onde agonizava a Zefa.
Entrou na alcofa onde jazia a parturiente, pediu um alguidar com água quente, um cobertor para agasalhar e aquecer bem a doente e abrindo a maleta tirou um instrumento ainda luzidio, se bem que bastante velho e preparou-se para tirar, rapidamente, a criança.
Menos de meia hora depois, toda a gente podia ver um belo moço, robusto e bem parecido, como o avô, que exuberante o exibia aos parentes e curiosos que entretanto ali se juntaram.
A comadre Luísa, ainda confusa com a atitude do marido, saiu discreta e ansiosa por chegar junto do homem para poder saber qual o motivo por que foi tão solícito a mandá-la socorrer a filha do seu maior inimigo.
O Manel, ainda ao canto da lareira, ergueu os olhos, quando a mulher entrou, e perguntou como tinham corrido as coisas.
A mulher, benzendo-se, deu graças a Deus por tudo ter corrido bem.
Todavia ficou espantada ao ver o homem erguer-se e começar a rezar, com ela, o Pai nosso…
Ele que parecia de pedra e nem sequer podia ouvir falar naquela família, a rezar … Não, não estava em si, pensou a Ti´Luísa.
De súbito, o Ti´Manel encarou a mulher e disse-lhe que não ia muitas vezes à igreja, não andava sempre a bater no peito, mas sabia ver as coisas e, no fim de contas, as zangas entre as famílias não passavam de mal entendidos que, de pais para filhos e netos, iam criando inimizades e falsas zangas que nunca podiam levar a lado nenhum.
Rematou, dizendo que a partir daquele dia podia morrer descansado; já não tinha inimigos.
No domingo seguinte, à saída da missa, o Ti´Manel foi abordado pelo Ti´Zé da Horta Velha, acompanhado da mulher, que lhe estendia os braços e lhe oferecia toda a sua amizade.
Naquele abraço enterraram anos de discórdias e celebraram o nascimento de mais uma criança que, por desejo do avô, se iria chamar Manuel.
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