O palheiro – construção rudimentar, formada por quatro paredes de pedra e barro, tecto de telha vã de uma só água, porta de tábuas de pinho, presa por dois gonzos e uma fechadura do ferreiro da terra -, ainda estava, há poucos anos, em razoável estado de conservação.
Todavia, o incêndio que por ali passou em meados dos anos 90 transformou o palheiro num monte de cinzas e telhas, deixando de pé as paredes, para, mais tarde as estevas e as balças acabarem por desfigurar o local, que está, praticamente, irreconhecível.
O palheiro da Renda, com uma dúzia de metros quadrados de área, era usado para guarda de fenos e pastagens, especialmente como local de arrecadação de emergência, quando as trovoadas de Maio não davam tempo para levar mais longe o ferrejo que secava ao sol.
A chave, guardada num requebro da parede, do lado direito da porta, era usada apenas por quem sabia do seu esconderijo e, portanto, devidamente autorizado pelos seus donos.
O lugar não era, propriamente, um local de passagem, pelo que só as pessoas conhecedoras, ou intencionadas, faziam uso do palheiro.
Um dos hóspedes habituais do local era o guarda-rios que, ou por não lhe apetecer montar a bicicleta pasteleira e ir para casa, nos confins de Alcaravela, ou por não sentir já o equilíbrio suficiente, ia até ao palheiro, curtir a bebedeira e passar a noite.
Para mais que, como dizia, sendo o local do palheiro a uns escassos vinte metros da ribeira, pernoitava no local de trabalho.
Sempre foi insuspeito o uso dado ao palheiro; só na cabeça do moleiro que passava
nas redondezas para ir para a azenha do Ferrugento, ali ao fundo do Cabecinho Agudo, se arquitectou uma maneira de pregar um cagaço ao guarda-rios, depois de lhe ter contado histórias sobre o local, atrás de uns copos, na taberna.
Um dia, ao pôr-do-sol, o moleiro viu o guarda-rios ficar na taberna, quando se dirigia para a azenha.
Pelo caminho, atrás do macho carregado de taleigos, foi arquitectando o susto que pregaria ao guarda-rios no palheiro. E passou aos factos:
Foi à azenha, pôs tudo a trabalhar, encheu a tremonha de grão, regulou a água, fechou o cãozito, para que o não seguisse, pensou o macho e esperou que baixasse o escuro para ir rondar o palheiro e acagaçar o guarda-rios.
O silêncio pesava sobre o escuro de breu e apenas um ou outro pirilampo cruzava o ar e interrompia o ladrar longínquo dos cães, lá ao cimo, na aldeia.
De uma fresta da porta do palheiro saía um ténue clarão; sinal de que o lugar já estava habitado. Aproximou-se, espreitou, mas não conseguiu ver nada. Ouviu vozes surdas e imperceptíveis, apercebendo-se, de imediato, que o guarda-rios não estava só.
Foi por trás, onde o palheiro era mais baixo, devido ao desnível do terreno, arredou, muito lentamente uma telha e olhou para dentro do palheiro, onde ardia, junto à porta, uma fogueira muito suave, de cujo lume se espalhava uma luz ténue que deu para ver dois corpos, sobre uma manta, aberta sobre um molho de palha.
Guarda-rios e companheira estavam muito juntos; o moleiro, apenas olhou mais uma vez, depois de fechar os olhos, e, com milhares de ideias na cabeça, retirou-se e dirigiu-se, cabisbaixo e acabrunhado, para a azenha.
Ali, sentou-se, com a cabeça entre as mãos e meditou…
Nas muitas vezes que havia provocado o guarda-rios, caçoando do seu aspecto e lembrando-lhe que há testos para todas as panelas e ele ainda encontraria o dele; que afinal dentro do género dele até havia muito pior, e outras coisas do género.
Agora sentia-se incomodado com a calma e bonomia com que o guarda-rios ouvia todos os impropérios do moleiro e acabava por sorrir, como se nada fosse com ele.
Percebia, agora, o gozo que deviam dar ao guarda-rios as palavras com que pensava achincalhá-lo.
Vieram-lhe à mente todas as vezes que olhou para aquela figura insignificante, com um olho sempre vesgo e meio cerrado, uma perna arrastada e meio cambado de ombros, os trejeitos da boca e, não raro, uma baba ao canto do queixo.
Não sentia pena dele; considerava-o infeliz e nada fazia para o aliviar e, todavia, parecia que nada incomodavam o guarda-rios tais impropérios.
Agora entendia, agora sentia o ricochete de tudo o que lhe dissera.
Sem se dar pelo passar das horas, olhou o céu e reparou que a moagem estava quase no fim. Era preciso tratar do macho e abrir o cão que continuava fechado, preparar tudo e partir para casa; onde, certamente, a mulher, já consolada pelo guarda-rios, tinha tido tempo de voltar e esperava, por ele, na cama.
A vida continuou e nem o moleiro, nem o guarda-rios, nem a mulher, alguma vez denotaram qualquer atitude estranha, quando se falavam, ao cruzar-se, na aldeia, ou na taberna.
O moleiro resolveu não deixar a mulher só, quando pressentia o guarda-rios por perto; a mulher e o guarda-rios, provavelmente, atribuíram ao acaso a falta de oportunidades para se encontrarem.
Só um pequeno papel, rabiscado pelo moleiro e misturado num rolo de documentos escondidos num buraco da azenha e encontrado anos depois da morte do moleiro, deu conta dos remorsos do seu autor e permitiu imaginar o cenário descrito.
Nunca, da boca dos três intervenientes, saiu qualquer palavra sobre o assunto.
segunda-feira, 27 de outubro de 2008
segunda-feira, 20 de outubro de 2008
O terreiro dos ladrões
Atrás da Portela da Casinha, no cimo da chapada dos Brejos, meia encosta do Cabeço Barreiro e não longe da vereda que dá para os cimos da Horta de Casa, ergue-se um palanque natural de terra lisa, onde ainda hoje se pode ver a delimitação, de pedras, que cerca a zona plana.
Diziam os mais antigos que aquele lugar era como que um sítio excomungado, onde se refugiavam os ladrões e outros malfeitores, uma vez que chegados ali, ninguém lhes podia fazer mal.
Melhor dizendo, ninguém se atrevia a entrar naquele recinto em perseguição de alguém, embora todos ignorassem o que poderia acontecer a quem violasse tal preceito e desconhecessem alguém que a tal se tivesse aventurado.
Dizia-se que um senhor de grandes posses que outrora habitara na região se sentava naquele pequeno planalto a contemplar as suas terras que se estendiam para além do vasto horizonte dali desfrutado.
Ali construiu uma casa senhorial, ainda que bem camuflada, onde praticava toda a espécie de desmandos sobre as gentes locais, incluindo um recinto com grande número de concubinas e malfeitores às suas ordens.
Dizia-se, também, que a casa do demo, como entre dentes lhe chamavam, estava toda coberta por uma árvore – um enorme castanheiro – que a ocultava completamente de quem dela se acercasse e permitia aos vigias, colocados nos mais altos ramos, ver quem se aproximasse e defender o local.
Dizia-se, ainda, que num dia de S. Bartolomeu – quando, segundo a voz do povo, o Diabo anda uma hora à solta, com liberdade para fazer o que quiser –, um antepassado do malvado que habitava a casa, teve o próprio Demo ali hospedado e fez com ele tratos de malfeitorias para o futuro.
Por isso se dizia que o local se chamava terreiro de S. Bartolomeu e a casa, mansão do Demónio.
Aos cumes da serra que fazia ângulo com o Cabeço Barreiro, para nascente, assomavam muitos populares de terras vizinhas e chegou mesmo a ser estabelecido um posto de vigia sobre a mansão do Demónio, para ver se afrouxavam as guardas e podiam descer e cultivar as terras soalheiras e férteis do sopé do monte.
De entre os frequentadores começou a insinuar-se um sujeito corpulento, portador de fama de bom lutador e ardiloso caçador; no jogo do pau nunca havia sido vencido e no corpo a corpo ninguém, alguma vez, lhe pusera cuspinho no nariz.
Aos poucos foi sendo empurrado para chefiar uma investida contra a casa do mal e a liquidação do poder do dono.
Era, ainda, preciso libertar os serviçais que ali viviam em regime de escravatura e tomando posse das terras, muita gente viria a lucrar.
Aos poucos o “serra” – assim se denominava, por alcunha, é claro, o chefe dos grupos – foi organizando e treinando o esquema que preparou para tomar a casa.
Estabeleceu, para o ataque, um dia quente e seco de verão e como base da acção, doze pontos em redor da casa.
Em cada um dos locais, preparou materiais e gente para, ao seu sinal, lançarem um violento incêndio, na direcção da casa.
Muitos outros, de reserva, juntaram-se com todo o tipo de varapaus e lanças, para, a coberto do fogo, irem tomando a terra queimada e, também, tratarem os que tentassem fugir da casa e seus domínios.
Ainda que o “serra” não quisesse violência gratuita apoiava todo o tipo de limpeza, para evitar surpresas.
Foram libertados muitos trabalhadores e concubinas e do velho e imponente castanheiro restaram apenas cinzas.
Uma imagem que foi posta a recato das chamas por alguns dos populares que ao verem chegar o lume se juntaram aos invasores, foi colocada no local onde viria a ser o centro do casal e da nova povoação a que, por unanimidade, deram o nome de Serra.
À imagem começaram a chamar Senhor dos Aflitos, o padroeiro da terra.
Ardeu tudo e não foi deixada pedra sobre pedra. Porém, nunca se encontrou, nem vivo nem morto, o senhor da casa.
Durante muitos anos foi procurado e nunca apareceu; diga-se que, também em vida, nunca ninguém afirmou tê-lo visto.
Os que trabalhavam na casa, ou para a casa, diziam que havia feitores, chefes de trabalhos e grupos, visitas desconhecidas, mas, senhor, senhor, nunca viram.
As concubinas eram usadas não sabendo por quem, ou de olhos vendados, ou às escuras e nenhuma reconheceu os indivíduos apanhados.
Ao local da casa foi atribuída a excomunhão e declarado baldio e local de apoio e refúgio de perseguidos.
O “serra” foi generoso com os que mais o ajudaram e aos poucos nasceu a povoação que ainda hoje tem o seu nome e continua a ser uma das aldeias mais aprazíveis da região sul da Beira Baixa.
Cremos que já ninguém espera o senhor da mansão e poucos aceitarão ser esta a origem da sua terra.
A lenda não será mais que uma história de gente simples...
Diziam os mais antigos que aquele lugar era como que um sítio excomungado, onde se refugiavam os ladrões e outros malfeitores, uma vez que chegados ali, ninguém lhes podia fazer mal.
Melhor dizendo, ninguém se atrevia a entrar naquele recinto em perseguição de alguém, embora todos ignorassem o que poderia acontecer a quem violasse tal preceito e desconhecessem alguém que a tal se tivesse aventurado.
Dizia-se que um senhor de grandes posses que outrora habitara na região se sentava naquele pequeno planalto a contemplar as suas terras que se estendiam para além do vasto horizonte dali desfrutado.
Ali construiu uma casa senhorial, ainda que bem camuflada, onde praticava toda a espécie de desmandos sobre as gentes locais, incluindo um recinto com grande número de concubinas e malfeitores às suas ordens.
Dizia-se, também, que a casa do demo, como entre dentes lhe chamavam, estava toda coberta por uma árvore – um enorme castanheiro – que a ocultava completamente de quem dela se acercasse e permitia aos vigias, colocados nos mais altos ramos, ver quem se aproximasse e defender o local.
Dizia-se, ainda, que num dia de S. Bartolomeu – quando, segundo a voz do povo, o Diabo anda uma hora à solta, com liberdade para fazer o que quiser –, um antepassado do malvado que habitava a casa, teve o próprio Demo ali hospedado e fez com ele tratos de malfeitorias para o futuro.
Por isso se dizia que o local se chamava terreiro de S. Bartolomeu e a casa, mansão do Demónio.
Aos cumes da serra que fazia ângulo com o Cabeço Barreiro, para nascente, assomavam muitos populares de terras vizinhas e chegou mesmo a ser estabelecido um posto de vigia sobre a mansão do Demónio, para ver se afrouxavam as guardas e podiam descer e cultivar as terras soalheiras e férteis do sopé do monte.
De entre os frequentadores começou a insinuar-se um sujeito corpulento, portador de fama de bom lutador e ardiloso caçador; no jogo do pau nunca havia sido vencido e no corpo a corpo ninguém, alguma vez, lhe pusera cuspinho no nariz.
Aos poucos foi sendo empurrado para chefiar uma investida contra a casa do mal e a liquidação do poder do dono.
Era, ainda, preciso libertar os serviçais que ali viviam em regime de escravatura e tomando posse das terras, muita gente viria a lucrar.
Aos poucos o “serra” – assim se denominava, por alcunha, é claro, o chefe dos grupos – foi organizando e treinando o esquema que preparou para tomar a casa.
Estabeleceu, para o ataque, um dia quente e seco de verão e como base da acção, doze pontos em redor da casa.
Em cada um dos locais, preparou materiais e gente para, ao seu sinal, lançarem um violento incêndio, na direcção da casa.
Muitos outros, de reserva, juntaram-se com todo o tipo de varapaus e lanças, para, a coberto do fogo, irem tomando a terra queimada e, também, tratarem os que tentassem fugir da casa e seus domínios.
Ainda que o “serra” não quisesse violência gratuita apoiava todo o tipo de limpeza, para evitar surpresas.
Foram libertados muitos trabalhadores e concubinas e do velho e imponente castanheiro restaram apenas cinzas.
Uma imagem que foi posta a recato das chamas por alguns dos populares que ao verem chegar o lume se juntaram aos invasores, foi colocada no local onde viria a ser o centro do casal e da nova povoação a que, por unanimidade, deram o nome de Serra.
À imagem começaram a chamar Senhor dos Aflitos, o padroeiro da terra.
Ardeu tudo e não foi deixada pedra sobre pedra. Porém, nunca se encontrou, nem vivo nem morto, o senhor da casa.
Durante muitos anos foi procurado e nunca apareceu; diga-se que, também em vida, nunca ninguém afirmou tê-lo visto.
Os que trabalhavam na casa, ou para a casa, diziam que havia feitores, chefes de trabalhos e grupos, visitas desconhecidas, mas, senhor, senhor, nunca viram.
As concubinas eram usadas não sabendo por quem, ou de olhos vendados, ou às escuras e nenhuma reconheceu os indivíduos apanhados.
Ao local da casa foi atribuída a excomunhão e declarado baldio e local de apoio e refúgio de perseguidos.
O “serra” foi generoso com os que mais o ajudaram e aos poucos nasceu a povoação que ainda hoje tem o seu nome e continua a ser uma das aldeias mais aprazíveis da região sul da Beira Baixa.
Cremos que já ninguém espera o senhor da mansão e poucos aceitarão ser esta a origem da sua terra.
A lenda não será mais que uma história de gente simples...
terça-feira, 14 de outubro de 2008
O Ti’Carloto
Sempre presente, atrás do balcão da pequena tasca, com um reservado onde se comia uma bucha e, nos fundos, uma mercearia, O Ti’Carloto, tinha uma postura inconfundível.
De falas mansas, com o sotaque maçanico mais timbrado que guardamos na memória, atrás da sua barriguinha imponente, ouvia muito atentamente e falava com suavidade.
A mulher, ti’Perpétua, surda que nem um penedo, estava sempre à coca, desconfiando que lhe bebessem algum copo sem pagar, ou comessem alguma coisa, à socapa. E o ti’Carloto, puxava por ela!...
Ali, paredes-meias com a igreja da Misericórdia, estava a recato das vistas dos transeuntes, por uma porta “tipo Texas”. Fechava cedo e, depois de fechar, sempre vi o ti’Carloto, fora da loja, sentado num banco.
Aos domingos, convergiam para a tasca, os pais dos garotos que frequentavam o colégio e estavam aboletados em casas particulares. E reuniam-se, ali, com uma dupla finalidade: comer a bucha que levavam, acompanhada de uma “Sagres” ou “uma metade com gasosa”e pagar os avios de mercearia que as hospedeiras dos filhos tinham levado, a crédito.
Recordo mais de uma dezena de pais de colegas meus que acabaram por se conhecer uns aos outros, nestas andanças da vida.
E, como era delicioso ouvi-los!...
Alunos que poucas notas positivas terão tirado, eram barras; outros, que não eram maus alunos, nem referidos eram.
Meu pai sempre se orgulhou dos filhos, mas não se excedia em elogios.
O ti’Carloto, bem informado sobre os seus “fregueses”entrava, às vezes nas conversas e lá ia pondo água na fervura quando alguém, assim mais no fim do “repasto”, se exaltava por não ver elogiado o seu filho.
Olhava para mim, sorria, piscava-me o olho, em ar de intimidade, e seguia em frente… Bem ti’Amorim – esta semana a Mari’Bela não se alargou: temos aqui só três mil réis. As personagens eram meu pai e a dona da casa, em que eu estava, à entrada da rua de S. Pedro.
Para aligeirar, um ou outro, mais bem disposto, lá adiantava alguma pachouvada, como dizia o ti’Carloto, quando entrava nas suas histórias.
Foi assim que ouvi, pela primeira vez, e ainda hoje sorrio, o célebre episódio que lhe é atribuído. E, verdadeiro ou fictício, convenhamos que assenta nas figuras e personalidades do Ti’Carloto e da ti’Perpétua, que nem sopa no mel.
Então lá vai, atirou o Joaquim Moleiro: Ó ti’Carloto, sempre é verdade que um dia destes foi à loja pensar a burra e, às tantas, gritava para a sua mulher que chegasse depressa uma luz, pois a burra dera um coice e ainda não sabia se tinha acertado em si, ou na parede?!...
Homem, tão certo como estares a ver-me:
O dianho da bicha desatou aos coices e eu, consegui segurá-la pelo pescoço. Eram coices que ferviam e eu, de facto, já nem sabia se acertavam em mim, se na parede. Gritei para a mulher, claro!... Então ela nem assim ouvia, mouca como é!...
Esta e outras histórias contava-me o ti’Carloto quando, depois do jantar, passava lá pela loja para comprar três tostões de castanhas, de amendoins, ou de bolachas Maria. Dentro destes valores o meu pai autorizava a venda para pôr no role, desde que as notas fossem boas – e, felizmente, por esse motivo, nunca deixei de poder comprar as gulodices –.
Não é verdade, ti’Carloto?!...
De falas mansas, com o sotaque maçanico mais timbrado que guardamos na memória, atrás da sua barriguinha imponente, ouvia muito atentamente e falava com suavidade.
A mulher, ti’Perpétua, surda que nem um penedo, estava sempre à coca, desconfiando que lhe bebessem algum copo sem pagar, ou comessem alguma coisa, à socapa. E o ti’Carloto, puxava por ela!...
Ali, paredes-meias com a igreja da Misericórdia, estava a recato das vistas dos transeuntes, por uma porta “tipo Texas”. Fechava cedo e, depois de fechar, sempre vi o ti’Carloto, fora da loja, sentado num banco.
Aos domingos, convergiam para a tasca, os pais dos garotos que frequentavam o colégio e estavam aboletados em casas particulares. E reuniam-se, ali, com uma dupla finalidade: comer a bucha que levavam, acompanhada de uma “Sagres” ou “uma metade com gasosa”e pagar os avios de mercearia que as hospedeiras dos filhos tinham levado, a crédito.
Recordo mais de uma dezena de pais de colegas meus que acabaram por se conhecer uns aos outros, nestas andanças da vida.
E, como era delicioso ouvi-los!...
Alunos que poucas notas positivas terão tirado, eram barras; outros, que não eram maus alunos, nem referidos eram.
Meu pai sempre se orgulhou dos filhos, mas não se excedia em elogios.
O ti’Carloto, bem informado sobre os seus “fregueses”entrava, às vezes nas conversas e lá ia pondo água na fervura quando alguém, assim mais no fim do “repasto”, se exaltava por não ver elogiado o seu filho.
Olhava para mim, sorria, piscava-me o olho, em ar de intimidade, e seguia em frente… Bem ti’Amorim – esta semana a Mari’Bela não se alargou: temos aqui só três mil réis. As personagens eram meu pai e a dona da casa, em que eu estava, à entrada da rua de S. Pedro.
Para aligeirar, um ou outro, mais bem disposto, lá adiantava alguma pachouvada, como dizia o ti’Carloto, quando entrava nas suas histórias.
Foi assim que ouvi, pela primeira vez, e ainda hoje sorrio, o célebre episódio que lhe é atribuído. E, verdadeiro ou fictício, convenhamos que assenta nas figuras e personalidades do Ti’Carloto e da ti’Perpétua, que nem sopa no mel.
Então lá vai, atirou o Joaquim Moleiro: Ó ti’Carloto, sempre é verdade que um dia destes foi à loja pensar a burra e, às tantas, gritava para a sua mulher que chegasse depressa uma luz, pois a burra dera um coice e ainda não sabia se tinha acertado em si, ou na parede?!...
Homem, tão certo como estares a ver-me:
O dianho da bicha desatou aos coices e eu, consegui segurá-la pelo pescoço. Eram coices que ferviam e eu, de facto, já nem sabia se acertavam em mim, se na parede. Gritei para a mulher, claro!... Então ela nem assim ouvia, mouca como é!...
Esta e outras histórias contava-me o ti’Carloto quando, depois do jantar, passava lá pela loja para comprar três tostões de castanhas, de amendoins, ou de bolachas Maria. Dentro destes valores o meu pai autorizava a venda para pôr no role, desde que as notas fossem boas – e, felizmente, por esse motivo, nunca deixei de poder comprar as gulodices –.
Não é verdade, ti’Carloto?!...
terça-feira, 7 de outubro de 2008
“O Manholas”
Ao que se sabe, O “Manholas”lavou os pés, no dia em que foi às sortes; até aí, tinha andado várias vezes dentro de água, mas nunca ninguém o viu lavar-se.
A planta dos pés era mais resistente e dura que sola; pelo menos era muito mais durável. A dele já aguentava, sem se gastar, havia mais de vinte anos. Movimentava-se tanto nos caminhos como fora deles, por montes e vales, sobre pedras ou no meio de tojos e balças.
As unhas nunca foram cortadas; os usos que tinham contra todo o tipo de obstáculos, evitavam o crescimento excessivo e serviam de protecção.
Porém, os pés do “Manholas” não andavam muito encardidos; no Inverno passava dias e dias dentro das regueiras dos caminhos, a chafurdar na lama e a atravessar ribeiros e canadas; no Verão deliciava-se nos regos da água, quando alguém andava a regar, ou nas longas caminhadas que fazia ao longo da ribeira, a apanhar peixes.
No dia das sortes, lá foi com os colegas que, como ele, faziam vinte anos, à inspecção militar e, como sempre, descalço. Todavia ninguém notou, nesse dia, falta de limpeza nos pés do Manuel dos Reis – Manholas –.
Os inspeccionadores perguntaram porque vinha descalço e o “Manholas”respondeu que não tinha sapatos, nem botas. Acrescentou que nunca usara tais coisas e não pensava habituar-se e, se não houvesse lá na tropa malta descalça, era melhor não o levarem para lá.
Apesar de apoucado de espírito – “poucochinho”, como diz o povo – o “Manholas”não era tolo. Conhecia todos os recantos, todos os buracos e grutas das redondezas da aldeia. Apanhava, à mão, todo o tipo de caça, peixes, cobras e lagartos, até se dizia que acamaradava com os lobos, com quem se entendia, perfeitamente.
Quando cruzava com alguém, não deixava de salvar – emitia alguns sons semelhantes a “vá com Deus”; porém andava, habitualmente por fora dos caminhos e gostava muito de ver, sem ser visto.
Nunca incomodou ninguém, tal como não era importunado por quem quer que fosse. Vivia com a mãe, de idade avançada, num casebre da aldeia.
Um dia, vá-se lá saber porquê, o “Manholas”desapareceu.
Procurou-se, por todo o lado, mas não se encontraram quaisquer sinais dele.
Passados meses, um pedinte que passava pela aldeia – o “Armando do pífaro” –, disse que tinha tido notícias do “Manholas”, que andaria lá para cima, para os lados de Lamego, de terra em terra.
Mais de trinta anos depois, já tinha morrido a mãe do “Manholas”e no lugar do casebre tinha sido construída a casa de um mestre-de-obras, que fizera fortuna em Lisboa e comprara o lugar, apareceu, na aldeia, um mendigo, descalço e com barba e cabelos descomunais.
Era um homem, já ancião, que não mostrou pressa e por ali se foi demorando.
Ia até à ribeira e fazia longos passeios, parecendo conhecer aqueles locais; movimentava-se, tão bem de noite, como de dia. Bebia água nos bons sítios e dormia sestas no fresco dos juncos e carriços dos lameiros da ribeira.
Comia alguma coisa, se lha davam.
Um dia, sentindo-se mal, foi a casa da tia Maria Antónia, que tão bem conhecera noutros tempos, pediu uma tesoura e cortou barbas e cabelos. Lavou a cara e fixou a velhota, bem nos olhos.
Ouviu-se, de imediato um grito:
- Meu Deus, mas tu és o “Manholas”!...
Quanto caiu em si, a velhota viu o homem estendido no chão, com os olhos esbugalhados.
Estava morto.
A planta dos pés era mais resistente e dura que sola; pelo menos era muito mais durável. A dele já aguentava, sem se gastar, havia mais de vinte anos. Movimentava-se tanto nos caminhos como fora deles, por montes e vales, sobre pedras ou no meio de tojos e balças.
As unhas nunca foram cortadas; os usos que tinham contra todo o tipo de obstáculos, evitavam o crescimento excessivo e serviam de protecção.
Porém, os pés do “Manholas” não andavam muito encardidos; no Inverno passava dias e dias dentro das regueiras dos caminhos, a chafurdar na lama e a atravessar ribeiros e canadas; no Verão deliciava-se nos regos da água, quando alguém andava a regar, ou nas longas caminhadas que fazia ao longo da ribeira, a apanhar peixes.
No dia das sortes, lá foi com os colegas que, como ele, faziam vinte anos, à inspecção militar e, como sempre, descalço. Todavia ninguém notou, nesse dia, falta de limpeza nos pés do Manuel dos Reis – Manholas –.
Os inspeccionadores perguntaram porque vinha descalço e o “Manholas”respondeu que não tinha sapatos, nem botas. Acrescentou que nunca usara tais coisas e não pensava habituar-se e, se não houvesse lá na tropa malta descalça, era melhor não o levarem para lá.
Apesar de apoucado de espírito – “poucochinho”, como diz o povo – o “Manholas”não era tolo. Conhecia todos os recantos, todos os buracos e grutas das redondezas da aldeia. Apanhava, à mão, todo o tipo de caça, peixes, cobras e lagartos, até se dizia que acamaradava com os lobos, com quem se entendia, perfeitamente.
Quando cruzava com alguém, não deixava de salvar – emitia alguns sons semelhantes a “vá com Deus”; porém andava, habitualmente por fora dos caminhos e gostava muito de ver, sem ser visto.
Nunca incomodou ninguém, tal como não era importunado por quem quer que fosse. Vivia com a mãe, de idade avançada, num casebre da aldeia.
Um dia, vá-se lá saber porquê, o “Manholas”desapareceu.
Procurou-se, por todo o lado, mas não se encontraram quaisquer sinais dele.
Passados meses, um pedinte que passava pela aldeia – o “Armando do pífaro” –, disse que tinha tido notícias do “Manholas”, que andaria lá para cima, para os lados de Lamego, de terra em terra.
Mais de trinta anos depois, já tinha morrido a mãe do “Manholas”e no lugar do casebre tinha sido construída a casa de um mestre-de-obras, que fizera fortuna em Lisboa e comprara o lugar, apareceu, na aldeia, um mendigo, descalço e com barba e cabelos descomunais.
Era um homem, já ancião, que não mostrou pressa e por ali se foi demorando.
Ia até à ribeira e fazia longos passeios, parecendo conhecer aqueles locais; movimentava-se, tão bem de noite, como de dia. Bebia água nos bons sítios e dormia sestas no fresco dos juncos e carriços dos lameiros da ribeira.
Comia alguma coisa, se lha davam.
Um dia, sentindo-se mal, foi a casa da tia Maria Antónia, que tão bem conhecera noutros tempos, pediu uma tesoura e cortou barbas e cabelos. Lavou a cara e fixou a velhota, bem nos olhos.
Ouviu-se, de imediato um grito:
- Meu Deus, mas tu és o “Manholas”!...
Quanto caiu em si, a velhota viu o homem estendido no chão, com os olhos esbugalhados.
Estava morto.
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