quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

As moedas dos franceses


As moedas dos franceses
Sentado, na horta de cima, nos Brejos, à sombra do limoeiro, junto da latada onde a videira dos cachos da tinta se embarrava por uma armação de barrotes, entre dois restos de troncos de velhas oliveiras, o tempo ia passando, sem eu dar por isso.

Corriam os dias de amena Primavera e era tempo de férias de Páscoa. Quinze dias sem aulas e apenas algumas obrigações de leitura, davam para fazer aquilo que tanto gostava: nada mais que pensar, dar largas à imaginação, ficcionar para lá da Lomba e da Ladeira do Brejo – limites do horizonte visual do local onde me encontrava. E naquele dia, cortando um céu límpido, levantava-se uma mancha mais escura, lá no sul, que o meu pai dizia ser o fumo das chaminés de Alferrarede.

Foi nesses tempos de verdadeiro lazer e despreocupada vivência que refinei gostos que jamais perdi: saborear a água da mina, ouvir os trinados dos diversos pássaros e sentir a aragem fresca e revitalizante, que soprava de noroeste, trazendo o ruido dos motores dos carros que subiam na estrada, lá na Lameira.

Andava a ler A Um Deus Desconhecido, de John Steinbeck. Sem ser um dos livros mais consagrados do autor, fora escrito no mesmo ano (1939) de umas das suas obras-primas As Vinhas da Ira, que juntamente com A Leste do Paraíso e outras obras levariam o autor à distinção com o Prémio Nobel de Literatura, em 1962 – ano em que se situa esta “história de gente simples” aqui relatada. Era pois, ao tempo, um dos autores da moda, que eu lia com avidez e satisfação.

Mas, naquele dia, aí por volta do meio-dia, o meu avô subia lá de baixo, da ribeira, onde regara, desde manhã, o batatal na horta do lado dos Brejos, com a represada do açude da Pleiça. Quase sem eu dar por ele, chegava-se, ali ao pé de mim, e, depois de breves momentos de contemplação para que eu levantasse os olhos do livro, deu a salvação e sentou-se a meu lado, aproveitando a sombra da latada.

As coisas estão-te a correr bem, lá pelo Mação e, segundo a conversa do teu pai, vamos ter cá na terra o primeiro professor e, com muita honra para mim, serás o primeiro a completar um curso, nesta aldeia. Ficará cumprida uma parte do meu sonho, embora me conste que os teus irmãos terão mais nalguma dificuldade que tu tens tido. 

Mas, se Deus quiser, também hão-de ter uma caneta mais leve que a minha – e mostra, com sinais de humidade nos olhos e alguma perturbação na voz, o cabo da enxada que trazia às costas-. Não é de minha inteira vontade que não venhas a ser doutor de leis, ou doutor médico, mas concordo com a vossa decisão, pois não somos ricos e parece que os teus irmãos vão precisar de outras ajudas.

Obrigado avô, é com esse bom senso que aprendi convosco – com o avô e com o meu pai – que decidimos traçar assim o caminho. Vou tirar o curso de professor, mas não vou parar. Gosto de estudar e continuarei a fazê-lo. Mas, ser doutor não será a minha primeira prioridade: organizar a minha vida da melhor maneira possível, seguindo algumas vidas onde se pode ganhar bem. 

Além disso ainda tenho de ir à tropa e agora a primeira coisa será atrasar essa ida o mais que puder. Para isso não posso interromper os estudos, mas daqui a dois anos não precisarei mais da vossa ajuda, deixando mais disponibilidades para a ajuda aos meus irmãos.

Essa foi a única razão porque aceitei que não sigas para a doutor. Mas compreendo e talvez ainda te veja lá chegar. Apego-me aos santos da minha devoção.

Veio, depois, aquilo que mais apreciava no meu avô e no meu pai – em muitas coisas tinham uma sintonia perfeita e nunca os ouvi alterarem a voz um para o outro -. Parecia que já tinham falado horas sobre coisas que ouviam pela primeira vez e tinham que decidir no momento. Penso que terei aprendido com eles a tomar decisões e rapidamente. 

Muitas vezes os revi, por trás de mim, quando tive que dizer sim, ou não. Um e outro, analfabetos, mas grandes mestres…

Este chão, onde estamos sentados, acabava, para lá do limoeiro. Um dia subia com o teu pai da horta de baixo, por um esconso de lousinhas que estava aqui neste lugar e parámos os dois, debaixo daquela oliveirita. 

Olhámos um para o outro e eu disse-lhe, apontando para a levada do chão de baixo: Continua-se a parede, de além até aqui, puxa-se o entulho de cima para baixo, até ficar tudo nivelado e depois, com terra das oliveiras, ali de fora da horta, enche-se até ao cimo. E está duplicado este chão de cima, onde plantaremos um limoeiro e, em riba da parede, aquelas videiras que dão os cachos da tinta, de que me tens falado. Fala a dois homens e os quatro acabaremos isto em menos de um mês.

O teu pai lembrou-me que era altura de comprar a da Ti’Estefânia, do lado de lá da nossa, pois a pedra para a parede estava lá a oferecer-se e chegara a altura de precisar dela. Tens razão, trata disso e se nós já oferecemos catorze e ela quer dezoito contos de réis, racha isso ao meio e fazemos isso.

Nós dávamos muito certo e fiquei à espera do resultado do negócio. Uns dois dias depois, no fim da ceia, o teu pai disse:

Acabamos de fazer negócio com a comadre Estefânia; ficou pelos quinze mil e podemos tomar posse quando quisermos. Penso que quando arrancarmos a pedra para o chão de cá, podemos deixar logo a que vamos precisar para ajeitar as duas hortas da que acabamos de comprar.

Vou agora dizer-te uma coisa que não deve envaidecer-te, mas deves recordar sempre: tenho reparado que és muito curioso e, certamente lembras-te do que acabei de te contar – terias aí oito, ou nove anos. Quando falávamos em negócios, ou combinávamos qualquer coisa, eras, todo, olhos e ouvidos. Eras perguntador e muito interessado e isso é muito bom. Sabes, é que me convenci que não te podíamos ensinar tudo o que precisavas de aprender e o teu caminho não era cá na terra, mas onde havia outras escolas – e contra tudo e a opinião de quase todos, decidi que os meus netos haviam de ser mais que eu e o teu pai fomos. 

Mas nunca te esqueças que o teu pai é um homem inteligente e esperto. Além disso muito honrado e equilibrado; foi por isso que lhe entreguei tudo e não estou arrependido. Nunca te esqueças que há coisas que agora aprendes com ele que te ajudarão toda a tua vida.

Mais uma coisa, antes de irmos jantar. 

Ali ao lado da horta de fora – essa parte, daqui para a saída foi herdada do Tio do Melhim. Já não o conheceste, mas era um velhote simpático – passava os dias atrás de um burrito, entre a casa onde morava e esta hortita aqui. A coisa melhor que cá tinha era a figueira regal – uma das melhores destas redondezas. Ainda estão ali os restos dela; não mais que uma pequena amostra. As videiras por riba da parede, aquela oliveira e o pessegueirito, aqui ao cimo, já foram todos plantados pelo teu pai e por mim.

Mas há uma coisa que talvez não saibas. Ao lado do caminho, pela parte de fora da horta, há uma cova, que é o que resta duma pequena represita, onde chegou a nascer água, mas acabou por secar. Mas toda esta zona, daqui até ao caminho para a Lameira, foi um souto, depois plantado com oliveiras; ainda há poucos anos se viam por aí umas cepas velhas com pequenas varas de castanheiro. 

Ali onde está a cova que eu disse ter sido uma represa, estava o maior castanheiro das redondezas – comia da horta e fora dela e, quem sabe, traria as raízes lá pelas águas que mais tarde apareceram na represa quando foi alargada a cova do castanheiro.

O Ti’Marques, assim se chamava o tio do Melhim, fartou-se de esgravatar lá no buraco que viria a dar lugar à represa, que chegou a ser um pequeno poço. Mas não procurava água. Procurava outra coisa mais valiosa, que acabou por nunca encontrar, porque ela não devia lá estar. No caminho até a casa, vou-te contar:

Quando os franceses, que invadiram Portugal, por cá passaram, roubaram muitas casas e sobretudo igrejas, de onde levaram muitas moedas de ouro – normalmente libras -. Para evitar as pilhagens, as casas mais abastadas guardavam os bens mais valiosos fora das casas, enterrados nas propriedades deles ou de outras pessoas. 

Cá na terra não havia grandes fortunas, mas houve muitas coisas enterradas; eu ainda enterrei, lá na tapada, uma pequena panela com dois cordões, uns pares de brincos e uns anéis, mais uns broches e umas correntes de ouro; as pessoas ficavam só com pequenas coisas e se fossem interrogadas, ou assaltadas, diziam que um soldado francês lhes tinha roubado tudo.

Havia também, entre os franceses, baús enterrados para que, se fossem assaltados, ou tivessem que mudar de acampamento por qualquer sobressalto, deixassem os resultados das pilhagens guardados. Dizia-se que à volta daquele castanheiro tinha sido montada a tenda principal dos franceses e foi lá, por baixo das raízes da árvore, que esconderam uma caixa cheia de moedas valiosas que quando foram obrigados a fugir, pelas tropas de Abrantes, não tiveram tempo de desenterrar.

Durante anos foram vários os que, durante o dia, ou a coberto da escuridão, ali gastaram horas a escavar. O ti’Marques foi um deles, pois era o dono do local. Apesar disso não constou nunca que tivesse encontrado nada; nem nunca se lhe viu nada de anormal. 

Histórias que vão passando de boca em boca e, umas com mais verdade, outras com mais fantasia, acabam por virar lendas.


Esta é uma das muitas recordações que guardo do meu avô. Faleceu, serenamente, aos oitenta e muitos anos de idade, no dia do meu casamento. 

Que descanse em paz, como merecem os homens bons e justos.