Depois da hora da sesta – que para ele se estendia por todo o ano – descia lá do Cimo de Casal e ia sentar-se no poial da Fonte Velha, aproveitando a sombra da ramagem e fetos, que lhe serviam de cobertura.
De tempos a tempos, levantava-se, chegava-se à bica e, com a mão em concha, bebia uns golos de água.
Depois, voltava a sentar-se, com a cabeça entre as mãos, mal dando pelas mulheres que chegavam, davam a salvação e saíam com os cântaros cheios, à cabeça.
Às vezes respondia, aos cumprimentos, já depois de ter ficado sozinho.
Os monólogos ininteligíveis que desenvolvia, eram verdadeiras cenas de representação, não difíceis de perceber, mesmo por quem nunca esteve nas trincheiras, ou nunca foi a uma guerra: quadros de verdadeiro terror, ilustrativos de um quotidiano dos tempos infindáveis, passados na frente de batalha, sob um terror indescritível e o receio constante que chegassem os alemães, ou viesse alguma coisa pelo ar que espalhasse chumbo, ou gases.
Depois serenava, exausto, e como que em transe, reparava que o sol já lhe dava nos pés – sinal de que a tarde já ia adiantada -.
Levantava-se, ia de novo à bica da fonte, despedia-se, mesmo que estivesse sozinho, e saía, pelo caminho abaixo, até à rua das Oliveiras da Vinha e seguia até chegar às Casolas e atingir o largo das lojas.
Na maior parte dos dias de semana encontrava o largo ermo e as lojas fechadas.
Abririam mais junto ao pôr-do-sol, quando as pessoas começassem a voltar das hortas.
Ao canto do largo, debaixo da cabana do ti’António Lindo, sentava-se junto da pedra que os pedintes usavam como mesa de petiscos e os da terra para bater a sueca ou jogar o dominó.
Esperava que viesse alguém para dar dois dedos de conversa e saber as novidades da terra, que pouco lhe interessariam, mas era o que havia.
À abertura da taberna do ti’Manel era, usualmente um dos primeiros a entrar.
Bebia o seu pirolito, oferecia a quem estivesse e fazia sala até pouco depois do sol desaparecer.
Com as despedidas para todos, voltava pela fonte, em sentido contrário, e chegava ao Cimo de Casal ainda com luz do dia.
A prima Cremilde já o esperava, com a tijela de sopa, uma peça de fruta e um pequeno naco de pão.
Um púcaro de água e quatro comprimidos fechavam a refeição e ainda lusco-fusco já a prima lhe ajeitava a roupa da cama e se despedia, dirigindo-se à cozinha onde arrumava tudo, antes de se recolher ao seu quarto e dormir.
Raramente acendiam a lareira para se aquecerem e, nos dias mais frios duas botijas de água quente criavam o quentinho agradável de que o primo Zé tanto gostava.
Era a sua única extravagância, coitadinho… acrescentava a velhota Cremilde, solteirona e só no mundo, além do primo a que só não faria mais, se não pudesse.
O meu primo tem de tomar todos os dias, de manhã e à noite, quatro remédios e, se um dia se esquecer, arrisca-se a não mais se lembrar, uma vez que pode não acordar na manhã do outro dia – dizia, muito senhora de si a velha Cremilde -, acrescentando que quer ela, quer ele, só se tinham um ao outro.
Em nós a família acaba, pois os primos afastados, que temos, nem nos conhecem – nunca sequer vieram ver o José desde que veio de França.
Passados mais de dez anos desde a chegada do tio José, vindo de França, pouco se sabia sobre a vida que levara desde que, cinquenta anos antes, saíra da terra para ir assentar praça em Abrantes, sair dali para Portalegre e ir acabar em França, na Grande Guerra, incorporado no Corpo Expedicionário Português.
Calculava-se que não tivesse morrido, pois nenhuma informação nesse sentido fora recebida pela família.
Chegou um dia, num carro de praça de Alferrarede, com um pequeno baú e duas malitas.
Na loja, anunciou quem era e acabou por saber que todos os familiares directos tinham morrido e apenas a Cremilde, sua prima direita, estava viva e morava lá no Cimo de Casal, na casa que fora dos pais do José.
Enquanto alguém foi chamar a prima, não disse practicamente mais nada.
Conversas de circunstância, cumprimentos deste ou daquele e acabou sabendo que do seu tempo poucos restavam na terra, pois a Cremilde, com mais uns três anos que ele, era das pessoas mais idosas da aldeia.
Chegada a velha Cremilde, seguiram-se abraços e mais abraços até que, seguidos de dois portadores a quem o Tio José pediu que levassem as malas, seguiram para o Cimo de Casal, onde morava a prima e onde iria instalar-se o primo.
Sabes José, nunca casei, não tenho ninguém e agora que volto a ter o meu primo, não se pensa em mais nada: ficas no quarto onde nasceste e sempre estiveram teus pais e eu no outro, do lado.
Nos dias seguintes, depois de se inteirar do que o primo queria fazer, o que queria comer, que roupas trazia e que cuidados precisavam, falaram sobre coisas da terra e a Cremilde acabou por perceber que o primo via mal, tinha acentuada dificuldade em ouvir e mostrava bastante falta de memória.
Quanto a saúde soube que tomava todos os dias quatro remédios de manhã e outros tantos à noite, mas só precisaria de ir consultar o médico no próximo mês, pois tinha feito exames poucos dias antes.
Na altura própria chamaria um carro de praça para ir ao médico que, já lhe tinham recomendado: o dr. Santos Neves, de Abrantes.
Aproveitaria para ao mesmo tempo ir ao Banco Ultramarino, onde deveria ir uma vez por mês, tratar da sua vida e dinheiros.
O certo é que, por onde andou, aprendeu a ler e escrever, criou modos que a vida até aí lhe não proporcionara e era respeitador e cortês para todos, quando a disposição e lucidez lhe permitiam.
Em períodos de melancolia e excitação era mais difícil no trato e por isso pediu à prima que lhe desculpasse certos dias de mau humor e nervosismo.
Eu te saberei recompensar pelos teus cuidados, prima!... Dizia-lhe o José quando se sentia pior.
A prima nunca teve grande curiosidade, nem se meteu nos assuntos do primo, mas espicaçada pelos parentes, foi levada a procurar o esconderijo do velhote e além do malão de madeira que estava debaixo da cama, começou a seguir os passos do primo quando ia baixar-se, para as necessidades, num cortelho, atrás da capoeira das galinhas.
Um dia ouviu mexer numa caixa lá para trás, mas fazendo uma busca por lá não descobriu nada de anormal. Continuou à coca.
Passados uns tempos, o velho Zé teve um problema respiratório e ficou internado duas semanas no hospital de Abrantes.
Numa visita da prima, segredou-lhe: Lá atrás das galinhas, por baixo da tábua, onde me vou baixar, há duas pedras que tapam um buraco na parede.
Afasta uma das pedras, mete a mão no buraco e tira a caixa de folha que lá está.
Tira seis notas do maço que está lá dentro, volta a fechar a caixa e coloca-a no mesmo sítio.
Dá-as ao Abílio que me vem ver todas as semanas, pedindo que mas traga, quando cá voltar para me ver. E, bico calado, que eu cá saberei o destino a dar-lhe.
Na próxima vez que foi ao hospital o Abílio deu as seis notas de mil escudos ao velhote e ouviu o seu agradecimento, sem comentários.
Mas o portador ficou com a pulga atrás da orelha: para que quereria o diabo do velho tanto dinheiro, ali numa cama de hospital?
Ao tempo, seis contos de réis era muito dinheiro!...
Quando saiu do hospital, chamou o Chefe e uma enfermeira que sempre o tratou e deu-lhes um conto de réis, para dividirem como entendessem e poderem tomar um café.
Quando a ambulância o trazia para casa, pediu ao motorista que passasse no quartel dos bombeiros, pois queria falar com o Chefe.
Lá no quartel entregou ao Chefe uma nota de um conto de réis, dizendo: uma pequena prenda para os bombeiros que tão simpáticos têm sido para mim.
Chegado à terra, chamou a Cremilde e disse-lhe:
Quero que compres uma saia, uma blusa, uma mantilha fina, uns sapatos de pelica, um lenço enramado e outra roupa que precises. Aqui tens dois contos de réis para isso e quero que com eles compres o melhor que encontrares. Se não chegar diz-me!...
Valha-te Deus, homem, então por isso tudo não darei mais de uns duzentos mil réis; estás a dar-me dinheiro a mais e não te incomodes que também tenho umas pequenas economias.
Faz o que te digo e guarda o que te sobrar.
Ah! Enquanto aqui estiver não quero que gastes um vintém do teu dinheiro; só tens que dizer-me tudo o que precisas.
Outra coisa: Vais dizer-me quem são as pessoas mais necessitadas da terra, mas que tratem bem mulheres e filhos, não se embebedem todos os dias e sejam amigos de prestar uma ajuda, quando ela for precisa.
Tens tempo de pensar bem no assunto, pois estamos nos Santos e eu preciso dos nomes dessa gente no Natal. Até lá ninguém pode saber de nada.
Dá estes dois contos ao Ti’Manel Cravo, para gastos da igreja e para dar ao sr. padre em pagamento de missas, rezadas por nossa intenção. E sabe-me se o sr. padre tem dificuldades e se o Mestre precisa de alguma coisa na casa da escola.
Providencia, também, para que esteja sempre preparada a roupa que hei-de levar, na última viagem até ao Outeiro de S. Pedro, lá no Penhascoso.
Se eu for antes de ti, tudo o que tenho é para ti. Se for depois, eu saberei distribui-lo.
Até lá, é conveniente que todos pensem que tenho só a reforma e que me lembrem, depois, como… O GASEADO DA FRANÇA…