domingo, 29 de junho de 2014

S. Barnabé


O Ti’Cavaco saía, alta madrugada, montado no macho, estrada de Almodôvar a baixo e, antes de entrar na vila, desviava à direita, embrenhando-se nos contrafortes da Serra do Caldeirão, à procura de mel, aguardente de medronho e o mais que aparecesse.

Passava entre as barragens de Monte dos Clérigos e Boavista, até às nascentes do rio Mira, do Arade e da Ribeira de Choupana, que também ali começam.

Entre as aldeias de Cansados e Felizes, circundava, pelo norte, as alturas da serra, onde está o talefe dos 577 metros, e tomava o caminho para S. Barnabé, onde chegava por volta do meio-dia.

Ia direito a casa do Ti’Chico da Azenha, em procura da melhor medronheira que alguma vez lhe passou pelo estreito. 

Com ele havia de ganhar uns bons dinheiros, mas o que mais lhe interessava era ter o melhor para dispensar aos clientes e amigos especiais. 

Passados quase quarenta anos tenho ainda, na minha casa, umas duas garrafas desse néctar, adquirido a cinco mil réis o litro, ou vinte e dois escudos e cinquenta centavos os cinco litros. 

Continua, ao fim de todos estes anos, um medronho divinal.

O Ti’Chico colhia o medronho, quando já pendia, muito bem maduro. 

Tinha duas talhas de uns dez almudes cada, onde preparava as infusões. 

A água era cuidadosamente apanhada, de manhã cedo, numa mina distante de tudo e certamente conhecida de muito poucos. 

As raízes das torgas, arrancadas no fim do inverno e secas, à sombra, nos cómodos da burra, eram o combustível ideal para manter constante o calor que aquecia a caldeira do velho alambique de cobre.

O engenho, era formado, além da caldeira, calafetada em pedras e cal, sobre uma fornalha com acesso por uma pequena porta, onde ardia a fogueira que fazia ferver a infusão. 

Do capelo saía o cano, em serpentina, que mergulhado no banho cheio de água fria, condensava os vapores, transformando-os na aguardente de medronho que caía para um cântaro, de barro, de uns vinte litros. 

Cada caldeira dava uns dois cântaros, da boa, e mais um, da mais fraca.

O Ti´Chico descrevia, com detalhe, a forma de trabalhar, mas… os segredos da colheita dos frutos, a recolha da água, o tempo de infusão, a apanha e tratamento das cepas das torgas e a temperatura a que pertencia guardar o néctar de príncipes e reis, como lhe chamava, só uma vez seriam revelados – cada pai passava o segredo ao filho mais velho, com a entrega de um tubo de cana grossa, fechado com uma rolha de cortiça e selado com sangue.

Contava o velhote: 

Um dia, há centos de anos, andando à caça, pelos altos da Serra, o Senhor Rei D. Duarte – aquele que tinha um irmão para lá de Lagos – matou um enorme javali e, tão contente ficou e viu os criados, que decretou que aquele lugar se passasse a chamar Felizes. 

E ainda assim se chama a aldeia.

Levada, por caminhos difíceis, a imponente presa, de tão pesada que era, deixava exaustos todos os serviçais, cujo chefe pediu uma pausa a sua majestade. 

O senhor D. Duarte autorizou a paragem e ordenou que ao local se passasse a chamar Cansados.

Seguindo dali, por um dos mais belos vales do Caldeirão, deu a comitiva com uma azenha, onde apenas vivia um velho moleiro ermitão que, ao ver tão importante figura, lhe ofereceu uma pichorra de medronheira, preparada por ele próprio e acabada de fazer.

El-Rei D. Duarte, sentado ali, naquele banquinho de azinho, encostado ao alambique, aproveitou o calorzinho das brasas de Torga e provou a nossa medronheira, que nunca mais deixou que faltasse nas festas da sua corte.

A esta azenha chamou o meu tetra … não sei quantos … avô, engenho d’El Rei, nome que nunca perdeu.

O santo do dia era Barnabé e, também, esse o nome do meu antepassado que recebeu Sua Majestade, que, ali mesmo, mandou que o lugar se chamasse, para sempre, S. Barnabé.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

O gaseado da França


Depois da hora da sesta – que para ele se estendia por todo o ano – descia lá do Cimo de Casal e ia sentar-se no poial da Fonte Velha, aproveitando a sombra da ramagem e fetos, que lhe serviam de cobertura.

De tempos a tempos, levantava-se, chegava-se à bica e, com a mão em concha, bebia uns golos de água. 

Depois, voltava a sentar-se, com a cabeça entre as mãos, mal dando pelas mulheres que chegavam, davam a salvação e saíam com os cântaros cheios, à cabeça. 

Às vezes respondia, aos cumprimentos, já depois de ter ficado sozinho.

Os monólogos ininteligíveis que desenvolvia, eram verdadeiras cenas de representação, não difíceis de perceber, mesmo por quem nunca esteve nas trincheiras, ou nunca foi a uma guerra: quadros de verdadeiro terror, ilustrativos de um quotidiano dos tempos infindáveis, passados na frente de batalha, sob um terror indescritível e o receio constante que chegassem os alemães, ou viesse alguma coisa pelo ar que espalhasse chumbo, ou gases. 

Depois serenava, exausto, e como que em transe, reparava que o sol já lhe dava nos pés – sinal de que a tarde já ia adiantada -.

Levantava-se, ia de novo à bica da fonte, despedia-se, mesmo que estivesse sozinho, e saía, pelo caminho abaixo, até à rua das Oliveiras da Vinha e seguia até chegar às Casolas e atingir o largo das lojas. 

Na maior parte dos dias de semana encontrava o largo ermo e as lojas fechadas. 

Abririam mais junto ao pôr-do-sol, quando as pessoas começassem a voltar das hortas.

Ao canto do largo, debaixo da cabana do ti’António Lindo, sentava-se junto da pedra que os pedintes usavam como mesa de petiscos e os da terra para bater a sueca ou jogar o dominó. 

Esperava que viesse alguém para dar dois dedos de conversa e saber as novidades da terra, que pouco lhe interessariam, mas era o que havia.

À abertura da taberna do ti’Manel era, usualmente um dos primeiros a entrar. 

Bebia o seu pirolito, oferecia a quem estivesse e fazia sala até pouco depois do sol desaparecer. 

Com as despedidas para todos, voltava pela fonte, em sentido contrário, e chegava ao Cimo de Casal ainda com luz do dia.

A prima Cremilde já o esperava, com a tijela de sopa, uma peça de fruta e um pequeno naco de pão. 

Um púcaro de água e quatro comprimidos fechavam a refeição e ainda lusco-fusco já a prima lhe ajeitava a roupa da cama e se despedia, dirigindo-se à cozinha onde arrumava tudo, antes de se recolher ao seu quarto e dormir.

Raramente acendiam a lareira para se aquecerem e, nos dias mais frios duas botijas de água quente criavam o quentinho agradável de que o primo Zé tanto gostava. 

Era a sua única extravagância, coitadinho… acrescentava a velhota Cremilde, solteirona e só no mundo, além do primo a que só não faria mais, se não pudesse.

O meu primo tem de tomar todos os dias, de manhã e à noite, quatro remédios e, se um dia se esquecer, arrisca-se a não mais se lembrar, uma vez que pode não acordar na manhã do outro dia – dizia, muito senhora de si a velha Cremilde -, acrescentando que quer ela, quer ele, só se tinham um ao outro. 

Em nós a família acaba, pois os primos afastados, que temos, nem nos conhecem – nunca sequer vieram ver o José desde que veio de França.

Passados mais de dez anos desde a chegada do tio José, vindo de França, pouco se sabia sobre a vida que levara desde que, cinquenta anos antes, saíra da terra para ir assentar praça em Abrantes, sair dali para Portalegre e ir acabar em França, na Grande Guerra, incorporado no Corpo Expedicionário Português. 

Calculava-se que não tivesse morrido, pois nenhuma informação nesse sentido fora recebida pela família.

Chegou um dia, num carro de praça de Alferrarede, com um pequeno baú e duas malitas. 

Na loja, anunciou quem era e acabou por saber que todos os familiares directos tinham morrido e apenas a Cremilde, sua prima direita, estava viva e morava lá no Cimo de Casal, na casa que fora dos pais do José.

Enquanto alguém foi chamar a prima, não disse practicamente mais nada. 

Conversas de circunstância, cumprimentos deste ou daquele e acabou sabendo que do seu tempo poucos restavam na terra, pois a Cremilde, com mais uns três anos que ele, era das pessoas mais idosas da aldeia.

Chegada a velha Cremilde, seguiram-se abraços e mais abraços até que, seguidos de dois portadores a quem o Tio José pediu que levassem as malas, seguiram para o Cimo de Casal, onde morava a prima e onde iria instalar-se o primo. 

Sabes José, nunca casei, não tenho ninguém e agora que volto a ter o meu primo, não se pensa em mais nada: ficas no quarto onde nasceste e sempre estiveram teus pais e eu no outro, do lado.

Nos dias seguintes, depois de se inteirar do que o primo queria fazer, o que queria comer, que roupas trazia e que cuidados precisavam, falaram sobre coisas da terra e a Cremilde acabou por perceber que o primo via mal, tinha acentuada dificuldade em ouvir e mostrava bastante falta de memória. 

Quanto a saúde soube que tomava todos os dias quatro remédios de manhã e outros tantos à noite, mas só precisaria de ir consultar o médico no próximo mês, pois tinha feito exames poucos dias antes. 

Na altura própria chamaria um carro de praça para ir ao médico que, já lhe tinham recomendado: o dr. Santos Neves, de Abrantes. 

Aproveitaria para ao mesmo tempo ir ao Banco Ultramarino, onde deveria ir uma vez por mês, tratar da sua vida e dinheiros.

O certo é que, por onde andou, aprendeu a ler e escrever, criou modos que a vida até aí lhe não proporcionara e era respeitador e cortês para todos, quando a disposição e lucidez lhe permitiam. 

Em períodos de melancolia e excitação era mais difícil no trato e por isso pediu à prima que lhe desculpasse certos dias de mau humor e nervosismo. 

Eu te saberei recompensar pelos teus cuidados, prima!... Dizia-lhe o José quando se sentia pior.

A prima nunca teve grande curiosidade, nem se meteu nos assuntos do primo, mas espicaçada pelos parentes, foi levada a procurar o esconderijo do velhote e além do malão de madeira que estava debaixo da cama, começou a seguir os passos do primo quando ia baixar-se, para as necessidades, num cortelho, atrás da capoeira das galinhas. 

Um dia ouviu mexer numa caixa lá para trás, mas fazendo uma busca por lá não descobriu nada de anormal. Continuou à coca.

Passados uns tempos, o velho Zé teve um problema respiratório e ficou internado duas semanas no hospital de Abrantes. 

Numa visita da prima, segredou-lhe: Lá atrás das galinhas, por baixo da tábua, onde me vou baixar, há duas pedras que tapam um buraco na parede. 

Afasta uma das pedras, mete a mão no buraco e tira a caixa de folha que lá está. 

Tira seis notas do maço que está lá dentro, volta a fechar a caixa e coloca-a no mesmo sítio. 

Dá-as ao Abílio que me vem ver todas as semanas, pedindo que mas traga, quando cá voltar para me ver. E, bico calado, que eu cá saberei o destino a dar-lhe.

Na próxima vez que foi ao hospital o Abílio deu as seis notas de mil escudos ao velhote e ouviu o seu agradecimento, sem comentários. 

Mas o portador ficou com a pulga atrás da orelha: para que quereria o diabo do velho tanto dinheiro, ali numa cama de hospital? 

Ao tempo, seis contos de réis era muito dinheiro!... 

Quando saiu do hospital, chamou o Chefe e uma enfermeira que sempre o tratou e deu-lhes um conto de réis, para dividirem como entendessem e poderem tomar um café.

Quando a ambulância o trazia para casa, pediu ao motorista que passasse no quartel dos bombeiros, pois queria falar com o Chefe. 

Lá no quartel entregou ao Chefe uma nota de um conto de réis, dizendo: uma pequena prenda para os bombeiros que tão simpáticos têm sido para mim.

Chegado à terra, chamou a Cremilde e disse-lhe: 

Quero que compres uma saia, uma blusa, uma mantilha fina, uns sapatos de pelica, um lenço enramado e outra roupa que precises. Aqui tens dois contos de réis para isso e quero que com eles compres o melhor que encontrares. Se não chegar diz-me!... 

Valha-te Deus, homem, então por isso tudo não darei mais de uns duzentos mil réis; estás a dar-me dinheiro a mais e não te incomodes que também tenho umas pequenas economias. 

Faz o que te digo e guarda o que te sobrar.

Ah! Enquanto aqui estiver não quero que gastes um vintém do teu dinheiro; só tens que dizer-me tudo o que precisas.

Outra coisa: Vais dizer-me quem são as pessoas mais necessitadas da terra, mas que tratem bem mulheres e filhos, não se embebedem todos os dias e sejam amigos de prestar uma ajuda, quando ela for precisa. 

Tens tempo de pensar bem no assunto, pois estamos nos Santos e eu preciso dos nomes dessa gente no Natal. Até lá ninguém pode saber de nada. 

Dá estes dois contos ao Ti’Manel Cravo, para gastos da igreja e para dar ao sr. padre em pagamento de missas, rezadas por nossa intenção. E sabe-me se o sr. padre tem dificuldades e se o Mestre precisa de alguma coisa na casa da escola. 

Providencia, também, para que esteja sempre preparada a roupa que hei-de levar, na última viagem até ao Outeiro de S. Pedro, lá no Penhascoso.

Se eu for antes de ti, tudo o que tenho é para ti. Se for depois, eu saberei distribui-lo. 

Até lá, é conveniente que todos pensem que tenho só a reforma e que me lembrem, depois, como… O GASEADO DA FRANÇA…

domingo, 15 de junho de 2014

Festa do Sr. dos Aflitos


Durante uns quarenta anos não se fizeram as festas do Sr. dos Aflitos lá na Serra. 

Em meados dos anos setenta foi retomada a tradição e as festas voltaram a ter lugar, anualmente, no mês de Agosto.

Antigamente os festejos eram essencialmente religiosos: havia sessões preparatórias na capela, ensaiavam-se alguns cânticos, faziam-se as confissões de quem desejasse, enfeitava-se a capela, preparavam-se todos os andores, vestes, guiões e paramentos e organizava-se a recepção ao Santíssimo Sacramento que vinha da freguesia uma vez que na capela não havia sacrário.

Nos tempos modernos verificam-se, como de costume alfaias e paramentos, mas também a iluminação eléctrica e sonora e expõe-se o Santíssimo, pois na capela já está, permanentemente, a hóstia consagrada.

A par das cerimónias religiosas a parte civil das festas sofreu profundas alterações: nos dias que correm realizam-se os tradicionais bailaricos, manifestações artísticas, cívicas e culturais, sem esquecer fornecimentos de comes e bebes e venda de lugares para assistência aos saraus, bailaricos e actuações das atracções artísticas, sejam elas artistas de renome, conjuntos musicais, ou actividades folclóricas.

As comissões de festas são responsáveis pela “mise-en-scène” de toda uma máquina que além de defender o nome da Terra, faz todos os possíveis por superar as expectativas do povo. 

Todos querem fazer melhor que os antecessores e no final apresentar maiores proveitos que revertem a favor das obras ou da manutenção da igreja. 

Há três coisas que pesam muito em qualquer comissão: o fogo, a música e o arraial. 

Do fogo esperam-se alvoradas fortes, nos três dias das festas, abertura e fecho da procissão, animação da venda de fogaças e oferendas e uma boa sessão de fogo-preso no auge do arraial do dia principal. 

Na música, além da Banda Filarmónica que percorre as ruas da terra, durante o peditório, no domingo de manhã e acompanha a procissão à tarde, há uma aparelhagem sonora que difunde música, com muitos decibéis e abrilhanta o baile com discos de música de dança, quando não estão em acção os conjuntos musicais contratados, ou, muito ao gosto de todos, um acordeonista de renome. 

Quanto ao arraial há que organizar as movimentações de pessoas e viaturas, os locais de estacionamento, a procissão, o leilão das fogaças e a organização dentro do recinto – balcões de comes e bebes, mesas para assistência, funcionamento e entradas no dancing, representações cénicas, organização de concursos e actividades lúdicas, competições, jogos tradicionais, etc..

A agitação na aldeia que durante décadas se resumiu aos casamentos e respectivos descantes, bailaricos nas tardes e serões de domingos, malhas e matanças, voltou a ter o seu ponto alto nas festas do Senhor dos Aflitos.

Graças à criação e desempenho, a todos os títulos louvável, da Associação Recreativa e Cultural, tem-se tornado factor de relevância a organização do Presépio Vivo da Serra, já premiado, localmente e fonte de atracção regional.

As direcções presididas por um conterrâneo com provas dadas no campo Cultural e Desportivo do Grupo do BES, em Lisboa e o aporte de gente que se tem estabelecido na aldeia, têm elevado o nome da Serra ao nível das melhores aldeias do concelho de Mação. 

Bem-hajam todos os que roubam ao seu sossego e tempos livres as horas precisas para pôr de pé uma obra que, em poucas décadas atingiu os níveis que todos lhe reconhecem. 

Será injusto referir apenas um nome, mas tenho a certeza que a humildade do Manel, é suficientemente grande para que todos os que têm, como ele, dado o melhor do seu tempo e esforço em benefício da Associação, nela se sintam representados.

O Dr. Manuel de Jesus Serras é uma força da natureza. 

Não teve, como nós, berço de ouro. Nunca foi a lado nenhum pelo nome ou apelidos. Não se deixou vencer nas batalhas que travou contra a morte. Nunca recuou perante os degraus que a vida lhe apresentou e, com firmeza e determinação, subiu-os a pulso. 

Nunca ficou no meio, foi até lá ao cimo. 

É um homem que honra a nossa Terra e que todos devem ajudar, acompanhar e tomar como exemplo. 

Com um abraço e desculpas por alguma inconfidência, pedimos a Deus que lhe dê saúde e tudo do melhor que é justo reservar para HOMENS BONS…

domingo, 8 de junho de 2014

Histórias de Verão


Comam nêsperas, laranjas e morangos!... 

Ah! As laranjas já estão secas, mas ainda são bem boas; as ameixas e os figos lampos são melhores. 

Os cachos e as maçãs camoesas é que devem ser poupados, pois são a base do vinho, quando chegar a altura dele!...

Assim falava, meio a gritar, meio em surdina, o Ti’ Zé, lá do chão de cima, debaixo da laranjeira torta, regando a tancada da manhã, nas leiras de feijão de vages, até aos pés da “doce-lima”, no canto da horta da macieira de pero doce. 

E, como não obteve resposta, continuou o monólogo: 

“Diabos cubram de raios e coriscos os amaldiçoados dos melros que vão vindimando os cachos mais amarelinhos e luzidios das parreiras do cimo das paredes!... 

Ainda nem os cães e gatos lhes pegam e já esses demónios não encontram mais nada que comer...

Comam amoras que não faltam nas balças!

E continuava: 

Abençoados cata-piolhos e carricitas que por aí voam e, coitados, nem biquito têm para conseguir comer as uvas... 

Depois, elevando a voz, quase gritava para os moços que sentados na erva ao fundo da horta iam preparando as costelas para armar aos taralhões: 

“Olhem, por cada um desses estupores pretos, de bico amarelo, que nunca se cansam de comer cachos, hei-de dar-vos um prémio... 

Essa raça do demo, bem podia ir para outro lado, mas das nossas paredes veem o vale todo e quando levantam voo até têm de poupar as forças, chegando lá abaixo à ribeira quase sem dar às asas. 

Nem cantar sabem, os malditos”. 

E continuava: 

“No último inverno, quando além do rabisco das videiras e das azeitonas quase não tinham que comer, armei umas boízes além nas estevas da ribeira e ainda filei dois belos melros de bico amarelo. 

Tinham a moela cheia de bagos de azeitonas. 

Mas há aí tantos que o prejuízo é o mesmo, com eles ou sem eles.

Vocês é que podem dar-lhes uma avançada; Se, em cada dia, apanharem três ou quatro, cada um, no fim das férias terão mais de duas dúzias de bicos dessa praga. 

O prémio será quatro dúzias de costelas novas, quando for ao mercado e encontrar o Ti’Machado, da Carregueira”. 

Entretanto os rapazes viram os primeiros raios de sol no cabeço em frente, por cima da rama dos pinheiros. 

Em baixo, pelo vale, uma maresia fechada, tapava toda a paisagem e ainda nem os passaritos tinham começado a bulir. 

Mas, antes que o calor do sol desfizesse toda aquela névoa, era preciso ir espalhar as quatro dúzias de costelas, desde o cimo dos Brejos até às hortas da Cabeça Gorda. 

Levariam uma boa hora a armar todo o arsenal e regressar ao ponto de partida, onde esperariam a altura de fazer a primeira caçada. 

O pequeno brejo estava bem emoldurado de pinhal que em conjunto com o arvoredo das hortas e as árvores de fruto, com seus néctares, atraíam todo o tipo de passarada, incluindo os taralhões – alvo da caçada dos rapazes. 

Era uma verdadeira babilónia, aquela luta pela vida: esvoaçavam, chilreavam, saltitavam, debicavam na terra húmida e confluíam para as árvores onde, muitos dos passaritos, fariam o voo final em direcção à agúdia da costela, cujas asas brilhavam ao sol, acabado de chegar. 

De facto, num pequeno rapeiro de terra limpa e ainda fresca, tinha sido colocada, e devidamente camuflada, uma costela de arame, com um agudieiro central que prendia um dos braços e se fecharia sobre o outro logo que accionado o suporte da agúdia. Entre os dois braços curvos ficaria preso, e apertado, o pescoço do passarito, que, muitas vezes, nem chegava a engolir a formiga de asas – agúdia -. 

Na passagem seguinte, tiraram os passaritos que prendiam, pelo bico, no arame pendurado à cintura. 

E, na primeira caçada, nem um único melro figurava entre os vinte pássaros apanhados pelas costelas. 

Puseram novas agúdias nas costelas que armaram, outra vez, no mesmo local. 

Nos intervalos entre as duas ou três caçadas, iam falando com as pessoas que se espalhavam pelas hortas, nas primeiras horas da manhã. 

De vez em quando lá vinha um ralhete porque tinham pisado alguma hortaliça, ou camalhão da rega, ou, muitas vezes, só para meterem conversa connosco, saber como ia a caçada, ou alguma pergunta por alguém que andasse na área da nossa acção. 

Uma das pessoas que andava, habitualmente, na horta do Vale das Lousinhas era o Ti´Manel. 

Era velho, pouco sociável, raramente se misturava num grupo para beber um copo nas tabernas, nada dizia além da salvação e sempre o vimos como o sacristão da igreja. 

Foi casar à Louriceira com a Ti’ Maria Rosa, adoentada e pouco saída de casa. Nunca tiveram filhos. Devia ser o homem que tinha mais colmeias e talvez fosse, também, o que comia mais coelhos bravos. 

Tinha sempre um cãozito e quando ao lusco-fusco saía com a saca às costas, para a Ribeira, ou horta do Cabeço Seixo, ninguém duvidava que levasse os ferros para armar. 

Seria, pois, natural que não apreciasse muito que a garotada vasculhasse as suas hortas, quer armando as costelas, dando avanço nas romãs e diospiros e aproveitando as canas junto do ribeiro para cortar um pífaro, um canudo para agúdias, ou qualquer outro brinquedo. 

Havia poucas canas na terra e embora não usasse as dele, para empar os feijoeiros das vages, o ti’Manel não queria que as cortassem. 

Nos Santos era uma das casas por onde a garotada gostava de começar a volta, pedindo os bolinhos. 

De uma mão cheia de passas, a uma romã, passando por uma maçã, distinguia-se sempre a Ti’Maria Rosa. 

E quando mandava algum garoto fazer-lhe um recado, também dava sempre as passas, o bolinho, ou a romã do costume. Mas uma coisa era certa: poucos se poderiam gabar de ter dado um passo, da porta de casa para dentro. 

É verdade que nunca tendo filhos, eram os mais “padrinhos” da terra e também os mais “presenteiros”. 

Dizia-se que o Ti’Manel tinha achado muitas coisas na horta do Vale das Lousinhas e que numa espécie de escavação que ninguém percebia com que finalidade fora feita e onde ele cavava de vez em quando, até pepitas de ouro já tinha encontrado. 

Também na reparação das paredes da capela teria encontrado uma caixa com um bom punhado de moedas – libras. 

O ourives que quando visitava a terra nunca deixava para trás a casa do ti’Manel Rosa, nunca se descoseu com o que lá vendia ou o que lá lhe era mostrado. Quando se fazia vir o assunto à baila, lá na taberna, onde comia qualquer coisa, dizia: 

“Como todos sabem não nos compete a nós, ourives, revelar o que se passa com os negócios dos nossos fregueses. Não quero dizer que não tenhamos já sido chamados a revelar esconderijos, a avaliar peças, ou a ajudar as autoridades a esclarecer o fruto de determinados roubos que às vezes nos querem vender. 

Como nada disto se passa, nada tenho a dizer.” 



Foi assim, sem surpresas, que após a morte do ti’Manel que sobreviveu uma boa dúzia de anos à mulher, foram encontradas muitas peças de ouro e nada menos que uma dúzia de libras de ouro, numa caixa que estava metida num buraco da casa de fora, por trás da pilheira onde estava o relógio.