quarta-feira, 23 de outubro de 2013

O Comendador “dos Prazeres”



O Zé da Ti’Prazeres, “Zé Talabim” para todos, era o maior cromo da aldeia e, vamos mais longe, até das redondezas. 

Homem de muitas vidas e poucas falas, tinha, ao que se supunha, percorrido “sete mundos” e “cortava” três línguas. 

Sempre só, pois família nunca teve para além da mãe – a Ti’Prazeres, que ainda na flor da idade foi levada pela pneumónica e o deixou só, ao cuidado duma prima -. 

O pai, ao que constava, ainda estaria vivo, mas talvez noutras vidas e, seguramente, noutras paragens.


Na escola nunca conseguiu fazer o exame do 2º grau; nas duas vezes que foi a exame, veio “Reprovado”, porque, no dizer dos colegas, embora muito bom em contas e problemas, dava mais erros que as palavras que escrevia. 

Ainda acompanhou, como moço, os ceifeiros que no Verão faziam as campanhas no Alentejo. 

Começou a aprender a arte de sapateiro, com um vizinho que achava que o rapazote tinha jeito. 

Mas o forte do Zé eram os ninhos, as pescarias na ribeira do Coadouro e a mão baixa a uma ou outra galinha, mais distraída, que acabava em patuscada, com gente de mais idade.

Aos catorze anos, acabados de fazer, chegou a casa da Ti’Amélia, e disparou, da porta: Oh! Ti’Amélia, o Talabim morreu; trate cá da casita e um dia, que não sei quando chegará, o senhor José há-de voltar e pagar-lhe os favores que me tem feito e as côdeas de pão que me tem dado. Adeus!...

E quando ela se assomou ao portal, já ele tinha desaparecido.

Soube, depois, que, de corpinho-bem-feito, apanhou a camioneta dos Claras, para Abrantes, e não deu palavra a ninguém que com ele embarcou.

Nos primeiros tempos ainda acamaradou com pessoas da Terra, empregadas nas obras, ou noutros serviços, lá em Lisboa. 

Depois, foi visto a rondar o cais onde os navios carregavam e descarregavam. Até que desapareceu…

E durante vinte e cinco anos, ninguém mais deu por ele. 

Acabou, praticamente, esquecido, uma vez que poucos laços deixou na Terra.

Até que, num domingo de Agosto, apareceu à porta do quintalito da Ti’Amélia, batendo as palmas e chamando em alta voz.
Ao ser reconhecido, entrou e foi logo mandado sentar para comer qualquer coisa do pouco que havia. 

Mas inverteram-se os papéis e foi o sr. José que acenou a um homem que ficara junto da entrada, ao lado do automóvel em que se transportavam, para que trouxesse a encomenda. 

E, entregando um embrulho à Ti’Amélia, despediu-se, na companhia do outro homem, para entrarem os dois no automóvel e desaparecerem.

A Ti’Amélia abriu o embrulho e foi olhando cada vez mais admirada: um bonito xaile de merino preto, um lenço para a cabeça, igualmente preto e fino, um fato saia e casaco e um par de sapatos, finos, de pele macia e elegantes. 

No cimo de tudo uma carta aberta, com uma folha escrita e uma nota cujo valor a Ti’Amélia não sabia, pois nunca tinha visto outra igual.

A Ti’Amélia, analfabeta, foi à loja pedir à rapariga do Manel se fazia o favor de lhe ler uma carta que ali trazia e alguém lhe tinha acabado de deixar. 

E mostrou, às escondidas, a nota que tirou do bolso, perguntando quanto valia. 

Ia-lhe dando uma coisa quando soube que valia muito dinheiro – mil mil réis, ou seja um conto de réis -. 

O suficiente para comprar uma pequena hortita.

Foi então que estendeu a folha manuscrita, em papel timbrado e com um cabeçalho que dizia; Comendador “dos Prazeres”- Av. Bandeirantes, 1764 – S. PAULO – BRASIL. 

Leu a Cremilda: Querida Ti’Amélia, desculpe não ter ficado mais uns tempinhos para conversar consigo, mas tenho negócios a tratar em Lisboa e só daqui a uma ou duas semanas conto passar por aí com mais vagar. 

Espero que goste da pequena lembrança que lhe levei e saiba que tive muito prazer em vê-la ainda rija e com saúde. 

Até breve. Do José.

Em Lisboa foi-se fazendo encontrado com alguns dos homens da Terra que por lá trabalhavam e puxavam para uma taberna ali ao Campo Pequeno, nas tardes de domingo. 

Lá jogavam as cartas, o burro ou as damas; aproveitando todos os pretextos para petiscar e beber uns copos. 

Também era ali que se punha a escrita em dia, quanto a novidades da Terra. Pelo que tocava a homens, já que as mulheres tinham as Praças ou a missa para conversarem.

E não tardou que viesse à baila o aparecimento do José Talabim que os mais velhos conheceram até que um dia desapareceu, sem deixar rasto. 

Devia ter sido há perto de vinte e cinco anos, dizia o Ti’Nunes, lembrando que fora nos tempos que esteve hospitalizado, quando teve o acidente no trabalho.

Bem cuidado e bem vestido, traçava o colete, de fantasia, com uma grossa corrente de ouro, que prendia um relógio, igualmente de ouro. 

Nos dedos exibia dois anéis que assentavam bem em mãos pouco calejadas. 

Transportava-se num grande automóvel marca Pontiac, com antena de telefonia e bancos de pele preta. 

Dentro da mala, a que chamava “baque”, trazia vários embrulhos e três ou quatro malas de couro. 

Apesar de ser ele que, normalmente, guiava o automóvel, andava sempre acompanhado por um indivíduo mais novo, fardado e segurando uma pasta, que nunca largava.

O homem trata o José por senhor Comendador e não dá um passo sem ser mandado, ou sem pedir licença. Só larga a pasta preta para ir arrumar o carro, ou para ir fazer qualquer recado ao patrão. 

Que o nosso Zé parece ser o patrão dele. 

Foi assim que o Ti’Manel Mendes, um dos mais veteranos lisboetas lá da Terra, contou, no café da Serra da Luz, a quem o quis ouvir, o seu encontro com o José “Talabim”, que ninguém mais devia tratar como tal, mas antes dobrar a língua, como o motorista que o acompanhava, chamando-lhe sr. Comendador. 

E assim se passou palavra e rapidamente se generalizou o nome do Sr Comendador e não mais se falou no José Prazeres, ou “Talabim”. 

É claro que a ida à aldeia, os encontros lá na taberna do Campo Pequeno e noutros locais ali para os lados do Saldanha, começaram a correr de boca em boca e logo uns louvaram outros criticaram as atitudes do senhor José, como a Ti’Amélia, por um lado e o Ti’Manel Mendes, por outro, recomendaram que todos lhe chamassem, acrescentando este último, Comendador. 

Soube-se, por intermédio de um rapaz que trabalhava no hotel em que estava hospedado o senhor Comendador, que voltara do estrangeiro, que estava num quarto de hotel perto do Saldanha e andava sempre com um motorista a que chamava secretário. 

Pediu um cofre lá no hotel e falava-se que estava montado no dinheiro. 

Registou-se como José dos Prazeres, português com passaporte do Congo Belga, com 40 anos de idade, residente em Leopoldovile, Comendador e estava no País a tratar de negócios. 

Era proveniente do Brasil – S. Paulo e combinou com o hotel um mês de permanência, com pequeno almoço.

Fazia visitas diárias ao Banco Nacional Ultramarino, mesmo ao lado do hotel e às vezes vinham dois senhores do Banco fazer reuniões com ele a uma sala reservada lá no hotel. 

Mudava todos os dias de fato e roupa de dentro e todos os dias era mandada roupa sua para a lavandaria.

Como se pode ver pela descrição do rapaz que trabalhava lá no hotel era uma figura que dava nas vistas e que despertava a atenção. 

Até porque gratificava, com generosidade, quando pedia algum serviço a alguém.

O Ti’Nunes, que aparecia lá pela tasca do Campo Pequeno, tinha sofrido um acidente nas obras em que trabalhava como carpinteiro.

Um esmagamento entre pranchas de uma cofragem inutilizou-lhe o antebraço que acabou por ser amputado, ao nível do cotovelo. 

Nos últimos vinte anos aprendeu muito no que se refere a dirigir os trabalhos na obra, a verificar o rigor das obras em conformidade com as plantas e sabia ler e interpretar os desenhos. 

Conhecia de materiais, propriedades e variações de estruturas e em soalhos, ladrilhos e estuques, nem os mestres o ensinavam. E, quanto a medidas e cálculos, quase dispensava metros e fitas.

Tinha, também, algum treino e experiência de vendas de prédios, pois já tinha acompanhado esses trabalhos em vários prédios construídos e vendidos pela empresa onde, apesar de deficiente, nunca deixou de trabalhar.

Num encontro com o Ti´Nunes, o senhor Comendador ouviu atentamente um resumo da vida deste homem e depois, através dos serviços do ajudante e dos serviços de um advogado – o dr. Júlio Gonçalves – com quem estabeleceu avença, elaborou o perfil completo daquele auto-didacta, acabando por concluir que precisava dos seus serviços. 

Porém, havia que esconder o jogo e fazer experiências, pois estavam muitos valores em jogo.

E ainda antes de deixar Lisboa, quis o Comendador fazer umas aplicações de dinheiros. 

Acabou por concluir que o mais apropriado era a compra de casas ou andares de rendimento. 

Informou-se com várias empresas, ouviu alguns conselhos e decidiu-se a ir às falas com o Ti´Nunes, chamando-o, um dia, lá ao hotel onde estava hospedado.

Obrigado por ter vindo, Ti’Nunes. Eu antes de partir para o Congo, vou passar pelo Brasil e Moçambique. Por lá vou precisar de tomar algumas medidas que dependem de uns investimentos que tenciono fazer cá em Lisboa. Acho que vou negociar na área da construção civil. Como não sei nada disso preciso de quem saiba. 

Quer trabalhar comigo, ou para mim, se assim quiser? Está disponível para começar, ou tem compromissos com alguém? Não preciso do seu dinheiro, nem do de ninguém, graças a Deus; o que procuro é ajuda, conselho, opinião e serviços de quem saiba de construção e conheça o negócio da construção. 

Que me diz, Ti’Nunes?

Bem, eu sempre trabalhei para o meu patrão e mesmo depois do acidente sempre lá tive trabalho. Tenho a pensão do seguro correspondente ao grau de invalidez que me foi atribuído e o meu patrão continua a pagar-me como se eu não recebesse nada do seguro. E são já trinta anos…

É louvável a sua posição e nos tempos que correm não são muitos os patrões que tratam os trabalhadores como o Ti’Nunes é tratado.

Mas, ao fim de todo esse tempo, o que tem de seu? E acha que lhe fazem algum favor em pagar-lhe como se não fosse deficiente? Acha que a sua incapacidade diminui alguma coisa do seu rendimento no trabalho que faz? 

Pois eu entendo que o Ti’Nunes com uma mão é muito mais válido que a maior parte dos seus colegas com as duas e é por isso que lhe proponho, de imediato, o dobro daquilo que ganha. 

E, para já, numa primeira fase, com muito menos trabalho.

Relativamente, entenda-se; pois eu não o quero para trabalhos físicos, quero-o para aconselhar negócios, dirigir trabalhos, inspeccionar obras e construções. 

Até pode ser que estejamos dois ou três anos sem construir. E até pode ir passar uns meses ao Brasil, ao Congo, a Moçambique…

Tenho lá muitas coisas onde os seus conselhos me poderiam ser muito proveitosos.

Pense bem nisto tudo. Quero ver se nos próximos dez anos invisto uns centos de milhares de contos. 

Para já tem aqui o Alberto que além de meu motorista o ajudará em tudo o que precisar. 

O sr. dr. Júlio Gonçalves é o meu advogado e estará disponível para qualquer ajuda e, na minha ausência providenciará para que disponha de tudo o que precisar para desempenhar as acções que combinarmos – compra, venda, construção, licenciamentos, etc. -

Quero dizer que em tudo o que se refira aos negócios onde estivermos empenhados, o Ti’Nunes será o meu conselheiro. 

Um carro apropriado às vossas deslocações – suas, do Alberto e de mais alguém que venha a ter a empresa que criarei – será em breve adquirido. 

Para os meus colaboradores mais próximos costumo estabelecer prémios anuais e posso dizer-lhe que no último ano distribuí mais de cinco mil contos de prémios. 

É claro que tenho centenas de pessoas a trabalhar nas minhas empresas, desde o Congo Belga, a Moçambique e ao Brasil. E espero que, brevemente, aqui em Portugal.

Na próxima semana vou ausentar-me, mas na segunda-feira seguinte, primeiro de Setembro, estarei de volta ao hotel e espero por si, com notícias frescas sobre o que acabei de lhe dizer. 

Até seria uma boa data para começar a trabalhar comigo. Pense bem na sua vida; e no que podemos vir a fazer.

Foi assim que na 2ª feira, primeiro de Setembro o Ti’Nunes pediu na entrada do hotel que o anunciassem ao Sr. Comendador “dos Prazeres” e se sentou num sofá da sala de espera.

Quase de imediato um funcionário da recepção dirigiu-se à sala de estar e, perguntando pelo Sr. Nunes, convidou-o o acompanhá-lo à sala de jantar, onde o Sr. Comendador o convidava a tomar o “breakfast” com ele.

Já na mesa do Comendador o sr. Nunes encomendou café com leite, pão e queijo e um copo de água. 

O empregado voltou-se para o hóspede e, de imediato, o Sr Comendador disse: O meu convidado será servido como eu: traga o “continental breakfast”.

Foi então que após os cumprimentos, o Ti’Nunes, disse que depois de falar com os filhos, uma vez que era já viúvo, tomou a decisão de trabalhar para o sr. Comendador a partir daquele dia, se assim quisesse e como nada o prendia a lado nenhum estava inteiramente disponível. 

Só esperava nunca vir a ser incapaz de desempenhar as funções que lhe fossem confiadas: oferecia apenas tudo o que a vida lhe tinha ensinado e a certeza de completa lealdade a quem o contratava como trabalhador.

Teria apenas de passar pela empresa para onde prestava serviço, para fazer contas e se desligar de alguns trabalhos que tinha à sua responsabilidade. Coisa de dois dias, no máximo.

O Comendador estendeu a mão e disse: “Bem vindo Mestre Nunes; o Sr. doutor advogado deve estar a chegar aí e já tem todas as instruções para lhe entregar um contrato que contém a descrição das suas funções, os seus vencimentos e regalias.”

Trate de tudo com a empresa onde tem trabalhado e depois de tomar aqui o pequeno almoço na próxima 5ª feira, faremos uma reunião onde lhe direi as primeiras funções que irá desempenhar. 

A sua categoria na Empresa será a de Mestre e o seu chefe serei eu; colaborará com toda a gente, mas depende única e exclusivamente de mim. Concorda?

Perfeitamente, sr. Comendador.

E foi assim que o Mestre Mário Nunes, aos 60 anos, mudou completamente a sua vida. Trabalhou até aos noventa anos, foi a pedra angular do império criado em Portugal pelo José dos Prazeres – mais de uma centena de prédios em Lisboa e arredores - e redes comerciais no Congo Belga e Brasil –. Mestre Nunes deixou bens avaliados em 30.000 contos, quando faleceu, em 1963.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Os miseráveis


Ali, bem no centro de Portugal, nasce o pequeno arroio que, já baptizado de ribeira, ladeia a minha aldeia pelo lado poente e, engrossando aos poucos, por obra e graça de muitos outros irmãos que se lhe vão juntando, acaba por entregar ao grande Tejo, uns trinta quilómetros a sudeste, no termo de Mouriscas, um caudal razoável, sobretudo no Inverno.

A ribeira buliçosa e fervilhante em cujas margens não havia um palmo inculto e se viam os batatais, os milheirais e toda a variedade de mimos, cultivados em estreitas leiras, ladeadas por extensas filas de videiras do lado da ribeira e pelas levadas do lado dos outeiros que davam forma ao longo vale por onde corria a água pura e límpida, saltando de pedra em pedra, deu lugar a uma mancha verde, incaracterística, que se estende de uma a outra levada, cobrindo hortas e ribeira e amarfanhando árvores e arbustos, praticamente inacessíveis aos poucos idosos da terra e que só os pássaros e outros animais desfrutam. 

É um lugar viçoso e fervilhante de vida, mas triste e melancólico: falta-lhe o elemento humano, o arranjo carinhoso das pessoas que acaba por dar a plantas e animais a beleza e colorido do amanho das terras, dos pequenos canteiros de flores, das frutas e dos muitos tons de verde que as pequenas hortas deixaram de desenhar no fresco e acolhedor aroma das árvores bem tratadas e viçosas de cada pequena leira.

As lágrimas da ribeira, guardadas ciosamente em açudes ou pequenas represas, eram o sangue que fazia crescer e dava sabor a frutas e legumes, eram o regulador das quentes tardes de Verão e o alimento líquido que o sol impiedoso e criador reclamava. 

Quem nunca molhou os pés, nos tanques das belgas de milho, regando a água da represa no cair da tarde de Verão, nunca sentiu o significado da partilha, o justo valor de cada bago de milho que aquela água fez crescer nem o sabor daquela salada de alface, comida poucos minutos após a chegada da horta.

Agora, na ponte do Machoso, que já não está num caminho, mas numa estrada, sentado na guarda do lado sul, ainda podia ver as pedras onde as mulheres lavavam a roupa e os pequenos lameiros onde, depois, a estendiam a corar e secar. 

Mas ao fundo da lavagem só uma pequena praia restava do antigo açude da ribeira. 

E, mais ao longe, em vez das levadas, começavam os maciços de balças, estevas, torgas, juncos e restos de videiras e outras árvores de fruto. Todo um emaranhado de verdes que faziam perder de vista o leito que se adivinhava sob todo aquele manto.

Também o caminho de outros tempos, hoje estrada, continuava deserto desde que ali cheguei, uma boa hora atrás. 

Mem carros, nem carroças, nem pessoas ou animais por ali transitavam naquela manhã de finais de Verão.

Mas ali, no meio do nada vive alguém. 

Normalmente gente que já calcorreou os longos caminhos da vida; mais simples para uns e mais agrestes para outros; todavia diferentes dos que um dia deixaram e, seguramente, nunca esqueceram, durante as suas andanças pela vida. 

E também os que nunca dali saíram e continuam a viver à sombra do desconhecido, nem sequer saudades sentindo de tempos que já passaram. 

Esperam o Outono e depois o Inverno, ano após ano, até que chegue o fim. Muitos, sem esperança em melhores dias.

Há também os que regressaram às origens, como é costume dizer-se. 

Ou porque uma força imanente os empurrou, ou porque a sorte se lhes revelou madrasta e os empurrou para o lugar natural das suas crenças, dos hábitos simples e frugais e da serenidade pedida pelo peso dos anos. 

Dizem que pela graça de Deus, quando a Ele se dirigem, quer seja na missa ou simplesmente na fé, traduzida nas orações singulares ou colectivas, em que se encomendam na sobrevivência, ou na esperança da vida eterna que possa recompensar o que cá em baixo nunca tiveram. 

Nestas cogitações, revivendo tempos difíceis mas felizes, vindo do nada, aparece o António, que há bons pares de anos não via e deixara de estar dentro dos meus contactos depois da escola quando cada um seguiu o seu caminho. 

Trazia debaixo do braço um livro, vestia roupa bem cuidada e cobria-se com um belo chapéu de feltro preto. Ah! Usava óculos graduados e ligeiramente escurecidos.

Olá senhor professor! Então por cá? Espero que esteja bem, com a família….

Mas, António, que é lá isso de senhor? Lembras-te que andámos os dois na escola, que aqui onde estamos começava a horta do teu pai – o tio Joaquim, que me fez as primeiras botas e que muitas vezes ia lá a casa do meu avô remendar ou fazer de novo o calçado da família. 

Tu, seguiste a tua vida e segundo fui sabendo sempre te governaste bem e acabaste por ir para França onde as coisas também te correram menos mal. 

Tenho muito prazer em ver-te e dá cá aquele abraço, pois só nele trocaremos todas as saudades que levariam anos a descrever.

É verdade que como pedreiro aqui e depois de casado na Fortaleza sempre me governei menos mal. 

Sempre tive pena que na terceira classe tenha saído da escola, mas mais tarde, em França, pude aprender a ler, escrever, fazer as escritas das minhas vidas e aprender um pouco mais sobre cultura geral. 

Sempre gostei de ler e tenho pena de não poder dedicar mais tempo à leitura, pois os meus olhos não me permitem grandes aventuras.

Muito bem António, e lá em França por onde andaste? 

Eu sempre gostei da minha arte e quando uns cunhados me desafiaram para ir para a França, ainda hesitei. Tinha medo de alguma coisa correr mal e já tinha dois filhos pequenos… 

Mas, encorajado pela mulher, fui sozinho para Paris, deixando cá mulher e filhos. Acompanhei os cunhados, fui morar para Champigny, ali nas barbas de Paris e comecei a trabalhar nas obras que apareciam, por conta de um português de Trás-os-Montes. 

Ao fim de seis meses, vim cá a Portugal, com duas finalidades: levar a mulher e os filhos e ver se conseguia uns dinheiros emprestados para propor uma sociedade a meus cunhados – restauração de edifícios, recuperação e arranjos de jardins-.

Nessa altura já conhecia suficientemente o meio, já tinha aprendido a ouvir e falar qualquer coisa de francês e os meus futuros sócios, tal como eu, eram muito trabalhadores e gente muito orientada... E séria…

Tomámos a primeira obra: restaurar um edifício de quatro pisos, numa rua muito perto da Gare du Nord. 

Fizemos o trabalho a contento do dono, em menos dois meses que o previsto e fomos logo convidados para continuar a trabalhar noutras obras daquele senhor, dono de bastantes prédios em Paris e arredores. Olha, já lhe recuperámos mais de trinta prédios e os meus filhos e os seus primos continuam a trabalhar para ele.

Mais tarde a minha mulher, quando já se desenrascava no francês, empregou-se como porteira em Ivry e os meus filhos estudaram até ao fim do liceu e já depois de começarem a trabalhar nas empresas, fizeram cursos profissionais no nosso ramo. 

Hoje dirigem os negócios, com os primos. 

Eu e minha mulher voltámos ao ponto de partida, quarenta anos depois. 

Temos casa na Fortaleza e, graças a Deus, temos o suficiente para viver. 

Hoje vim dar por aqui uma volta e, felizmente encontrei-te, pois tenho lido as tuas publicações no nosso jornal e já me apeteceu, várias vezes, comentar, mas ainda não calhou.

E esse livro deve dar-te que fazer. Antes de mais é muito extenso e de um grande mestre da literatura. Nunca o li em francês, mas já o fiz em tradução e até já escrevi qualquer coisa sobre ele, quando estudei literatura francesa…

Há perto de cinquenta anos.

É verdade. Está muito bem escrito; duma forma que se lê e se entende bem e as histórias que cá estão até me fazem lembrar algumas das tuas. 

A propósito, já publicaste algum livro? Nunca vi nada a esse respeito lá no Jornal.

Não. Nunca editei nada com aspecto comercial. Gosto de escrever sobre as pessoas simples, como nós e de forma que elas me entendam. Fico contente por saber que também és leitor dos meus escritos.

Sabes, gostei imenso de falar contigo. Tenho ouvido muitas coisas sobre a vida dos emigrantes, sobretudo em França e até coisas menos edificantes. 

Há entre vós, uns quantos, felizmente em minoria muito pequena que nem sempre se portaram bem, sobretudo com os seus compatriotas. Mas, desses não rezará a História e aqueles que honestamente fizeram vida e arranjo é que importa e não os trapaceiros que hão-de existir sempre e em toda a parte.

Não sei se sabes mas casei numa pequena aldeia, do concelho da Guarda, onde muito mais de metade das pessoas da nossa idade ou foram ou ainda estão em França. 

Aqui por baixo a excepção são os que emigraram, lá naquelas zonas da raia, são excepção os que ficaram por cá.

Tenho familiares, amigos, afilhados, ou simples conhecidos, que viveram e conhecem a emigração. Quero dizer-te que, sem excepção, tenho muito respeito por todos os que tiveram a coragem de um dia deixar tudo e todos para partir em busca de melhores dias e do que cá lhes era negado. 

Oiço todos e respeito o que me dizem. Conheço muitas vidas de sucesso como me contas e apenas receio que os dias por lá não voltem a ser tão favoráveis como já foram; os tempos são outros, mas esperemos com confiança, porque quem for honesto e lutador há-de continuar a vencer.

Continua a ler o teu Victor Hugo, tem cuidado com os teus olhos e que Deus te proteja e nos vá dando saúde para ti e todos os teus. 

Um abraço e até sempre!... Au revoir!...

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Compadres

Cabisbaixo, mãos nos bolsos, blasfemando contra o burrico que, ajoujado sob os taleigos, pedia licença a uma pata para mover a outra, o Ti’Luís assomou-se ao povoado, antes do nascer do sol.

No seu ar de homem já muito gasto pelos anos, caminhava a passo lento, cogitando com os seus botões. 

A mulher tinha-lhe falado no namoro da filha mais velha – a Conceição – com um filhote da Serra, de nome Apolinário, sobrinho do freguês do ‘Casal’, Ti’José Lourinho, que era também tutor do rapaz, já órfão de pai e mãe.

Dormiu umas noites sobre o caso e ali estava ele, disposto a falar com o tio do rapaz, sobre um dos assuntos mais sérios da sua vida – o casamento de uma das filhas. 

Tinha de estar prevenido, pois o rapaz já fizera saber que em breve iria lá a casa pedir a Conceição.

Chegado à porta da igreja, junto da casa do Ti’José Lourinho, prendeu o burro à argola da parede, contra o seu hábito, e bateu à porta. 

Veio o Ti’José Lourinho, em pessoa, e após uma breve salvação mútua, travaram o diálogo que, sem mais delongas e comentários, passo a transcrever:

Ti’José Lourinho, conhecemo-nos há muitos anos e nunca nada de tão sério me trouxe à sua porta. 

Com sua licença passo ao caso: 

Tem o Ti’José Lourinho, tal como eu, o empenho de querer para os nossos, o melhor. Tenho duas filhas e um rapazote, todos ainda solteiros. Sem desconsideração, gente pobre, mas honrada e trabalhadora. Vem tudo isto ao caso de que o seu sobrinho Apolinário parece que anda a namorar a minha Conceição. Não sei se é do seu conhecimento?!...

Passou-se-me qualquer coisa pelos ouvidos; mas como achei tão natural e normal, não fiz disso qualquer enredo.

Mas há-de compreender que eu sou pai e um pai sempre há-de querer o melhor para os seus. Trata-se da minha mais velha!...

Com certeza, Ti’Luís, são bem feitas as suas observações e bem próprios os seus incómodos. Sempre se trata de uma filha.

É que ouvi dizer que o rapaz anda lá pela Guarda Republicana e que talvez pense levar-me a cachopa para a cidade. Compreenderá que isto incomoda qualquer um!...

Tem razão, Ti Luís, mas se for esse o bem deles, que havemos nós de fazer? 

A vida somos nós que a traçamos e sempre custa ver assim partir uma filha, com quem ainda nem ao menos conhecemos. Sabe-se lá!..

O que pode saber, Ti’Luís, é que o meu sobrinho, não desfazendo, é farinha do melhor saco; e disso percebe vomecê!... 

Não haverá uma só voz contra o rapaz; teve a infelicidade de ficar sem mãe e sem pai, junto com os irmãos e essa será a sua maior desgraça. 

De resto, trabalhador como os melhores, até ir para a tropa. Uma vez lá, gostaram tanto dele que o apanharam para a Guarda. E aí está ele, a ajudar os irmãos e a família; Deus o abençoe!...

É que, Ti’José Lourinho, rapazes na cidade, com tantas “anegaças”, não é de fiar-se a gente. E sempre se trata da nossa filha, não é?..

Ti’Luís, nesse aspecto nada sei sobre o meu sobrinho; agora que é homem direito, honrado e trabalhador, a quem nenhuma boca pode atirar nada de mau, é bastante para merecer a sua filha; estão um para o outro, com a graça de Deus e a nossa.

Mas seja sincero, Ti’José Lourinho, acha mesmo que a minha Conceição vai bem servida?!

Acho isso e parece-me que isto merece um copo; vamos entrando compadre. Parece-me que posso tratá-lo assim, não é verdade?!...

Nem sabe quanto me aliviou, compadre José Lourinho. Deus há-de pôr-lhes a bênção e até vamos esperar que tudo lhes corra da melhor forma possível.

O diálogo mostrava, nesta altura, ares de voltar quase ao princípio. 

O Ti’Luís voltava a enumerar as justificações de se tratar de uma filha, de termos obrigação de querer o melhor para os nossos, etc. 

A outra parte, o Ti’José Lourinho, lá deitou mais um copito e conseguiu terminar o diálogo, dizendo: 

Agora que vai estar metido em despesas, é de fazer-se à vida. Mas olhe que a maquia dos taleigos não pode ser acrescentada...

O Ti’Luís reagiu bem à graça e, voltando-se para o compadre, como que a recomeçar a conversa, rematou:

Olhe que já hoje me deu uma boa alegria... Nem todos os dias se casa uma filha, compadre!... 

E, com sua licença, vou-me andando que a minha ficou lá em casa, em pulgas.

Até mais ver!...

Até mais ver, compadre!... 

Fique com Deus!...