O Abreu fazia vinte anos e fora, recentemente, às “sortes”, a Mação, tendo ficado “apurado para todo o serviço militar”, como então se dizia.
Andava muito triste, o que, na voz do povo, se devia à morte prematura da mãe, com doença não determinada, ou, pelo menos, não revelada, ao comum das pessoas. Mas a tristeza era outra.
Acompanhava os irmãos mais velhos, João e Benjamim, na missa dos domingos, na freguesia. Ia, também, o mais novito, o “António”, com dez anos, esperto e ladino, filho do pai e da madrasta.
Pela cabeça do Abreu passava um turbilhão de ideias.
Também era notória uma postura meditativa, uma marcada auto-análise e introspecção, invulgares em rapazes daqueles meios, daquelas idades e com a sua instrução – fizera a 4ª classe, sendo aprovado, com distinção –.
Um dia, o padre João Pereira, filhote do lugarejo e pároco numa pequena freguesia para os lados de Porto de Mós, veio à aldeia e cruzou-se com o rapazote, de que alguém lhe tinha já falado.
O Abreu, recentemente apurado, nas sortes, ia, dentro de dias, partir para a ceifa, na companha do Ti’Chico “Manajeiro”, da Serra.
Na conversa que teve com o padre Pereira, o Abreu mostrou grande vontade de saber coisas sobre a vida de sacerdócio.
Nas três perguntas que fez, a primeira é uma simples diversão: gostaria de saber qual a origem do nome da aldeia Queixoperra –; a segunda e terceira versavam o casamento dos padres.
O padre Pereira, cuja sensibilidade, embora embotada por muitos anos de meio rural, era de uma perspicácia evidente, percebeu que, das três perguntas, só a resposta à última tinha importância para o Abreu.
Respondeu, evasivamente, sobre o nome da aldeia – cuja origem é incerta e nebulosa – e pouco adiantou sobre o casamento dos padres; mera questão de disciplina, instituída há séculos.
Já no que diz respeito à facilidade, ou dificuldade, de ser padre, o caso é mais complicado; talvez uma passagem dos evangelhos te ajude a compreender o que há para dizer: “aos desígnios do Senhor, nada é impossível”.
A interpretação desta afirmação contém as respostas que procuras.
Só há uma única condição: a tua vontade e o teu querer têm de ser inabaláveis; o resto, não terá importância.
Tens de ter muita confiança; tens a vida para viver.
Daí a dias, o Ti’Bento e o Luís Mendes foram a casa do Abreu avisá-lo que no dia seguinte, antes do romper da manhã, estariam de partida, para se juntar, na Saramaga à companha do Ti’Chico “Manajeiro”, da Serra e seguirem todos, para a estação de Abrantes, de onde seguiriam, no comboio, para a ceifa.
Iria começar mais um dos duros trabalhos que, para o Abreu, seria dos últimos.
O Ti’Chico “Manajeiro” ufanava-se, anos mais tarde, de ter tido nas suas companhas da ceifa, doutores, oficiais da tropa, negociantes de fama e riqueza, brasileiros e até um padre, que de vez em quando, o ia visitar lá na Serra, onde o “manajeiro” passava os últimos dias do entardecer da vida, e, segundo as suas palavras, tinha muitos amigos, por quem pedia, à Senhora da Fátima.
E recordava o rapazote que levou, três anos, na companha: o Abreu, do compadre Francisco, da Queixoperra, que na malhada mostrava um ar de alheamento e distância e um certo quê de mistério.
Os outros camaradas, reparavam, mas não comentavam muito, pois o Abreu não incomodava ninguém e desempenhava, a contento, todas as tarefas de que era incumbido. Era dos últimos a adormecer e nunca o fazia sem que rezasse as suas orações e se quedasse em meditações.
Nas festas e bailaricos, teve um ou outro “flirt” com raparigas, mas não passou daí e, quanto a respeito, não há nada a apontar-lhe.
Um dia, regressava da horta, onde estivera toda a manhã, junto com os irmãos, a arrancar as batatas e, ao passar à porta da taberna do ti Zé Maria, foi-lhe dito que já lá estavam os editais e que ele iria assentar praça em Abrantes, daí a quinze dias.
Operou-se, no rapaz, uma modificação profunda.
Andava mais alegre, cantarolava, dava-se a conversas; parecia outro.
No dia três de Maio – festa da Santa Cruz –, foi, junto com os outros dois mancebos da freguesia, buscar as guias à Câmara de Mação e, no dia seguinte, foram apresentar-se em Abrantes, onde durante quase três meses fez a recruta e depois a especialidade, tendo sido escolhido para a escola de cabos.
O Capitão, comandante da Companhia, casado com uma das senhoras da família Moura Neves, precisava de um “impedido” e, saiba-se lá porquê, escolheu o cabo Abreu, que passou a frequentar a casa do “patrão”, onde ajudava nas compras, lavava o automóvel, tratava do cavalo e se ocupava de outros afazeres da casa.
A senhora dona Aninhas, mulher do Capitão Geraldes, gostou do militar que o marido escolhera, muito prestável e solícito, preocupado e amigo de ajudar, muito pontual e sério nas contas.
No entanto, por vezes ficava triste, pensativo, vago e distante, o que levou a Senhora a perguntar se estava ofendido com alguma coisa, ou se tinha alguma coisa que ela pudesse ajudar a resolver.
Ai, minha Senhora, tanto e tão pouca coisa.
Corou e quase se lhe embargou a voz, mas não podia perder a oportunidade e acrescentou: sou filho e neto, de gente pobre e humilde; pobre, de bens materiais, mas temente a Deus e muito honrada. Com fé nestes princípios, há oito ou dez anos o meu maior desejo é ser padre.
Ser padre, Senhora Dona Aninhas, é o meu desejo.
Homem, mas isso... venha comigo. Você, Mariana, vá tratar da lida da cozinha, que se fazem horas do almoço.
Ah! o Abreu almoça cá, connosco.
Chegados à sala, a Senhora perguntou, secamente: tem, então, a certeza que é padre que quer ser?
Certeza absoluta, minha Senhora. Só que, por mais que pense, não vejo como; até nem sei porque incomodei a Senhora com tais despropósitos.
Que me desculpe, a Senhora, que tão boa tem sido para mim.
Não, meu bom homem, bateu à porta certa; aos desígnios do Senhor...
Sem ouvir o resto da frase, fez-se luz na mente do rapaz; eram as palavras do evangelho, que o padre Pereira lhe tinha dito...
A Senhora continuou, explicando que havia fortes ligações da sua “casa” com o Seminário de Portalegre e o dos Olivais, em Lisboa.
Todos os anos tinha chegado ao fim um seminarista amigo, mas, havia três anos não se tinha ordenado ninguém da “casa”. Daí a nove ou dez anos, se Deus quisesse, haviam de ter um padre. Assim o Abreu quisesse…
A partir daquele dia, nem a Dona Aninhas, nem o Abreu conseguiram dormir direito, de felicidade.
Uma semana depois já a Senhora anunciava, na presença do marido, que estava tudo tratado: nos meados de Setembro, o cabo Abreu seria licenciado, na qualidade de amparo de família.
Na semana seguinte faria um retiro no Seminário de Portalegre e na última semana do mês, um outro retiro, no Seminário dos Olivais, em Lisboa.
A Senhora queria ouvir opiniões e saber o que melhor se ajustaria ao seu novo protegido; isto se o Abreu não visse qualquer inconveniente.
Resposta pronta e elucidativa: Mas é isso que eu quero, minha Senhora. A minha consumição é não ter meios nem maneiras de consegui-lo. Somos pobres e todos os braços são poucos para a labuta lá em casa. E sobra tão pouco!...
No início de Outubro, tudo começou no Seminário de Alcains, onde, num ano, o Abreu, fez segundo e parte do quinto ano.
No ano seguinte, em Portalegre, completou os preparatórios e no terceiro ano completou estudos gerais, indo logo a seguir iniciar a Teologia, que o levaria, passados cinco anos, a cantar Missa Nova, por pedido da Senhora, no Seminário dos Olivais.
Numa visita à aldeia depois de estar no Seminário de Alcains e após ter passado pelos seus pais adoptivos, como sempre fez questão de dizer, encontrou-se com o padre João Pereira.
Abraçaram-se e o seminarista Abreu apenas balbuciou as palavras que escolheu para lema de toda a sua vida: “Aos desígnios do Senhor nada é impossível”.
Paroquiou uns anos em Martinchel; no termo de Abrantes – de onde podia visitar a família adoptiva e confortar, na doença, a Senhora Dona Aninhas.
Transferiu-se depois, por interferências e empenhos da Senhora, para São Facundo, freguesia também perto de Abrantes, onde o velho senhor Moura Neves, saudoso pai da Senhora, tinha a maioria das suas terras.
Lá viveu, muitos e bons anos o Padre Abreu.
De vez em quando, ia à Queixoperra, para rever as suas origens e, sobretudo, para matar saudades da sua infância.
Nessas viagens, dava um salto à Serra, para ver o “Manajeiro”.
Morreu, em paz, quase a completar noventa anos, sem deixar quaisquer bens materiais.
Do seu espólio constam apenas dez ou doze nomes, de outros tantos padres, que, por sua iniciação e orientação, serviram, tal como ele, a Igreja.
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