domingo, 9 de junho de 2013

A ceifa no Alentejo

Ceifa no Alentejo - aguarela de 1917

O “monte” da Herdade do Castanho, situava-se numa pequena elevação dos terrenos a sul da Ribeira dos Tourões, que pertenciam ao Senhor Lavrador, numa extensão de mais de catorze léguas, segundo as palavras do capataz.

O Ti’Chico “Manajeiro” conhecia a chapada que, partindo da ribeira, subia até ao “monte”. Uma extensão de mil metros, por uns oitocentos de largura, cobertos de “pão”, que havia de ser calcorreada, centímetro a centímetro, pelos homens da companha que acabava de chegar.

Havia uma pequena “folha” de cevada e o resto era um extenso trigal, bem apresentado e que, graças a Deus, não tinha acamado. 

Podiam contar-se, pelos dedos, da mão, os sobreiros e azinheiras, ou outras árvores, que pudessem dar sombra, ou ajudar a diminuir a secura daqueles campos, cobertos de “pão”.

Embora a inclinação não fosse grande, a chapada era ligeiramente inclinada e avesseira pelo que tinha que ser muito bem definido o sentido do corte; a descer, o trabalho é mais cansativo e menos rendoso e de través, o equilíbrio dificulta o bom andamento. Se possível, também a direcção do sol deve ficar pela esquerda dos ceifeiros – pormenores importantes, que os manajeiros aprenderam, com a vida -.

A ribeira, sem água corrente, apenas tem um ou outro pego que servirá para tomar banho nalguns fins de dia, o que, aliás, foi motivo de grandes recomendações por parte do manajeiro. 

Há que não ir sozinho, nunca depois de comer e evitar sítios escondidos ou isolados. 

Todavia, naquele ano, não seria grande o perigo, dada a escassez de água, mesmo nos pegos. 

Eram agradáveis, sim, os tufos de juncos e os salgueiros e freixos que rodeavam o talvegue. 

Alguns traziam, ramos e junco para o acampamento, ou para espalhar pela malhada, a servir de colchão.

No chavascal que ladeava a chapada, pelo sul, havia todo um emaranhado de silvas, tojos e arbustos – sinais evidentes de que por baixo andam águas –. 

Ali se acoitavam diversos tipos de pássaros, zelando pelos ninhos mais serôdios, ou pelos filhotes mais atrasados e também lá tomavam refúgio os predadores, a caça e outros pequenos animais que fazem das searas a sua despensa – ratos, coelhos, musaranhos, ouriços, répteis, etc. –.

Depois da primeira noite na malhada, ou sob a copa de um sobreiro, ao romper da madrugada, começaram as movimentações: idas e vindas para a latrina, para os tanques onde se lavava a cara e mais o que se quisesse e para a malhada, onde se arrumavam os parcos pertences de cada um, de modo que, antes que a estrela boieira se afundasse no horizonte, todos tivessem engolido as sopas de café e estivessem junto do manajeiro, para seguirem até ao corte.

Um pintor teria feito ali um magnífico quadro: o manajeiro, à frente, seguido dos ganhões e dos moços; uns e outros com os chapéus de palha de abas largas, na cabeça, camisas abertas e foices em punho e, na mão esquerda, as dedeiras de cana. 

Os rostos de alguns, ainda leitosos, iam, em poucos dias, tisnar-se e tomar um bronze natural.

O Ti’Chico olhou em redor e, como incentivo curto, mas muito a propósito, disse apenas: Vamos ao trabalho, com a graça de Deus!... Força, rapazes!... E benzeu-se.

Os mais velhos, conhecedores, de ginjeira, daquelas andanças, seguiam calados; os mais novatos e os debutantes, satisfaziam a sua curiosidade, não sabendo bem o que os esperava e extasiando-se com tanto pão junto – cenários novos e que jamais tinham imaginado –.

Já no fundo da chapada, junto à ribeira, o Ti’Chico “Manajeiro” chamou os das pontas de corte – o Chico Coxo e o Zé Taliscas – e mandou-os tomar posições, distantes um do outro, cento e cinquenta passos – seria essa a largura de corte –. 

Entre eles distribuíram-se os restantes camaradas e moços, mantendo-se os grupos que tinham sido formados no dia anterior.

Cada chefe de grupo sabia, perfeitamente, o que tinha que fazer, para que a frente de corte se mantivesse sempre em linha e os trabalhos seguissem a bom ritmo. 

Era aqui que entravam as ajudas e compensações e é nesta tarefa que o trabalho do manajeiro é fundamental; incentivando os mais atrapalhados e coordenando os mais ousados, de modo que o grupo se mova sempre como uma mola, projectando-se de trás para diante.

O Ti’Chico, direito no meio da linha, mandou o Manel Carolo levantar a mão esquerda para que todos vissem as “dentadas da foice” nas dedeiras. 

A seguir, levantou os olhos ao céu e benzeu-se, exclamando: avante camaradas!...

Todos se curvaram e não tardou que começassem a ver-se, no restolho, os molhos de trigo. 

Logo a seguir os moços foram ensinados, pelo manajeiro, a formar os rolheiros, pondo os molhos na forma mais correcta: o “pão” é posto com a troça para fora, formando um círculo, com as espigas para o meio. 

Os rolheiros tem a largura aproximada de metro e meio e os molhos de cada camada são colocados, alternadamente, para que fiquem travados e o mais justo possível, de forma a evitar entrada de roedores e más influências de ventos, chuvas e orvalhadas. 

Um rolheiro deve ter a altura máxima do peito de um homem. 

Quando os rebanhos vierem ao rabisco, ou as varas de porcos se espalharem no restolho, o zagal tem de estar seguro que não farão mossa, nos rolheiros de trigo.

Pelas dez e meia da manhã – segundo a mediana do Ti’Chico – chega o manteeiro e os moços aguadeiros, para distribuírem um quarto de pão de trigo e um bom naco de queijo, ou um pedaço de toucinho, segundo o gosto e preferência de cada um, e darem os corchos de água que cada camarada quiser. 

Aproveita-se para enrolar um paivante e, uma meia hora depois do “alto”, comida a bucha e saciada a sede, é dada a voz de “ao trabalho, camaradas!...” e todos pegam na foice e retomam a labuta.

Com o sol a pino – meio-dia solar, que os ganhões mais experimentados calculam pelo tamanho da própria sombra – é altura de jantar. 

O manajeiro dá “alto ao trabalho” e todos param, colocando a foice no chão e tirando as dedeiras. 

Juntam-se ao chefe e seguem-no até à malhada, onde os espera o gaspacho, o cozido de grão, o ensopado de borrego, o guisado, os feijões cozidos ou guisados com algum tempero, conforme os dias da semana. 

Ao lado do caldeiro da comida está um cesto de pão, cozido ainda há pouco e suficiente para que todos comam, à vontade.

Oito grupos de homens, cercando outros tantos barranhões, e cada um com a sua própria “ferramenta”, constituída por colher, garfo e navalha, saciam a fome e sede – uma das galas do Senhor Lavrador da Herdade do Castanho é que todos comam até querer –. 

Todavia, uma das maiores bênçãos do jantar é a sombra da malhada e as duas horas de sesta que se lhe seguem. 

Lá mais para diante é, também, a altura desejada nas companhas: a entrega do correio.

Finda a sesta, ouve-se o grito de “ao trabalho” e todos se juntam para, atrás do manajeiro, se dirigirem ao corte e retomarem a tarefa que os espera. 

O ritual repete-se todos os dias, durante a ceifa.

Quando a sombra começa a alongar-se – por volta das cinco horas – é dado o “alto para a merenda” e repete-se, sem grandes cambiantes, o que se passou ao almoço. 

Daí até ao fim do dia de trabalho, vai o sol cair no horizonte e uma meia hora depois de desaparecido o astro-rei é dado o “alto ao trabalho”.

Regressados à malhada, espera-se pela ceia, que será em tudo semelhante ao jantar, e pelas nove horas da noite, os chefes de grupo certificam-se de que tudo está em ordem e faz-se silêncio e escuridão, para que todos possam repousar.

O Ti’Chico, reza as suas orações e recolhe-se ao seu reservado.


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