segunda-feira, 29 de outubro de 2012

O “João Osso”


                                 
Às vezes, as coisas simples da vida complicam-se e ultrapassam tudo o que a nossa inteligência pode perceber, ou a nossa imaginação admitir. 

Esta foi a sentença com que o velho Tonho Cardina, deu início a mais um modorrento serão de inverno, não longe da lareira, onde o fogo, bem espevitado, devorava as cavacas de pinho e aguentava a fervura, em cachão, no latão da vianda. 

Todos conhecem o João Melrinho, mais conhecido pelo calça-larga. 

Pois só depois de vir da tropa assim começou a ser chamado; até aí sempre foi o João Osso. 

E, não fora o engano do sargento ao distribuir-lhe umas calças três números acima da medida correcta, ainda hoje seria João Osso. 

E saberão, os presentes, o motivo dessa alcunha? 

O nome ficou-lhe desde que a mãe o deu à luz, numa grande aflição, vendo o homem finar-se, porque um osso de perdiz se lhe atravessou na garganta e acabou por cortar-lhe toda a respiração. 

Tentaram salvá-lo, mas sem resultado. 

Pelas contas da comadre Luísa, a Maria da Luz, que estava a fazer uma barriga normalíssima, só na próxima volta da Lua, havia de completar o tempo. 

Porém, os choros e ais que varreram a aldeia, entre gritos de aflição e correrias desenfreadas, chegaram aos ouvidos da Maria, que voltava da horta, com um molhito de couves, à cabeça, e deixaram-na em estado de choque, agarrada à barriga. 

Enquanto até aí todos procuravam o Ti’Manel Luís, barbeiro, desde a tropa, e curandeiro / sangrador, de serviço na terra, para que socorresse o Chico do Outeiro, que tinha um osso na garganta e ameaçava finar-se; logo se repartiram as correrias, à cata da Ti’Luísa, para ir acudir à Maria da Luz, que na aflição de ver o homem nas últimas, parecia ter começado a largar a criança, antes do tempo. 

O curandeiro, esbaforido e cansado, veio da horta, onde andava a regar e, depois de uma rápida descrição dos factos, afastou toda a gente, estendeu um molho de palha na cabana e pediu a dois dos homens mais pujantes que o ajudassem. 

Precisava de gente com força. 

O Chico estava já mais roxo que branco e, erguido no ar, com a cabeça para baixo, não respondeu a duas valentes palmadas nas costas. 

O Ti’Manel pediu, de seguida, uma almotolia de azeite e tapando o nariz do paciente, despejou-lhe, obra de um decilitro, na boca, mas não verificou qualquer reacção. 

Mandou, de novo, levantar a vítima de cabeça para baixo e, nada se passou. 

Meteu os dedos, até onde pôde e nem sinais de vómito. 

Disse ao Joaquim Albardeiro que soprasse, com quanta força pudesse, na boca do Chico, ao mesmo tempo que comprimia e descomprimia a caixa-de-ar do morto. 

O último gesto do Ti’Manel foi pôr um espelho na frente da boca do Chico e verificar que não ficou embaciado. 

Do outro lado da casa veio a notícia de que a Maria da Luz, estava a fazer honras ao seu nome. Já lhe tinham rebentado as águas e estava próxima a vinda da criança. 

Foi assim que, às tantas, todos deixaram o Chico e voltaram as atenções para os lados dos fundos da casa, onde mãe e filho já se faziam ouvir. 

O ganapo berrava a bom berrar, mostrava sinais de perfeitinho e, com os olhitos ainda cerrados, meneava a cabeça, procurando um peito para começar a mamar. 

O Ti’Manel Luís, encarando a criança, disse: 

Ainda bem que o teu pai já está substituído; hás-de ser João, como o teu avô, que Deus tem, e “Osso” como o que nem eu fui capaz de roer. 

E sempre foi João “Osso” o nome do garoto, até que quando voltou da tropa, como que por milagre, raramente se ouviu esse nome e passou a ser o calça-larga, como todos o conhecemos. 

O velho Cardina, aproveitou para fazer o elogio do curandeiro que, sangrou muitos nas aldeias das redondezas, compôs muitos braços e pernas e curou muitas espinhelas caídas, ou tortas. 

Acrescentou, com plena convicção, que ouviu da boca do Ti’Manel Luís, com toda a segurança, que foi chamado tarde de mais para socorrer o Chico do Outeiro e o estado dele – fortemente bêbedo –, também não ajudou nada a reacção do corpo. 

Um homem daqueles, são como um pêro, forte como um touro e a vender saúde, acaba por ser vítima de uma coisa porque ninguém dá nada: engasgado com um osso de perdiz. 

As coisas mais simples da vida que, quando o demónio quer, podem transformar-se em complicações sem remédio. 

Mas, eu cá sempre fiquei a magicar nas palavras do Ti’Manel Luís: Já não havia nada a fazer; quando cheguei ao pé dele, já estava morto. 

Atão um fortalhão daqueles deixa-se ir assim abaixo!? Ná, não me cheira bem!... 

Cá para mim, foi a comida e bebida em demasia que o mataram; Algum diacho de “constão”, ou lá como lhe chamam, que dum momento para o outro manda um maltês desta para melhor. 

E depois, os que estavam com ele também não davam acordo de si, para explicarem o que se passou na verdade. Ficam as dúvidas!... 

Terminada a história, o Ti’Cardina foi ao cabanal verter águas, deu uma espreitadela para o catavento da torre da capela e confirmou o vento norte que começava a rodar para poente e havia de trazer, por aí, chuva. 

Recolheu-se e, como já todos tinham ido para a cama, quando voltou junto da lareira, apagou os restos de lume e pegando na candeia, subiu os degraus para a casa de cima e deitou-se, ao lado da sua Hermínia, que já ressonava sobre a enxerga de camisos.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

A mina do Abrunhal

O Calvário foi, desde sempre, lugar de encontro e meditação da rapaziada da Terra, sobretudo os estudantes. 

Tem-se uma vista imponente, daquele pequeno morro, hoje já completamente dentro da povoação, com o Outeiro de Cima à ilharga, pelo norte e o Bairro dos Franceses aos pés, sobre o meio-dia. 

Um conjunto de três cruzes, uma das quais amputada, coroa um pequeno terraço, ligeiramente ondulado, resultante da junção do topo de dois blocos graníticos, desgastados pelo uso, pois, em tempos de maior aperto, nas eiras que distavam dali poucos metros, o local chegou a ser aproveitado para malhar o pão, de pequenas safras. 

Ao lado das cruzes, uns barrocos de uns quatro metros, eram frequentados pelos mais pequenos que se divertiam a subir até ao topo, comemorando a vitória numa batalha em que tinham conseguido mais uma brava conquista. 

Pulavam, tiravam fotografias e guardavam uma prova de que, num dia célebre, escalaram o barroco do Calvário, um dos ex-líbris do Rochoso - assim se chama aquela bela aldeia da Beira Alta. 

Dali, para nascente, via-se a estrada que atravessava a Rasinha. Uma recta entre os cercados das terras de pão e batatas e os baldios de giestas e mato. 

Ao fundo, para lá da curva, em direcção ao norte, perdia-se num pequeno souto de castanheiros, que depois se estendia pelo Abrunhal, até às abas dos pinheiros da folha da Senhora do Monte. 

E, saindo da estrada de macadame, um emaranhado de rodeiras, onde chiavam os carros de bois, dispersava-se entre o morro e a ribeira de Noemi que iria passar pela Cerdeira, ao encontro do Côa, lá para os lados de Porto de Ovelha. 

Os horizontes daquele lado, eram largos; iam até Espanha e divisava-se uma grande parte da linha da raia, para sul de Vilar Formoso, sendo ainda possível distinguir, em dias de céu mais claro, as primeiras elevações de Castela-a-Velha, já no termo de Salamanca, de que sobressaíam as serras Morena e a das Gatas, que o Zé Lines dizia conhecer, como a palma das suas mãos. 

Junto da ribeira, pela nosso lado, portanto pela margem esquerda, corriam os "tramas" na linha da Beira Alta, circulando de Guarda para Vilar Formoso e dali para todos os destinos da Europa. 

Era por lá que iam e vinham muitos dos emigrantes da França e Alemanha. 

No apeadeiro do Rochoso paravam apenas os comboios regionais, que faziam vida entre a Guarda e a fronteira. Quem vinha ou ia para mais longe tinha de mudar, ou na Guarda, ou em Vilar Formoso, se não quisesse descer na Cerdeira, onde até o “Sud” parava. 

Pelo norte, ainda se subia até às eiras e, à guisa de muralha, o cerro dos barrocos protegia a povoação dos ventos do frio e diminuía o horizonte que começava lá longe, a meio dos altos das terras de Pinhel e terminava, já a perder de vista, nas elevações do lado de lá do Douro, a que costumavam chamar Trás dos Montes, como diziam os meus habituais guias locais. 

O Zé Lines confidenciava-me: gosto de olhar para longe, quando ando lá nas Fontainhas; ainda gostava de ir lá atrás dos montes.

Pelo sul e poente, o olhar estendia-se até às terras do Sabugal que iam acabar nas alturas da serra da Estrela, onde não se acabavam as névoas, frios e chuvas, na maior parte do ano e, sobre a manhã e aos fins de tarde se viam, do Calvário, os reflexos do sol nas neves eternas dos cumes da serra. 

Era lá que todas as noites o sol se ia recolher, para voltar na manhã seguinte já no lado oposto, sobre a capelinha da Senhora do Monte, com mais algum calor mandado de Espanha.

Saindo do centro do povo, pelo lado do largo oposto à igreja, cruzam-se os barroquinhos e no Outeiro de Cima, sobre a direita, antes de chegar ao largo da Amoreira, chega-se, a escassos cem metros, à escola, para logo depois do que, pomposamente, se chamava campo de futebol, se chegar ao Calvário. 

Pelo meio, construiu-se, recentemente, a capela de S. Sebastião. 

Neste cenário, depois da ceia, estávamos no centro de uma galáxia em que as luzes dos povoados que dali se avistavam, pareciam estrelas espalhadas, desordenadamente, no firmamento. 

Muitas vezes, estive ali sentado, chupando um cigarro – quando ainda não tinha vencido o vício de fumar -, com alguns homens da terra, que iam até ali, depois de terem bebido umas minis, ou uns meios quartilhos, no Ti’Zé Maria, ou no Ferreira. 

Lembro, o incontornável Zé Lines, ainda na força dos anos, mas já diminuído por uma ou duas passagens pelo Sanatório da Guarda, o Albertino, filho do Ti’Zé Maria, que respondia pela alcunha de “Roque”, o Chico “Preizal”, que veio para ali cabreiro e acabou, pendurado numa trave da adega, deixando um bom rebanho de gado e bastante dinheiro no banco, depois de quase duas dezenas de anos em França, o “Bote Giestas”, um ou dois Ruas, o Vicente e outros do clã dos caldeireiros, com o seu realejo e uma velha concertina, que toda a noite sanfonava, rua abaixo, rua acima e, segundo dizia, era sócio de uma das melhores empresas de recuperação de imóveis da cidade de Paris. 

Na sua expressão era um dos “rois de bâtiment”, e tinha sociedade com uns colegas de Famalicão, especializada em compor “trottoirs”. 

Era o mais ouvido, talvez por ser o que, ao tempo, mais alardeava o dinheiro que crescia a olhos vistos nos bancos da Guarda. Ali se iam bebendo umas minis e se relatavam os episódios mais mirabolantes que me foi dado ouvir. 

Muitas dessas histórias eram contadas e reportadas a locais que os que nunca tínhamos vivido e convivido lá por Champigny, dificilmente enquadrávamos e acabávamos por esquecer. 

Eu e o Zé Lines éramos os que nunca tínhamos sido emigrantes em França e um ou dois, dos outros, estavam, ou tinham estado, na Alemanha e no Luxemburgo. 

Porém, a grande maioria eram franceses e da região da grande cidade de Paris. 

Quando o grupo ficava mais pequeno, às vezes já passava de meia-noite, vinham as histórias da terra e do contrabando e aí, o Zé Lines, ainda era dos melhores. 

Entrava com as suas aventuras a caminho de Nave de Haver, onde havia um Guarda Fiscal, filhote ali duma povoação vizinha do Rochoso, de nome Albardo, e que respondia pela alcunha de “Borrado”. 

Definia-o como: "pouco tendo ficado a dever à inteligência e não aproveitando o que podia ter aprendido na escola".

Tinha um corpanzil alambazado e mão pesada para os que lhe passavam pela porta, quando estava de serviço no posto; era o maior cagarola, pois, no escuro e na solidão da noite, ficava verdadeiramente tolhido de medo de tudo o que mexesse e fizesse barulho. 

Em garoto, numa altura em que esteve fechado o posto escolar de Albardo, andou aqui no Rochoso e metia-se connosco, por aí, aos ninhos, ou nas brincadeiras de explorações de que eu e o Tó Remédios, que já lá está, coitado – Pai, Filho, Espírito Santo! -, gostávamos imenso. 

Tínhamos uma partida em que o “Borrado” caía sempre: empurrávamo-lo para cima de um carvalho, dizendo que estava lá um ninho e, como não era capaz de descer sozinho, gozávamos o pratinho, normalmente a uma certa distância da árvore, por causa dos cheiros. 

O “Roque”, que raramente falava, atirou: Oh! Zé, então e aquela vez em que fomos explorar a mina do Abrunhal! Lembras-te? 

E logo arrancava o Zé Lines, carregando bem nas cores, pois tudo o que fosse para descascar no “Borrado” dava-lhe um gozo especial. 

Então lá vai, mas olhe senhor professor que às vezes exagero um pouco quando falo daquele desavergonhado que se não usasse farda até eu o comia, mas com o senhor aqui, não sairá da minha boca nem uma só palavra fora dos termos da pura verdade. E continuava: 

Um belo dia, o senhor professor precisou de ir à Guarda, no trama das onze e deixou-nos na sala, entregues aos mais velhos e com a atenção da senhora professora das meninas. 

Pouco tempo depois, já todos andávamos no lameiro do Enchido a jogar a bola: só o “Borrado”, que não tinha jeito nenhum, não foi aceite por nenhuma das equipas e ficou ali sentado a ver. 

Ainda se levantou para ser árbitro, mas todos torceram o nariz e lá voltou a sentar-se no cercado do lameiro, do lado do ribeiro, debaixo dos carvalhos. 

O calor apertava e já fartos e cansados, decidimos ir até ao Abrunhal, fazer três coisas: e o chefe do grupo “menino Toninho”, depois do juramento de todos, explicou que primeiro iriam às castanhas, comer até querer e encher os bolsos, a seguir os de fora da terra dariam a merenda para todos comerem, antes de entrar na mina, pois podiam demorar mais tempo que esperavam e, por fim, iriam explorar a mina, que toda a gente comentava, mas poucos, ou ninguém conhecia. 

Estejam descansados que quando lá chegarmos mostrarei os planos de exploração e, fica desde já combinado que se acharmos algum tesouro ele será propriedade do grupo, mas quem mandará nele será o chefe. 

 Vamos para lá e quanto mais perto estivermos, menos barulho. 

A mina começava no fundo de um desaterro a céu aberto e a entrada cheia de silvas, giestas e carvalhos, estava enxuta e sem sinais de uso; não eram visíveis caminhos para dentro da mina, mas os caçadores e os pastores diziam que já tinham visto fugir para lá todo o tipo de animais: gatos bravos, porcos de espinhos, raposas, lobos e outras coisas esquisitas. 

Sentaram-se, debaixo de uns carvalhos, para fazer três grupos de três pessoas, para combinar um assobio de chamada quando encontrassem alguma coisa que valesse a pena e um grito – pedido de socorro – se algum grupo se perdesse, ou precisasse de ajuda ou outra qualquer coisa muito especial. 

A tensão ia subindo e as histórias do chefe de grupo, “menino Toninho”, não ajudavam nada a acalmar os mais medrosos. 

De revelação, em revelação, falou-se da origem, finalidade, feitiços, habitantes, tesouros e todas as fantasias que a mina encerrava. 

Uns ficavam admirados, outros cada vez tremiam mais de medo e outros ainda não ligavam às explicações e queriam era ir ver, com os próprios olhos o que estaria, afinal, escondido naquela mina. 

Por essa altura já havia quem quase chorasse de medo e, particularmente o de Albardo, estava à espera de um pretexto para desistir. 

Quando o “chefe” disse que afinal dois grupos iriam fazer a exploração e o terceiro grupo ficaria ali, na porta da mina, esperando algum sinal que viesse de dentro, ou indo chamar alguém, se os grupos não voltassem até que o sol fizesse uma sombra do Manelito com o comprimento de quinze pés. 

Já se sabia, por ser a medida da sombra, que o Manelito era do grupo que ficava na porta. 

Para escolher os outros dois o “menino Tonito”, disse que quem quisesse podia levantar o dedo e, como todos esperavam, logo o Zé Pires, “Borrado”, levantou o dedo. 

Disse que estava com imensas dores de barriga, se calhar das castanhas que tinha comido, e por isso se oferecia para ficar de guarda. 

Faltava escolher o terceiro, mas logo o chefe viu o “Hóstias”, que era neto do sacristão da igreja e vinha muitas vezes para a veiga que o avô tratava, na cerca do Abrunhal, a tremer que nem varas verdes. 

Perguntou-lhe se também estava doente da barriga e o colega respondeu que tinha de ficar de guarda porque o avô já lhe tinha explicado que nunca poderia chegar-se à mina, porque poderia perder-se lá dentro, ser comido por algum dos monstros que a habitavam, cair para algum poço, ou ficar prisioneiro dos ladrões que lá se escondiam. 

O último explorador de que havia memória, um pastor que se aventurou, com o cão, dentro da mina, foi encontrado mais de quinze dias depois, numa gruta da ribeira, já perto da Cerdeira. 

É que o meu avô diz que esta mina tem ligações para a Cerdeira, para a ribeira das Cabras, já perto de Porto Mourisco e um ramal que começa atrás da Senhora do Monte e vem dar ao centro da mina. 

Estavam nestes preparos quando ouvem um restolhado atrás de umas giestas e salta de lá o Ti’ Zé do Pico, que andava na veiga a regar e viu aquela trupe de garotos a atravessar os castanheiros, em direcção à mina. 

Pensou que o neto não estivesse no grupo, pois fazia-o na escola àquela hora, mas quando se apercebeu que ele fazia parte da turma chegou-se, para o que desse e viesse. 

Foi então que o sacristão explicou que aquelas minas já tinham dado riqueza a muita gente que ali explorou volfrâmio até há poucos anos; a Alemanha, comprava, por bom preço, todo aquele metal para as fábricas de guerra. 

Era com ele que se faziam as balas e as bombas da guerra. 

Ele próprio, quando era pouco maior que eles, andou lá a trabalhar e passou muitos dias sem ver o sol procurando as pedras de volfrâmio, que depois eram vendidas a um senhor espanhol que comprava tudo o que encontrasse, para fazer negócios com os alemães. 

Já ouviram falar de candonga? Depois hão-de pedir, lá na escola, ao senhor professor que vos ensine o que são minas, o que é volfrâmio e todos os negócios à volta disso. 

Mas vou dizer-vos mais alguma coisa sobre as minas, especialmente sobre esta que percorri, primeiro a levar coisas aos mineiros e depois, com a picareta a cavar o minério e a carrejá-lo cá para fora, em carrinhos de mão. 

Para já, só se entra numa mina com um capacete de aço e com luz de gasómetro; aquilo, daqui a poucos metros da entrada é completamente escuro e há sítios onde corre água por todos os lados. 

Depois não há só uma mina, são muitos buracos que se foram fazendo à medida que aparecia volfrâmio. 

Mas se ele estava no chão cavava-se um poço. 

É assim como um labirinto, que ao certo ao certo nunca se sabe até onde pode chegar e, como deve haver barreiras e tectos que caíram, só com cordas, boa luz e cautelas especiais, pode alguém aventurar-se a explorar as minas. 

Quem quiser pode espreitar comigo. 

Logo aqui à direita e ainda com a luz de fora, pode ver-se a sala onde se fazia a contagem de quem entrava e saía, para ter a certeza que ninguém ficara perdido lá pelas galerias. 

Mais tarde diz-se que se chegaram a esconder ali quadrilhas de ladrões, mas, além disso podem ter a certeza que não há mais nada e não vale a pena correr riscos, por uma coisa de nada e, hoje em dia, sem qualquer interesse. 

Aí o meu neto, pensará que lhe menti quando lhe disse que era muito perigoso ir para perto da mina, mas ainda achava cedo para lhe contar que conhecia bem os buracos que estão lá por baixo da terra. 

Poderei ter exagerado, mas não aconselho ninguém a correr riscos que não mostrarão nada mais que cá o Ti’ Zé do Pico lhes acaba de explicar. 

Vamos todos para casa!

terça-feira, 9 de outubro de 2012

O felosa


O Jaime, nascido antes de tempo, deu que fazer a toda a gente, mas conseguiu safar-se das maleitas que o atormentaram, nos primeiros tempos de vida. 

Depois, arrebitou e parecia que tinha bichinho de carpinteiro. Nunca parava quieto e era preciso uma pessoa, só para cuidar dele e evitar que se queimasse, se afogasse, ou outra qualquer coisa semelhante. Não tinha receio de nada. 

Foi crescendo e, já na escola, nenhum colega se atreveria a pôr-lhe cuspinho no nariz. 

Todos os que tal tinham tentado, acabaram com um olho negro ou a cabeça partida, sem esquecer as mordedelas e caneladas que eram as marcas do garoto em quem se atravessava no seu caminho, ou com ele travava despique. 

Era finório e honrava o nome que tinha: Jaime da Silva Pardal. 

Aprendera, algures, o que com altivez repetia, quando lhe perguntavam o nome. 

Dizia, com os olhos pequenitos e muito arregalados: Jaime, como os ciganos, Silva como as balças e Pardal como os que o são. 

Um dia, por alturas do exame da terceira classe, no regresso da Aboboreira, onde tinham ido fazer a prova, pegou-se de razões com o “machacaz”, atirando-lhe à cara: passaste à rasca, pois nem contas sabes fazer; tem toda a razão quem te baptizou, não passas de um machacaz: dos mais toscos e brutos que por aí se vêem. 

O “machacaz” fixou os olhos no chão e respondeu-lhe: tu não passas de uma reles felosa das balças; tens a mania que és muito esperto mas não passas de uma dentada na boca de qualquer gato vadio. 

Lá manha não te falta; além disso, não vejo mais nada e, se te ponho as mãos em cima, vais ver como elas te mordem. Ganha corpo, miúdo. 

Cresce e aparece!... 

O Jaime engoliu em seco; o “machacaz” era um ano mais velho e deitava por dois dele. Mas, a partir dali, marcou a presa e pensou com os seus botões: ai sou felosa, vivo nas balças, não passo de dentada de gato!?... Ainda vais engolir isso tudo!... E hás-de ver como elas te mordem. 

Voltaram para a escola e, aí, só à boca pequena é que alguém se aventurava a chamá-lo pela alcunha que tinha recebido no caminho da Aboboreira. 

Só o “machacaz” fazia gala, ao contrário do que era seu hábito, em apregoar a alcunha do colega, até porque se percebia que o Jaime não gostava nada de tal nome, posto por um padrinho a que ele não via possibilidade de partir a cara. 

Cresceram e acabou por pegar a alcunha de “felosa”, posta ao Jaime Pardal. Já adultos, parodiavam os dois, bebiam o seu copito e, intimamente, não evitavam a sua alfinetada um ao outro, sempre que encontravam altura asada. 

Andaram na ceifa juntos, ajudaram-se em alturas menos felizes da vida, emprestaram dinheiro de parte a parte, participaram em muitas festas juntos e vieram até a ser compadres. Todavia, o “felosa” nunca esqueceu o espírito depreciativo com que o “machacaz” o baptizara, o que talvez não correspondesse ao significado que a grande maioria das pessoas lhe dava. 

Numa certa altura em que o “machacaz” se deixou dominar pela bebida e começava a ser gozado pelas suas atitudes de papalvo, veio, ao de cima, a vingançazinha que o “felosa” acalentara durante uma vida. 

Começou com umas aguilhoadas discretas, passou a provocações mais directas e, sempre que alguém gozava com o compadre, não o defendia, antes ajudava à missa. 

Um dia, já bem bebidos, à volta da mesa de sueca, onde o “galhana” e o “bode” jogavam contra o “gaitas” e o “ouriço”, travaram-se de razões e o “felosa” disse ao compadre: 

Pisaram-me aqui debaixo da mesa, mas não me parece que tenha sido o compadre que costuma deixar os pés em casa!... 

Por acaso até fui eu!... Desculpe lá, que foi sem querer, respondeu o “machacaz”. 

O “felosa” voltou à carga: É que pensei que quando você vem para a taberna deixa os pés na cama a fazer companhia à sua mulher. 

Pelo menos foi o que confirmou ontem, quando lhe disseram que fosse para casa, porque a comadre Rosa estava lá com um homem na cama!... Não é verdade?... 

Desta vez tem razão. Acaba de dizer uma grande verdade, confirmada por estes dois que a terra há-de comer. Estavam sim quatro pés na minha cama – dois dela e dois meus, claro! 

E que mal tem isso, compadre?!... 

Mas olhe que você, que nunca perdeu a mania que é esperto e vivaço, nem às felosas faz sombra. 

Andam sempre perto do ninho e não deixam que outros lá vão pôr os ovos… Pois você nem aos calcanhares desses passaritos chega!... 

Deixe-se de gozos, armado em esperto, e vá a casa ver que a sua mulher está lá, na sua cama, com outro!? 

O “felosa” virou costas e, pernas para que vos quero, não parou até à porta de casa. 

Entrou, de mansinho, chegou à porta do quarto e voltando-se para o casal que estava na cama, olhou atentamente. Depois, deu meia volta e, saindo porta fora, só parou na taberna, onde entrou e foi direito ao compadre: 

Enfrentou o “machacaz” e exclamou: Você, compadre, sempre me saíu um grande lorpa, que, afinal, não quer ser sozinho. Mas fique descansado que a minha não está nada com outro. 

Eu sabia isso, mas fui lá confirmar! 

Está com o mesmo, pois claro!...