quarta-feira, 19 de setembro de 2012

De Lisboa... para o mundo



O Lajinhas jamais esquecerá a última noite, passada na barraca das obras, junto ao hospital de Santa Maria, então em construção. 

Não conseguiu dormir, tais eram as ânsias de experimentar a nova vida, a bordo do cargueiro “Aurora”, da “Companhia Nacional de Navios”, onde entraria, no dia seguinte: tripulante num barco... 

Estava mas era a sonhar. 

Tinha no bolso catorze contos de réis. 

Numa pequena maleta, algumas peças de roupa e dois ou três livros de aventuras e viagens. 

Foi com esses haveres que apanhou o eléctrico, às seis da manhã, para o Terreiro do Paço, seguindo, dali, a pé, para Santa Apolónia, onde o esperava a sua casa – o Aurora –. 

Por mais que tenhamos tentado, é indescritível o estado de espírito do rapaz, quando, pouco antes das oito horas, subiu os degraus da escada do barco em que iria trabalhar. 

Não passou despercebida ao Imediato toda a carga emocional que o novo tripulante transportava, ao entrar, a bordo, onde foi recebido, apenas com as palavras da praxe: bem-vindo a bordo; a partir de agora, a tua família são os marinheiros desta embarcação e as ordens do Comandante são soberanas. 

Se sabes o que isto quer dizer; Se estás disposto a acatá-las e cumpri-las; Entra rapaz; És dos nossos! 

Nos dezoito dias seguintes, adaptou-se, na perfeição, aos trabalhos de bordo. Fez de tudo, desde limpeza a ajuda na cozinha, sem esquecer uma mãozinha na estiva e no abastecimento do barco. 

Fez questão de dizer, ao Senhor Comandante, que sempre foi conhecido pelo Lajinhas – embora o seu nome fosse António Manuel Lopes – e gostava que assim continuasse. 

E assim foi... Lajinhas – tripulante do navio Aurora. 

O barco levava um carregamento de madeira para Antuérpia. Ali, meteu cereais para o Brasil, e, passando depois, com café, ao largo de Cabo Verde, foi atracar em Cádis. Dali rumou para Lisboa e seguindo para Aveiro, carregou sal, para o Congo – Leopoldville – e fez-se, de novo, ao mar alto. 

O novato dava-se bem no mar – que atravessara pela primeira vez –, cumpria, exemplarmente, as tarefas de que era encarregado, comia bem e continuava ávido de tudo o que pudesse ver e aprender. 

Na tripulação, formada por oito elementos, havia dois estrangeiros – um grego e um marroquino, que falava francês –. 

O Lajinhas, muito querido do Comandante, gozava de algum crédito, junto dos camaradas. 

O marroquino, habituado às lides do mar, ensinou muitas coisas, que o rapaz aprendia com uma grande facilidade e pelas quais mostrava uma curiosidade fora do normal. 

Um dos temas mais habituais das conversas, durante a viagem, foi o Congo Belga, para onde seguiam. 

Lá na terra, o Lajinhas conhecia o “brasileiro”, da Carregueira, que tinha andado pelas Áfricas e, segundo pensava, pelo Congo Belga. 

Ficou a saber que entravam por um rio tão grande como o mar; que num dos lados, desse rio, era terra de Portugal; que havia alguns portugueses que ganhavam bem a vida, no Congo e que uma das maiores "casas", dessas terras, se chamava “Casa Nogueira”, onde iriam descarregar o sal de Aveiro. 

E pensou: uma casa que é capaz de comprar um navio de sal, deve ser muito grande e muito importante; deve ter muitos empregados!... 

Junto do Comandante, conseguiu saber mais coisas; que no Congo se falava francês; que era uma terra tão grande que tinha zonas quase desconhecidas dos brancos; que havia portugueses muito ricos, etc. 

Um dia, no convés, o Comandante perguntou-lhe se tinha algum interesse especial pelo Congo e ficou estupefacto com a resposta imediata e esclarecedora do rapaz: Se calhar ainda hei-de ir para lá trabalhar, Senhor Comandante. Gostava tanto! 

O Comandante disfarçou a admiração sentida pela resposta do rapaz, dizendo que estivesse seguro: dali a oito dias estariam em Leopoldville e teria bastante trabalho a bordo. Seria o seu primeiro trabalho, no Congo. 

Afastou-se, e, sem esquecer a determinação do Lajinhas, mexeu os cordelinhos, junto dos responsáveis da Casa Nogueira e das autoridades. Soube que eram precisos trabalhadores e estavam muito dispostos a receber um rapaz, português, com as qualidades que o Senhor Comandante atribuía ao seu tripulante. 

Ficou assente, embora em segredo, que se fariam os preparos para que na viagem seguinte, dali a uns seis meses, se tratasse do caso do tripulante do Aurora, com vista a entrar para os quadros da Casa Nogueira. 

O Comandante prepararia tudo e inteirar-se-ia, melhor, das capacidades do rapaz; ensinar-lhe-ia francês e outros conceitos que lhe pudessem ser úteis, em terras de África, particularmente no Congo, ao tempo Belga. 

Foi esse o acordo de cavalheiros, entre o senhor Anastácio, gerente da Casa Nogueira e o Comandante Calixto, do Aurora. 

Descarregado o sal, foram limpos os porões, feito o reabastecimento do navio e metida a carga de madeira, que levariam para Leixões. 

Zarparam, de Leopoldville, na véspera de Natal. 

Pela primeira vez se notou alguma sombra de nostalgia nos olhos do Lajinhas, quando na ceia desse dia se distribuiu rancho especial e se abriram duas garrafas de espumante, para a “família” toda reunida na sua casa – o navio Aurora. 

O Comandante desejou felicidades a todos, deu, a cada um, a possibilidade de enviar um telegrama para a família e, pouco depois da meia-noite, o rapaz, de pé no convés, deixava, para trás, pela primeira vez, as luzes das cidades do Congo, sendo o seu pedido secreto para o Menino Jesus, a sua volta ao Congo, mas para ficar por lá e vir a ser um “brasileiro”, como os que conhecia.