Em nossa casa havia dois restos de livros – também não eram precisos mais, porque ninguém sabia ler –.
O meu avô conhecia umas três, ou quatro, letras que aprendeu no "mestre" quando teve oportunidade de lá ir. Minha avó, meu pai e minha mãe, nem isso, pois nunca lhes ensinaram nada sobre leitura. Eu e meus irmãos havíamos de ir aprender, quando chegassem os sete anos.
Nos anos quarenta, do último século, era este o panorama das casas das aldeias deste País, salvo raras excepções.
O mundo era o dia-a-dia, começava e acabava na aldeia e no dia treze de Maio, na casa do Ti’Soldador, ligava-se uma velha telefonia, alimentada com uma bateria de carro, para ouvir as cerimónias de Fátima.
Ninguém recebia jornais e ainda não havia telefone. O correio era muito raro.
Os velhos livros limitavam-se a umas folhas ainda ligadas por uns fios de encadernação e um deles tinha palavras com as sílabas diferentes – letras a preto, numas e a cinzento, noutras, alternadamente.
O meu avô chamava-lhe o Paleógrafo.
O outro era a história do João de Calaias, que, segundo o meu avô já lhe tinha sido contada pelo seu avô e que ele, pacientemente, me ia dramatizando o melhor que podia.
À pergunta do costume: onde é que eu parei no último dia? Seguia-se a minha resposta e uma ou outra pergunta que, ou era esclarecida, ou simplesmente ignorada pelo meu avô que se limitava a dizer:
Tem calma, parece que queres pôr o carro adiante dos bois. Ainda a história vai no começo.
Lembro-me, de uma das vezes em que o meu avô me estava a contar como é que o João de Calaias conseguiu fugir da ilha e chegar ao seu palácio…
Com os restos dos dois livritos, no meu colo, ao passar para a casa da escola, a Senhora Professora se chegou a nós e me perguntou:
Já tens livros, queres ir comigo para a escola? Lá aprendes a ler as histórias e muitas outras coisas.
Levantei-me num salto e estendi a mão para a professora e lá fui pela primeira vez para a escola, todo vaidoso, com dois restos de livros debaixo do braço.
É, ao que me parece, a segunda imagem mais antiga que guardo – a primeira foi a morte e as cenas das carpideiras e da mortalha, de uma tia, doente, que tomava conta de mim, quando todos iam para a horta.
Teria, neste caso, à roda de três anos e no caso da ida para a escola, de quatro para cinco. De então até aos sete anos aprendia com os colegas, fazia cópias, desenhos, recados à Senhora Professora e até ajudei alguns a aprender as letras.
Não sei se foi por isso que, anos mais tarde, fui Professor e noutras ocupações, de outras empresas, sempre andei por perto das acções de formação e preparação do pessoal.
Ficou-me o gosto de aprender e ensinar.
O meu avô era um homem inteligente e sabia transmitir o que lhe convinha nas histórias que me contava. Dramatizava muito bem e nas suas palavras e imagens muito simples mas carregadas de sentimento e de princípios morais, passou-me matrizes que ficaram para sempre na minha personalidade e ajudaram a definir a linha de procedimentos que sempre me norteou.
A história, ou lenda, do João de Calaias, parece-me ser aquilo que ao tempo andava de boca em boca, quer declamado, quer escrito em folhetos avulsos, sobre a epopeia de Jean de Calais , que enaltecia as virtudes do bom cidadão e reprovava os actos vis e traiçoeiros da pirataria e dos falsos amigos.
Os bons eram premiados tal como as virtudes da senhora que nunca aceitou a notícia da morte do marido e se lhe manteve fiel em a sua longa ausência.
Releva os actos de caridade cristã e a força da resistência humana, em que João de Calaias, sozinho numa ilha, anos a fio, comendo só pão e água que lhe levava o pássaro – entenda-se a alma do pedinte que mandou enterrar depois de ter sido morto por não pagar as dívidas e deitado aos cães –.
Até o rei, como força da narração, apareceu no exacto momento em que o pirata que garantia a morte de João de Calaias foi desmascarado pelo pássaro misterioso e ditou a sentença, de extrema crueldade, que mandava amarrar o intrujão a quatro cavalos que, açoitados, esmigalharam, o malvado.
Depois a questão da promessa de João de Calaias que o obrigava a dar ao pássaro, metade daquilo de que mais gostasse.
Respeitando a palavra foi o nobre João de Calaias buscar o filho, ainda criança e quando o passarão reclamou a sua metade, guardou a espada e disse que não mataria o filho; que o seu salvador podia aceitar a metade que era dele e ficasse com o filho todo.
Depois o desfecho: a boa alma, encarnada no pássaro, exclamou:
Devo-te um grande favor e chegou a altura de te pagar: aceita tu, nobre e honrado cidadão a metade que prometeste e guarda o teu filho, junto da tua mulher.
O próprio rei, levantou-se e curvou-se em frente de tão nobre fidalgo e, quando levantou os olhos para o castelo onde estava pousado o pássaro, viu uma alma, vestida de branco, subindo em direcção ao céu.
Às vezes, lembro a história do João de Calaias e recordo as palavras e gestos do meu avô, que eu bebia, sofregamente, mesmo sem saber o que queriam dizer a maior parte das palavras.