quinta-feira, 27 de setembro de 2012

O João de Calaias


Em nossa casa havia dois restos de livros – também não eram precisos mais, porque ninguém sabia ler –. 

O meu avô conhecia umas três, ou quatro, letras que aprendeu no "mestre" quando teve oportunidade de lá ir. Minha avó, meu pai e minha mãe, nem isso, pois nunca lhes ensinaram nada sobre leitura. Eu e meus irmãos havíamos de ir aprender, quando chegassem os sete anos. 

Nos anos quarenta, do último século, era este o panorama das casas das aldeias deste País, salvo raras excepções. 

O mundo era o dia-a-dia, começava e acabava na aldeia e no dia treze de Maio, na casa do Ti’Soldador, ligava-se uma velha telefonia, alimentada com uma bateria de carro, para ouvir as cerimónias de Fátima. 

Ninguém recebia jornais e ainda não havia telefone. O correio era muito raro. 

Os velhos livros limitavam-se a umas folhas ainda ligadas por uns fios de encadernação e um deles tinha palavras com as sílabas diferentes – letras a preto, numas e a cinzento, noutras, alternadamente. 

O meu avô chamava-lhe o Paleógrafo

O outro era a história do João de Calaias, que, segundo o meu avô já lhe tinha sido contada pelo seu avô e que ele, pacientemente, me ia dramatizando o melhor que podia. 

À pergunta do costume: onde é que eu parei no último dia? Seguia-se a minha resposta e uma ou outra pergunta que, ou era esclarecida, ou simplesmente ignorada pelo meu avô que se limitava a dizer: 

Tem calma, parece que queres pôr o carro adiante dos bois. Ainda a história vai no começo. 

Lembro-me, de uma das vezes em que o meu avô me estava a contar como é que o João de Calaias conseguiu fugir da ilha e chegar ao seu palácio… 

Com os restos dos dois livritos, no meu colo, ao passar para a casa da escola, a Senhora Professora se chegou a nós e me perguntou: 

Já tens livros, queres ir comigo para a escola? Lá aprendes a ler as histórias e muitas outras coisas. 

Levantei-me num salto e estendi a mão para a professora e lá fui pela primeira vez para a escola, todo vaidoso, com dois restos de livros debaixo do braço. 

É, ao que me parece, a segunda imagem mais antiga que guardo – a primeira foi a morte e as cenas das carpideiras e da mortalha, de uma tia, doente, que tomava conta de mim, quando todos iam para a horta. 

Teria, neste caso, à roda de três anos e no caso da ida para a escola, de quatro para cinco. De então até aos sete anos aprendia com os colegas, fazia cópias, desenhos, recados à Senhora Professora e até ajudei alguns a aprender as letras. 

Não sei se foi por isso que, anos mais tarde, fui Professor e noutras ocupações, de outras empresas, sempre andei por perto das acções de formação e preparação do pessoal. 

Ficou-me o gosto de aprender e ensinar. 

O meu avô era um homem inteligente e sabia transmitir o que lhe convinha nas histórias que me contava. Dramatizava muito bem e nas suas palavras e imagens muito simples mas carregadas de sentimento e de princípios morais, passou-me matrizes que ficaram para sempre na minha personalidade e ajudaram a definir a linha de procedimentos que sempre me norteou. 

A história, ou lenda, do João de Calaias, parece-me ser aquilo que ao tempo andava de boca em boca, quer declamado, quer escrito em folhetos avulsos, sobre a epopeia de Jean de Calais , que enaltecia as virtudes do bom cidadão e reprovava os actos vis e traiçoeiros da pirataria e dos falsos amigos. 

Os bons eram premiados tal como as virtudes da senhora que nunca aceitou a notícia da morte do marido e se lhe manteve fiel em a sua longa ausência. 

Releva os actos de caridade cristã e a força da resistência humana, em que João de Calaias, sozinho numa ilha, anos a fio, comendo só pão e água que lhe levava o pássaro – entenda-se a alma do pedinte que mandou enterrar depois de ter sido morto por não pagar as dívidas e deitado aos cães –. 

Até o rei, como força da narração, apareceu no exacto momento em que o pirata que garantia a morte de João de Calaias foi desmascarado pelo pássaro misterioso e ditou a sentença, de extrema crueldade, que mandava amarrar o intrujão a quatro cavalos que, açoitados, esmigalharam, o malvado. 

Depois a questão da promessa de João de Calaias que o obrigava a dar ao pássaro, metade daquilo de que mais gostasse. 

Respeitando a palavra foi o nobre João de Calaias buscar o filho, ainda criança e quando o passarão reclamou a sua metade, guardou a espada e disse que não mataria o filho; que o seu salvador podia aceitar a metade que era dele e ficasse com o filho todo. 

Depois o desfecho: a boa alma, encarnada no pássaro, exclamou: 

Devo-te um grande favor e chegou a altura de te pagar: aceita tu, nobre e honrado cidadão a metade que prometeste e guarda o teu filho, junto da tua mulher. 

O próprio rei, levantou-se e curvou-se em frente de tão nobre fidalgo e, quando levantou os olhos para o castelo onde estava pousado o pássaro, viu uma alma, vestida de branco, subindo em direcção ao céu. 

Às vezes, lembro a história do João de Calaias e recordo as palavras e gestos do meu avô, que eu bebia, sofregamente, mesmo sem saber o que queriam dizer a maior parte das palavras.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

De Lisboa... para o mundo



O Lajinhas jamais esquecerá a última noite, passada na barraca das obras, junto ao hospital de Santa Maria, então em construção. 

Não conseguiu dormir, tais eram as ânsias de experimentar a nova vida, a bordo do cargueiro “Aurora”, da “Companhia Nacional de Navios”, onde entraria, no dia seguinte: tripulante num barco... 

Estava mas era a sonhar. 

Tinha no bolso catorze contos de réis. 

Numa pequena maleta, algumas peças de roupa e dois ou três livros de aventuras e viagens. 

Foi com esses haveres que apanhou o eléctrico, às seis da manhã, para o Terreiro do Paço, seguindo, dali, a pé, para Santa Apolónia, onde o esperava a sua casa – o Aurora –. 

Por mais que tenhamos tentado, é indescritível o estado de espírito do rapaz, quando, pouco antes das oito horas, subiu os degraus da escada do barco em que iria trabalhar. 

Não passou despercebida ao Imediato toda a carga emocional que o novo tripulante transportava, ao entrar, a bordo, onde foi recebido, apenas com as palavras da praxe: bem-vindo a bordo; a partir de agora, a tua família são os marinheiros desta embarcação e as ordens do Comandante são soberanas. 

Se sabes o que isto quer dizer; Se estás disposto a acatá-las e cumpri-las; Entra rapaz; És dos nossos! 

Nos dezoito dias seguintes, adaptou-se, na perfeição, aos trabalhos de bordo. Fez de tudo, desde limpeza a ajuda na cozinha, sem esquecer uma mãozinha na estiva e no abastecimento do barco. 

Fez questão de dizer, ao Senhor Comandante, que sempre foi conhecido pelo Lajinhas – embora o seu nome fosse António Manuel Lopes – e gostava que assim continuasse. 

E assim foi... Lajinhas – tripulante do navio Aurora. 

O barco levava um carregamento de madeira para Antuérpia. Ali, meteu cereais para o Brasil, e, passando depois, com café, ao largo de Cabo Verde, foi atracar em Cádis. Dali rumou para Lisboa e seguindo para Aveiro, carregou sal, para o Congo – Leopoldville – e fez-se, de novo, ao mar alto. 

O novato dava-se bem no mar – que atravessara pela primeira vez –, cumpria, exemplarmente, as tarefas de que era encarregado, comia bem e continuava ávido de tudo o que pudesse ver e aprender. 

Na tripulação, formada por oito elementos, havia dois estrangeiros – um grego e um marroquino, que falava francês –. 

O Lajinhas, muito querido do Comandante, gozava de algum crédito, junto dos camaradas. 

O marroquino, habituado às lides do mar, ensinou muitas coisas, que o rapaz aprendia com uma grande facilidade e pelas quais mostrava uma curiosidade fora do normal. 

Um dos temas mais habituais das conversas, durante a viagem, foi o Congo Belga, para onde seguiam. 

Lá na terra, o Lajinhas conhecia o “brasileiro”, da Carregueira, que tinha andado pelas Áfricas e, segundo pensava, pelo Congo Belga. 

Ficou a saber que entravam por um rio tão grande como o mar; que num dos lados, desse rio, era terra de Portugal; que havia alguns portugueses que ganhavam bem a vida, no Congo e que uma das maiores "casas", dessas terras, se chamava “Casa Nogueira”, onde iriam descarregar o sal de Aveiro. 

E pensou: uma casa que é capaz de comprar um navio de sal, deve ser muito grande e muito importante; deve ter muitos empregados!... 

Junto do Comandante, conseguiu saber mais coisas; que no Congo se falava francês; que era uma terra tão grande que tinha zonas quase desconhecidas dos brancos; que havia portugueses muito ricos, etc. 

Um dia, no convés, o Comandante perguntou-lhe se tinha algum interesse especial pelo Congo e ficou estupefacto com a resposta imediata e esclarecedora do rapaz: Se calhar ainda hei-de ir para lá trabalhar, Senhor Comandante. Gostava tanto! 

O Comandante disfarçou a admiração sentida pela resposta do rapaz, dizendo que estivesse seguro: dali a oito dias estariam em Leopoldville e teria bastante trabalho a bordo. Seria o seu primeiro trabalho, no Congo. 

Afastou-se, e, sem esquecer a determinação do Lajinhas, mexeu os cordelinhos, junto dos responsáveis da Casa Nogueira e das autoridades. Soube que eram precisos trabalhadores e estavam muito dispostos a receber um rapaz, português, com as qualidades que o Senhor Comandante atribuía ao seu tripulante. 

Ficou assente, embora em segredo, que se fariam os preparos para que na viagem seguinte, dali a uns seis meses, se tratasse do caso do tripulante do Aurora, com vista a entrar para os quadros da Casa Nogueira. 

O Comandante prepararia tudo e inteirar-se-ia, melhor, das capacidades do rapaz; ensinar-lhe-ia francês e outros conceitos que lhe pudessem ser úteis, em terras de África, particularmente no Congo, ao tempo Belga. 

Foi esse o acordo de cavalheiros, entre o senhor Anastácio, gerente da Casa Nogueira e o Comandante Calixto, do Aurora. 

Descarregado o sal, foram limpos os porões, feito o reabastecimento do navio e metida a carga de madeira, que levariam para Leixões. 

Zarparam, de Leopoldville, na véspera de Natal. 

Pela primeira vez se notou alguma sombra de nostalgia nos olhos do Lajinhas, quando na ceia desse dia se distribuiu rancho especial e se abriram duas garrafas de espumante, para a “família” toda reunida na sua casa – o navio Aurora. 

O Comandante desejou felicidades a todos, deu, a cada um, a possibilidade de enviar um telegrama para a família e, pouco depois da meia-noite, o rapaz, de pé no convés, deixava, para trás, pela primeira vez, as luzes das cidades do Congo, sendo o seu pedido secreto para o Menino Jesus, a sua volta ao Congo, mas para ficar por lá e vir a ser um “brasileiro”, como os que conhecia.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Lisboa... anos cinquenta



O Lajinhas chegou a Lisboa, num dia de Fevereiro, pouco depois de fazer dezoito anos. 

Ia com um primo, servente nas obras do hospital grande – Santa Maria – e ficou a dormir numa enxerga, que lhe fora cedida na barraca das obras. 

Tinha no bolso, bem escondidos, dois contos e quatrocentos mil réis, que juntara de pequenas tarefas, na aldeia, e das poupanças de alguma coisa que o pai e a mãe, separadamente, lhe davam. 

Havia que fazer-se à vida. 

Dois dias depois, foi, com outro parente, até ao cais de Santa Apolónia e ficou louco com uma visita a um barco ali atracado e que estava em altura de visita do público. 

Reparou nos homens que carregavam uma outra embarcação, ali perto, e soube que aquele trabalho, rude, era muito bem pago. Depois de mais umas perguntas, ficou inteirado dos mecanismos da estiva e, nessa noite, já não pensou noutra coisa. 

Um trabalho em que contactasse gente que conhecesse outras terras, onde pudesse aforrar algum dinheiro e lhe permitisse “cortar” línguas, era meio caminho, para os seus projectos. 

Começou a comparecer no “conto” logo de manhãzinha e, durante os próximos três meses, não ficou, uma única vez, sem trabalho. 

Os encarregados preferiam-no: era forte, aplicado e ordeiro. 

Carregou e descarregou de tudo, entendeu-se com uns, pelas palavras, com outros, por sinais e, outros houve, que nunca chegou a perceber. 

Um dia, entrou de falas com um comandante de um cargueiro, da Companhia Colonial de Navegação, e pediu-lhe que lhe arranjasse trabalho, a bordo. Fosse o que fosse; estava decidido a ir para longe e queria ganhar dinheiro, conhecer outras terras e, quem sabe, fixar-se e começar vida, algures, no mundo. 

As palavras do Lajinhas soaram bem nos ouvidos do comandante, que chamou o imediato e lhe disse secamente: vamos levar connosco este rapaz; veja se tem de arranjar alguns papéis, leve-o aos escritórios e inscreva-o, como tripulante indiferenciado. Sai já nesta viagem e veja o que ele poderá fazer, acomode-o, a bordo, e cuide dele. Acho que depois de amanhã, de manhã, poderá apresentar-se ao serviço, mesmo que ainda não tenha todos os papéis da Companhia. 

O rapaz nem acreditava no que lhe estava a suceder. Saiu dali, com o parente e, ao passar na Baixa, entrou na igreja de S. Domingos, onde esteve quinze minutos a agradecer à Virgem, tudo o que de bom lhe acontecia. 

De seguida, separou-se do familiar e seguiu, no eléctrico de Carnide, até às Laranjeiras. Apeou-se e foi a pé, até à obra, onde ainda tinha o catre e a trouxa. 

Esperou pelo primo, que depois convidou para jantar, numa taberna do Campo Pequeno. 

Em ar de despedida, contou-lhe que se ia embora, não sabia para onde, nem por quanto tempo, nem com que trabalho. Deixava tudo nas mãos da “Senhora”, que o havia de proteger, como o tinha ajudado até ali. Apenas adiantou que ia embarcar, num cargueiro da Companhia Colonial de Navegação, de nome Aurora, cujo destino e tempo de ausência, ignorava. 

Na manhã seguinte passou pela estiva, acertou as últimas contas e despediu-se de colegas e capatazes. Foi até ao cais e, ao vê-lo, o Imediato mandou-o entrar. 

Aproveitou para explicar que iria fazer de tudo um pouco, onde dormiria, etc. Não podia adiantar-lhe nada sobre ordenado e outras regalias, pois isso era cargo do Comandante. 

Esperaria, por ele, no dia seguinte, às oito horas. 

O Lajinhas passou a última noite, na barraca, e quase não pregou olho. 

Pela primeira vez foi assaltado por algumas dúvidas, quanto ao seu destino; todavia, duma coisa estava certo: seria muito melhor do que o que a vida lhe proporcionara até ali; era o que queria, não tinha que ter receio, de nada. 

0 horizonte da sua vida passaria a ser o Mundo e não seria ele a estabelecer as prioridades para o começo. 

Seguiria, sem destino, mas com um objectivo muito bem definido – vencer, na vida –.