Mal acabava de transpor a porta da igreja, no fim da missa do primeiro domingo da Quaresma, quando ouviu a voz do Abílio do Vale Perto a chamar padrinho.
Voltou-se, de imediato, o Ti’ João Pisco e, ao pedido da bênção, pelo afilhado, respondeu, como de costume: Deus te abençoe.
E dali seguiram, lado a lado, até à taberna de baixo, onde se acomodaram, na mesa do desvão da escada, a fim de terem uma prosa, como adiantou o Abílio.
O padrinho sabe que andam a cortar na minha do Vale da Cal; é o primeiro corte depois da morte do meu falecido pai e penso que os pinheiritos não foram mal vendidos.
São uns senhores do Vale de Mação que, além de sérios e cumpridores, têm cuidado com os estragos que fazem nas courela e, além do mais, nenhum outro se chegou ao que eles me deram.
Gostei dos homens e fechámos o negócio.
Ora o que lhe quero falar diz respeito aos três queimados que temos lá, na nossa estrema. O padrinho dirá, de sua justiça: ou se cortam e recebe a sua parte, ou se deixam ficar e continuam queimados.
Com certeza que fizeste as coisas pelo melhor, respondeu o Ti’João. Já agora, pode saber-se quanto recebeste por cada pinheiro?
Claro! Considero o meu padrinho como parte interessada no negócio: duas notas por cada pinheiro sangrado, salvo os três queimados, que ainda não foram entregues.
Queriam dar-me os cento e oitenta, mas a boa localização, praticamente dentro da estrada, e a certeza de que não os deixaria ir por menos um centavo, levou os homens a chegar-se à conta certa.
O Ti’João coçou a cabeça, por baixo da boina, revolveu o pauzito que apertava entre os dentes, fixou-se no afilhado e perguntou: então e a rama?
É claro que a pergunta não esperava resposta. Mas teve-a:
A rama de um pinheiro será para mim, a de outro, que cairá para dentro da sua, lá ficará. A do terceiro, que será derrubado sobre a estrema, será para os dois.
Gosto de ouvir-te, afilhado. És mesmo filho do teu pai, que Deus haja: sempre cuidadoso e cauteloso, prevendo tudo, preparando todas as coisas com cuidado!...Ah, como me lembro do compadre, embora nem sempre nos déssemos como Deus e os anjos; mas, verdade seja dita, mal, nunca nos demos.
Mas, além dos queimados, o padrinho pode querer vender todos os sangrados da sua courela. Isto é modo de falar, que nem ninguém me encomendou o sermão, nem eu o preguei.
E os homens lá do Mação estarão dispostos a dar-me as duas notas por cada um?
A isso não posso responder-lhe, padrinho. Eles, amanhã, estarão a cortar na minha; é questão do padrinho ir lá falar com eles. Pelo menos vai a saber com o que conta.
E tu, não queres estar presente? É que não me parece nada má essa tua ideia, além de que, até hoje, os meus pinheiros não ouviram mais de cento e oitenta e cinco mil réis, cada um.
Parabéns, afilhado, o meu compadre, e teu pai que Deus haja, há-de estar vaidoso de ti, pois estás a mostrar-te um verdadeiro filho de quem és.
Bondade sua, padrinho. Faz-se o que se pode; e se um homem não zelar pelo que é seu, levam-lhe coiro e cabelo e ainda ficam a rir-se nas suas costas.
Amanhã, ao sol-nado, encontramo-nos lá no Vale da Cal. Está bem, padrinho?
É melhor passares lá por minha casa; fica-te em caminho e, depois de matarmos o bicho, dividimos o caminho a meias, como costuma dizer-se; de prosa, até custa menos a chegar lá. Isto se não te importares e a companhia te agradar.
Ora essa, padrinho. Lá estarei e até amanhã. Recomendações à madrinha.
Igualmente para a tua mulher e vossos filhos, que estão a acabar a escola, não é?...
O Abílio deu voltas, na cama, para descobrir o que movia o padrinho na sua direcção; sempre fora arredio e sobranceiro e agora descia do pedestal?... Mas por que cargas de água?... E aquela dos miúdos a acabar a escola?...
O Ti’João andava, havia tempos, para se dirigir ao afilhado. Sabia que ele já fora ao Mação saber quanto custava o ensino no colégio que acabava de abrir, que já estivera na Queixoperra, em casa de um parente que trazia lá um filho havia um ano, e que até já apalavrara uma casa, na vila, para hospedar os filhos.
Aquela viagem caía como sopa no mel, para saber coisas e substituir-se ao genro, que não preparara nada: estava decidido que os seus netos também haviam de vir a ser muito mais do que ele e o dinheiro dos pinheiros do Vale da Cal iria ser reservado para esse fim.
Na viagem de ida e regresso o Ti’João confessou todo o seu interesse em saber coisas sobre o colégio e as possibilidades de mandar estudar os seus netos.
Agradeceu muito ao afilhado e pediu-lhe que fosse reservado sobre aquela prosa, pois queria saber até onde chegaria o seu genro. E, na altura própria, os netos do Ti’João foram para o colégio e, ainda em vida do avô, foram os dois primeiros a alcançarem uma formatura.
Desejamos que os muitos que se revêem nesta breve história, nunca tenham esquecido, ou renegado, os “Abílios” das nossas terras.
terça-feira, 29 de setembro de 2009
quarta-feira, 16 de setembro de 2009
A azenha do Ti Lindo
Danado de ano em que tudo correu mal, cá em casa.
Com estas palavras de desalento despedia-se o compadre Lindo do Tio André que viera assistir e ajudar na matança e estava de partida, com a patroa, os dois filhos e a nora – a filha mais velha do ti Lindo que casara, havia dois anos, com o filho mais moço do moleiro André, nado e criado no Pisão Fundeiro e muito bem afreguesado ali na Serra –.
Queixava-se o Ti Lindo:
O ano começou com aquele tombo do carro dos bois em que o cabano acabou por me partir um corno e ainda andar uns meses com um aleijão na perna esquerda, de trás, de jeito que o outro tinha praticamente de puxar sozinho.
Pouco trabalhámos na primeira metade do ano.
Depois a cabrita mais nova não tomou barriga e sempre foram menos dois chibitos, que a malvada nunca deu menos.
A praga deu nas macieiras do vale de Incenso e foi uma guerra para conseguir avisar os fregueses habituais que as árvores não tinham dado nada e não podia levar as encomendas.
O maldito do pulgão não deixou escapar uma couvinha que fosse, lá no canteirito que sempre me rendia uns centos de mil réis nas praças de Mação e do Sardoal.
As videiras nem deram para bebermos na ceifa e na matança; a safra da azeitona está feita, como se pode ver: nem vai chegar para a apanha.
O porquito, a que veio ajudar, é o que resta dos três que todos os anos costumamos matar.
Mas, compadre, que tudo seja em desconto dos nossos pecados e, se Deus quiser, para o ano será melhor. Nunca podemos desanimar e temos de aceitar o que o destino nos dá, pois que se há-de fazer?!...
O moleiro, tomando habilmente a palavra, rematou:
É verdade, senhor compadre, que é uma dor de alma carregar para aqui tantos taleigos de farinha para os três porquitos – com sua licença – e as malvadas das febres levarem quase tudo.
Deixe lá, graças a Deus estamos todos bem de saúde e aquele negócio de que falámos ontem, há-de correr bem e virá dar uma boa ajuda ao arranjo da sua casa que, com todos esses contratempos, ainda dá e vende aos olhos de quem a inveja.
E agora, com vossa licença, vamos andando que já não chegamos a casa antes de sol-posto e há animais a tratar, águas a tapar, engenhos a ajeitar, que amanhã é outro dia, se Deus quiser. Dê cá um abraço e muito bem hajam os compadres que tão bem nos souberam e quiseram receber.
Fiquem com Deus, compadres.
Aquelas últimas palavras do moleiro acabaram por dar um alento novo ao Ti Lindo.
Foi dali pensar os animais, avisar o Manuel do Vale e o Courela que no dia seguinte continuava a surriba nos Brejos, passou pela taberna para saber as últimas e sentou-se à mesa, junto da lareira, para cear com a mulher – Ti Maria das Dores –.
Comeram os restos da couvada do jantar e no fim uma morcela de assar, bem puxada de cominhos e apontada de sal e quando o Ti Lindo se sentou à lareira, depois da reza habitual, chegaram as duas comadres que vinham ajudar no tratamento das carnes para os enchidos.
As três mulheres acenderam uma candeia de azeite e dirigiram-se, pela porta dos fundos, à despensa anexa, onde se tratavam os assuntos referentes a carnes e enchidos da matança.
O Ti Lindo, com a cabeça a pender, continuou a pensar no segredo que partilhara com o compadre moleiro de quem conseguira obter todos os pormenores que lhe seriam muito úteis na concretização da tarefa que havia muito tempo preparava.
Soube dos passos a dar junto da Senhora Câmara, dos serviços da hidráulica, dos favores a conseguir junto do guarda-rios e tomou até orientações da construção e dos apetrechos necessários à montagem da azenha, no cimo da horta da Renda.
Pelas suas contas, com uns vinte contos de réis preparava tudo e em cada ano, só para os animais, haveria de moer para cima de trezentos alqueires de milho e centeio.
Com maquia de um em dez que fosse, a azenha ganhava trinta ou mais alqueires de pão em cada ano. E se aparecesse alguém que tivesse pão para ocupar os tempos mortos, podia arranjar-se mais cinco ou dez alqueires de maquias.
Onde diabo iria arranjar-se uma courela, por vinte contos, que, sem trabalho, desse trinta ou quarenta alqueires de pão?!..
Quando a mulher o abanou, despertou, levantou-se e disse-lhe:
Acabamos de adquirir uma courela que dá trinta ou quarenta alqueires de pão por ano… sem trabalho nenhum.
Vamos dormir…
Com estas palavras de desalento despedia-se o compadre Lindo do Tio André que viera assistir e ajudar na matança e estava de partida, com a patroa, os dois filhos e a nora – a filha mais velha do ti Lindo que casara, havia dois anos, com o filho mais moço do moleiro André, nado e criado no Pisão Fundeiro e muito bem afreguesado ali na Serra –.
Queixava-se o Ti Lindo:
O ano começou com aquele tombo do carro dos bois em que o cabano acabou por me partir um corno e ainda andar uns meses com um aleijão na perna esquerda, de trás, de jeito que o outro tinha praticamente de puxar sozinho.
Pouco trabalhámos na primeira metade do ano.
Depois a cabrita mais nova não tomou barriga e sempre foram menos dois chibitos, que a malvada nunca deu menos.
A praga deu nas macieiras do vale de Incenso e foi uma guerra para conseguir avisar os fregueses habituais que as árvores não tinham dado nada e não podia levar as encomendas.
O maldito do pulgão não deixou escapar uma couvinha que fosse, lá no canteirito que sempre me rendia uns centos de mil réis nas praças de Mação e do Sardoal.
As videiras nem deram para bebermos na ceifa e na matança; a safra da azeitona está feita, como se pode ver: nem vai chegar para a apanha.
O porquito, a que veio ajudar, é o que resta dos três que todos os anos costumamos matar.
Mas, compadre, que tudo seja em desconto dos nossos pecados e, se Deus quiser, para o ano será melhor. Nunca podemos desanimar e temos de aceitar o que o destino nos dá, pois que se há-de fazer?!...
O moleiro, tomando habilmente a palavra, rematou:
É verdade, senhor compadre, que é uma dor de alma carregar para aqui tantos taleigos de farinha para os três porquitos – com sua licença – e as malvadas das febres levarem quase tudo.
Deixe lá, graças a Deus estamos todos bem de saúde e aquele negócio de que falámos ontem, há-de correr bem e virá dar uma boa ajuda ao arranjo da sua casa que, com todos esses contratempos, ainda dá e vende aos olhos de quem a inveja.
E agora, com vossa licença, vamos andando que já não chegamos a casa antes de sol-posto e há animais a tratar, águas a tapar, engenhos a ajeitar, que amanhã é outro dia, se Deus quiser. Dê cá um abraço e muito bem hajam os compadres que tão bem nos souberam e quiseram receber.
Fiquem com Deus, compadres.
Aquelas últimas palavras do moleiro acabaram por dar um alento novo ao Ti Lindo.
Foi dali pensar os animais, avisar o Manuel do Vale e o Courela que no dia seguinte continuava a surriba nos Brejos, passou pela taberna para saber as últimas e sentou-se à mesa, junto da lareira, para cear com a mulher – Ti Maria das Dores –.
Comeram os restos da couvada do jantar e no fim uma morcela de assar, bem puxada de cominhos e apontada de sal e quando o Ti Lindo se sentou à lareira, depois da reza habitual, chegaram as duas comadres que vinham ajudar no tratamento das carnes para os enchidos.
As três mulheres acenderam uma candeia de azeite e dirigiram-se, pela porta dos fundos, à despensa anexa, onde se tratavam os assuntos referentes a carnes e enchidos da matança.
O Ti Lindo, com a cabeça a pender, continuou a pensar no segredo que partilhara com o compadre moleiro de quem conseguira obter todos os pormenores que lhe seriam muito úteis na concretização da tarefa que havia muito tempo preparava.
Soube dos passos a dar junto da Senhora Câmara, dos serviços da hidráulica, dos favores a conseguir junto do guarda-rios e tomou até orientações da construção e dos apetrechos necessários à montagem da azenha, no cimo da horta da Renda.
Pelas suas contas, com uns vinte contos de réis preparava tudo e em cada ano, só para os animais, haveria de moer para cima de trezentos alqueires de milho e centeio.
Com maquia de um em dez que fosse, a azenha ganhava trinta ou mais alqueires de pão em cada ano. E se aparecesse alguém que tivesse pão para ocupar os tempos mortos, podia arranjar-se mais cinco ou dez alqueires de maquias.
Onde diabo iria arranjar-se uma courela, por vinte contos, que, sem trabalho, desse trinta ou quarenta alqueires de pão?!..
Quando a mulher o abanou, despertou, levantou-se e disse-lhe:
Acabamos de adquirir uma courela que dá trinta ou quarenta alqueires de pão por ano… sem trabalho nenhum.
Vamos dormir…
sexta-feira, 4 de setembro de 2009
O velho Faustino
Ninguém conhecera, não se lembrava ou, simplesmente não queria falar do Ti´Fastino, como se dizia no povo, enquanto rapaz.
Durante uns tempos, após o seu desaparecimento, falou-se dele como voluntário na guerra da França, embarcado na marinha mercante, zelador de um cemitério de mortos na guerra, algures na Bélgica, cativo dos indígenas de um país africano, deportado nas galés e rufia nas ruas da capital. Esqueceram-no, por fim.
Afastado da terra, e sem com ela comunicar, durante perto de setenta anos, regressou, num dia de cerrada maresia, dirigiu-se a casa dos parentes mais próximos, se bem que afastados, cumprimentou-os e manifestou a vontade de se fixar na Terra.
Queria uma casa, que estava disposto a comprar, e precisava de quem lhe tratasse da roupa e preparasse a comida.
Adiantou-se a Tia Ana Tomásia, prima ainda chegada, que ofereceu uma casa ao Ti´Fastino e se prontificou a tratar de roupas e limpezas da casa – sabe, primo, gostaria de lhe dar melhor, mas cá na terra é o que se pode arranjar; não levará a mal –.
O recém-chegado agradeceu e aceitou a oferta, dizendo que tinha toda a roupa que precisava e que arranjasse alguém para ajudá-la, sem olhar às despesas.
Passados poucos dias, dominava, perfeitamente, a aldeia, embora se mantivesse à margem e nunca adiantasse conversa quando era interpelado.
Agradecia tudo o que lhe faziam e era bastante generoso nas recompensas que dava.
Era homem de poucas falas, com dificuldades auditivas e usava óculos muito graduados. De aspecto limpo e cuidado, muito bem vestido, trouxera, consigo, apenas duas malas, no automóvel em que chegou ao Casal.
Na primeira volta pela aldeia deu a salvação aos que com ele se cruzaram, sendo desconhecido da maioria.
Alguns, porém, nem acreditaram no que estavam a ver.
Esperavam tudo, menos o velho “Fastino”, dado como morto, havia muito tempo.
Os dias passaram e no correio passou a chegar, todos os dias, “O Século” e, várias cartas, com carimbo de Lisboa, mas sem remetente.
Levantava-se cedo, demorava uma boa meia hora a fazer a higiene pessoal, recebia o barbeiro – curioso que aprendera a arte na tropa – para lhe fazer a barba e dava voltas pelos campos dos arredores, que parecia reconhecer.
Passava horas, sentado no meio dos pinheiros, com a cabeça entre as mãos, como que dormitando.
Todos os dias, depois da primeira volta pelo campo, mandava alguém ao Casal procurar o correio e almoçava. Dormia a sesta e, pela tardinha, saía para a segunda volta, de que regressava ao pôr-do-sol, passando pelas tabernas, onde convidava todos os presentes a beber um copo. Regressava a casa, comia um caldo, acompanhado de carne ou peixe e fruta da terra.
Uns dois meses depois do regresso do velho Faustino, chegou à aldeia um homem bem-posto, num carro de praça de Alferrarede, com uma pasta na mão, perguntando pelo senhor António Marques Faustino.
Dizia-se advogado e ter assuntos muito importantes e do interesse do senhor, a tratar com ele. Queria que o levassem a sua casa, pois sabia que morava na aldeia.
Enquanto entretiveram o homem, no largo das tabernas, alguém saiu, sub-repticiamente, dirigiu-se a casa do velho Faustino e, não o encontrando, foi procurá-lo no caminho da serra, no meio do pinhal. Ofegante, disse-lhe:
Deus o salve, Ti´Fastino!... Está lá em baixo, à porta da taberna, um senhor que chegou num carro de praça e que disse ter de falar com vomeçê, em pessoa, para seu interesse. Diz que é de leis. O que quer que se lhe diga? Ainda ninguém lhe disse nada, penso eu!...
Vai lá e traz o senhor a minha casa, mas sozinho, ouviste?!...
Numa correria desenfreada, partiu o Zé Miguel a caminho das tabernas e, poucos minutos depois já conduzia o homem para junto da casa do Ti´Fastino, ficando de atalaia, ao fundo da canada para que, como disse o velho, o homem fosse só e mais ninguém presenciasse, ou incomodasse, o que tivessem a resolver os dois.
Ficou, pois, para o que desse e viesse, discretamente vigilante, como que de guarda, ainda que ninguém lhe tivesse encomendado o sermão.
Uma boa hora depois saíram os dois, a conversar, a caminho das tabernas, tendo entrado numa delas para beber um copo, no que foram acompanhados pelos presentes, a convite do velho Fastino.
Foi o advogado a quebrar o silêncio, anunciando que não podia adiantar muito, pois teria que respeitar a vontade do seu cliente, ali presente, mas sempre disse que voltaria mais vezes à aldeia que, a partir daquele dia, poderia receber muitos e bons melhoramentos.
Queria ir a Penhascoso, falar com o senhor padre da freguesia, mas antes precisava dar uma palavrinha ao Cabo de Ordens da terra.
Veio o António do Vale e teve uma conversa com o advogado que, ao que mais tarde se soube, o encarregou de preparar uma comissão de melhoramentos e organizar as coisas para que quando o advogado voltasse, estivesse tudo pronto a avançar.
Tomou nota do nome do padre, despediu-se, do senhor Faustino, curvando-se, entrou no carro e deu ordens ao motorista para seguir até Penhascoso, onde devia dirigir-se a casa do senhor prior e aguardar.
A conversa, com o padre António, resumiu-se às explicações que o advogado entendeu dever dar sobre as intenções do seu cliente, a residir na Serra, sua aldeia natal.
Apresentou-se como advogado e administrador de fortunas e estava ali para pedir a colaboração do padre da freguesia para algumas acções que tinham a ver com a capela.
Pedia, ainda, que fosse respeitada a vontade do seu cliente e o senhor padre ajudasse a manter o povo informado e sem comentários, pois o senhor comendador António Marques Faustino não gostava que se falasse na vida dele.
Nos próximos dias chegariam novidades e a comissão que pediu que criassem na Serra, deveria incluir o senhor padre.
Disse, por fim, que seria informado sobre tudo o que acontecesse e despediu-se, agradecendo toda a colaboração que lhe fosse dispensada, quando solicitada. Entrou no carro e partiu, com um muito obrigado.
Na Serra, como seria de esperar, não se falou de outra coisa: o senhor Fastino, que, se não era, passou a ser, parente de toda a gente da terra, era homem de peso, diziam uns; tratava-se de um benemérito que fizera bem a muita gente e agora se lembrara da sua terra, adiantavam outros.
Houve, porém, os que se calaram e esperaram para ver, porque desconfiaram de tantos segredos e tanta fartura.
Quinze dias depois da visita do advogado, chegou a primeira carta, de Lisboa, com remetente igual às que chegavam para o senhor Faustino, como passou a ser tratado o velho.
Dirigida ao Cabo de Ordens, que depois de mandar lê-la, marcou uma reunião da comissão de melhoramentos, entretanto eleita.
Foi passada palavra e informado, pessoalmente, o senhor Faustino, que fora escolhido para presidente e declarou aceitar o cargo mas apenas como honorário, o que, como explicou, queria dizer que poderia ir às reuniões, participar e ajudar, mas não era obrigado a nada.
O presidente da comissão, Cabo de Ordens, e os restantes quatro membros, além do senhor Faustino e do senhor padre, tomaram lugar na mesa e foi começada a primeira reunião. Estavam presentes muitos populares que enchiam, a capela.
O senhor padre justificou a realização da reunião na capela como absolutamente normal e por ser a casa de todos e ser do interesse do povo o que se iria discutir.
Com a ajuda do padre procedeu-se à escolha dos membros, primeiro e segundo secretários e do tesoureiro e tesoureiro substituto. Foram explicados os procedimentos e a maneira de fazer as actas, que na primeira fase ficaram a cargo do padre.
O presidente honorário pediu a palavra para cumprimentar todos os presentes e pediu ao senhor padre para ler a carta que chegou de Lisboa, enviada pelo seu advogado, com que estava de acordo, pois já lera a cópia.
Resumidamente a carta explicava a situação do advogado e definia os princípios da vontade do senhor Comendador:
Desejava pagar os melhoramentos definidos e aprovados pela comissão.
Mandar instalar um telefone na aldeia.
Fazer todas as coisas necessárias para trazer luz eléctrica para a aldeia.
Reparar caminhos, fontes e capela.
Fazer casa da escola.
Fazer casa para a associação de melhoramentos.
Vinda de médico à aldeia, entre várias outras sugestões.
Para fundo de maneio recomendava a abertura de uma conta, na Caixa Geral de Depósitos, no valor de cem contos de réis, doado pelo senhor Comendador António Marques Faustino.
Durante a leitura, o senhor Faustino manteve-se impávido e sereno e todos os presentes ficaram tão espantados que apenas abriram a boca de admiração à medida que o senhor padre foi lendo.
No final, o senhor Faustino pediu licença para se retirar e recomendou ao senhor padre que explicasse tudo o que a carta dizia e o verdadeiro alcance dela.
Levantou-se e com um ‘Deus vos salve a todos’, saiu.
Durante o resto da manhã ninguém arredou pé, ouvindo as explicações do padre e perguntando o que não entendia.
No final, como resumo, o senhor padre disse:
Caros amigos o que se está a passar é uma verdadeira dádiva do Senhor. O nosso conterrâneo está disposto, e pode, gastar muito dinheiro em benefício desta nossa terra. Os bens dele suportam tudo o que aqui foi anunciado e muito mais, segundo sei. Mas oiçam bem e tenham sempre presente que o senhor Comendador não suporta várias coisas, de que destaco duas:
Não gosta que se metam na vida dele.
Não tolera que o enganem.
De tudo o que se fizer ficará relato nas actas e será dado conhecimento ao senhor doutor advogado.
Todas as acções e despesas serão discutidas e aprovadas pela comissão, antes de apresentadas ao doutor advogado que receberá as cópias das actas das sessões.
O livro de actas ficará à guarda do nosso secretário e poderá ser consultado por qualquer pessoa que o peça, apenas tendo que consultá-lo na presença e no local da comissão.
As ideias, sugestões, pedidos, etc., serão sempre apresentados por escrito e entregues a qualquer membro da comissão que o agendará na reunião seguinte.
O senhor Comendador, tal como o seu representante, não deve ser incomodado, pelo que será informado através das actas das sessões e, proponho que não tenha que se deslocar para as ler, mas receba uma cópia de todas as actas, em sua casa.
Nas décadas seguintes a aldeia progrediu mais que no milénio antecedente e, se não aproveitou melhor a benemerência do velho Fastino, foi por falta de ousadia das comissões e nunca por insuficiência de meios.
Durante uns tempos, após o seu desaparecimento, falou-se dele como voluntário na guerra da França, embarcado na marinha mercante, zelador de um cemitério de mortos na guerra, algures na Bélgica, cativo dos indígenas de um país africano, deportado nas galés e rufia nas ruas da capital. Esqueceram-no, por fim.
Afastado da terra, e sem com ela comunicar, durante perto de setenta anos, regressou, num dia de cerrada maresia, dirigiu-se a casa dos parentes mais próximos, se bem que afastados, cumprimentou-os e manifestou a vontade de se fixar na Terra.
Queria uma casa, que estava disposto a comprar, e precisava de quem lhe tratasse da roupa e preparasse a comida.
Adiantou-se a Tia Ana Tomásia, prima ainda chegada, que ofereceu uma casa ao Ti´Fastino e se prontificou a tratar de roupas e limpezas da casa – sabe, primo, gostaria de lhe dar melhor, mas cá na terra é o que se pode arranjar; não levará a mal –.
O recém-chegado agradeceu e aceitou a oferta, dizendo que tinha toda a roupa que precisava e que arranjasse alguém para ajudá-la, sem olhar às despesas.
Passados poucos dias, dominava, perfeitamente, a aldeia, embora se mantivesse à margem e nunca adiantasse conversa quando era interpelado.
Agradecia tudo o que lhe faziam e era bastante generoso nas recompensas que dava.
Era homem de poucas falas, com dificuldades auditivas e usava óculos muito graduados. De aspecto limpo e cuidado, muito bem vestido, trouxera, consigo, apenas duas malas, no automóvel em que chegou ao Casal.
Na primeira volta pela aldeia deu a salvação aos que com ele se cruzaram, sendo desconhecido da maioria.
Alguns, porém, nem acreditaram no que estavam a ver.
Esperavam tudo, menos o velho “Fastino”, dado como morto, havia muito tempo.
Os dias passaram e no correio passou a chegar, todos os dias, “O Século” e, várias cartas, com carimbo de Lisboa, mas sem remetente.
Levantava-se cedo, demorava uma boa meia hora a fazer a higiene pessoal, recebia o barbeiro – curioso que aprendera a arte na tropa – para lhe fazer a barba e dava voltas pelos campos dos arredores, que parecia reconhecer.
Passava horas, sentado no meio dos pinheiros, com a cabeça entre as mãos, como que dormitando.
Todos os dias, depois da primeira volta pelo campo, mandava alguém ao Casal procurar o correio e almoçava. Dormia a sesta e, pela tardinha, saía para a segunda volta, de que regressava ao pôr-do-sol, passando pelas tabernas, onde convidava todos os presentes a beber um copo. Regressava a casa, comia um caldo, acompanhado de carne ou peixe e fruta da terra.
Uns dois meses depois do regresso do velho Faustino, chegou à aldeia um homem bem-posto, num carro de praça de Alferrarede, com uma pasta na mão, perguntando pelo senhor António Marques Faustino.
Dizia-se advogado e ter assuntos muito importantes e do interesse do senhor, a tratar com ele. Queria que o levassem a sua casa, pois sabia que morava na aldeia.
Enquanto entretiveram o homem, no largo das tabernas, alguém saiu, sub-repticiamente, dirigiu-se a casa do velho Faustino e, não o encontrando, foi procurá-lo no caminho da serra, no meio do pinhal. Ofegante, disse-lhe:
Deus o salve, Ti´Fastino!... Está lá em baixo, à porta da taberna, um senhor que chegou num carro de praça e que disse ter de falar com vomeçê, em pessoa, para seu interesse. Diz que é de leis. O que quer que se lhe diga? Ainda ninguém lhe disse nada, penso eu!...
Vai lá e traz o senhor a minha casa, mas sozinho, ouviste?!...
Numa correria desenfreada, partiu o Zé Miguel a caminho das tabernas e, poucos minutos depois já conduzia o homem para junto da casa do Ti´Fastino, ficando de atalaia, ao fundo da canada para que, como disse o velho, o homem fosse só e mais ninguém presenciasse, ou incomodasse, o que tivessem a resolver os dois.
Ficou, pois, para o que desse e viesse, discretamente vigilante, como que de guarda, ainda que ninguém lhe tivesse encomendado o sermão.
Uma boa hora depois saíram os dois, a conversar, a caminho das tabernas, tendo entrado numa delas para beber um copo, no que foram acompanhados pelos presentes, a convite do velho Fastino.
Foi o advogado a quebrar o silêncio, anunciando que não podia adiantar muito, pois teria que respeitar a vontade do seu cliente, ali presente, mas sempre disse que voltaria mais vezes à aldeia que, a partir daquele dia, poderia receber muitos e bons melhoramentos.
Queria ir a Penhascoso, falar com o senhor padre da freguesia, mas antes precisava dar uma palavrinha ao Cabo de Ordens da terra.
Veio o António do Vale e teve uma conversa com o advogado que, ao que mais tarde se soube, o encarregou de preparar uma comissão de melhoramentos e organizar as coisas para que quando o advogado voltasse, estivesse tudo pronto a avançar.
Tomou nota do nome do padre, despediu-se, do senhor Faustino, curvando-se, entrou no carro e deu ordens ao motorista para seguir até Penhascoso, onde devia dirigir-se a casa do senhor prior e aguardar.
A conversa, com o padre António, resumiu-se às explicações que o advogado entendeu dever dar sobre as intenções do seu cliente, a residir na Serra, sua aldeia natal.
Apresentou-se como advogado e administrador de fortunas e estava ali para pedir a colaboração do padre da freguesia para algumas acções que tinham a ver com a capela.
Pedia, ainda, que fosse respeitada a vontade do seu cliente e o senhor padre ajudasse a manter o povo informado e sem comentários, pois o senhor comendador António Marques Faustino não gostava que se falasse na vida dele.
Nos próximos dias chegariam novidades e a comissão que pediu que criassem na Serra, deveria incluir o senhor padre.
Disse, por fim, que seria informado sobre tudo o que acontecesse e despediu-se, agradecendo toda a colaboração que lhe fosse dispensada, quando solicitada. Entrou no carro e partiu, com um muito obrigado.
Na Serra, como seria de esperar, não se falou de outra coisa: o senhor Fastino, que, se não era, passou a ser, parente de toda a gente da terra, era homem de peso, diziam uns; tratava-se de um benemérito que fizera bem a muita gente e agora se lembrara da sua terra, adiantavam outros.
Houve, porém, os que se calaram e esperaram para ver, porque desconfiaram de tantos segredos e tanta fartura.
Quinze dias depois da visita do advogado, chegou a primeira carta, de Lisboa, com remetente igual às que chegavam para o senhor Faustino, como passou a ser tratado o velho.
Dirigida ao Cabo de Ordens, que depois de mandar lê-la, marcou uma reunião da comissão de melhoramentos, entretanto eleita.
Foi passada palavra e informado, pessoalmente, o senhor Faustino, que fora escolhido para presidente e declarou aceitar o cargo mas apenas como honorário, o que, como explicou, queria dizer que poderia ir às reuniões, participar e ajudar, mas não era obrigado a nada.
O presidente da comissão, Cabo de Ordens, e os restantes quatro membros, além do senhor Faustino e do senhor padre, tomaram lugar na mesa e foi começada a primeira reunião. Estavam presentes muitos populares que enchiam, a capela.
O senhor padre justificou a realização da reunião na capela como absolutamente normal e por ser a casa de todos e ser do interesse do povo o que se iria discutir.
Com a ajuda do padre procedeu-se à escolha dos membros, primeiro e segundo secretários e do tesoureiro e tesoureiro substituto. Foram explicados os procedimentos e a maneira de fazer as actas, que na primeira fase ficaram a cargo do padre.
O presidente honorário pediu a palavra para cumprimentar todos os presentes e pediu ao senhor padre para ler a carta que chegou de Lisboa, enviada pelo seu advogado, com que estava de acordo, pois já lera a cópia.
Resumidamente a carta explicava a situação do advogado e definia os princípios da vontade do senhor Comendador:
Desejava pagar os melhoramentos definidos e aprovados pela comissão.
Mandar instalar um telefone na aldeia.
Fazer todas as coisas necessárias para trazer luz eléctrica para a aldeia.
Reparar caminhos, fontes e capela.
Fazer casa da escola.
Fazer casa para a associação de melhoramentos.
Vinda de médico à aldeia, entre várias outras sugestões.
Para fundo de maneio recomendava a abertura de uma conta, na Caixa Geral de Depósitos, no valor de cem contos de réis, doado pelo senhor Comendador António Marques Faustino.
Durante a leitura, o senhor Faustino manteve-se impávido e sereno e todos os presentes ficaram tão espantados que apenas abriram a boca de admiração à medida que o senhor padre foi lendo.
No final, o senhor Faustino pediu licença para se retirar e recomendou ao senhor padre que explicasse tudo o que a carta dizia e o verdadeiro alcance dela.
Levantou-se e com um ‘Deus vos salve a todos’, saiu.
Durante o resto da manhã ninguém arredou pé, ouvindo as explicações do padre e perguntando o que não entendia.
No final, como resumo, o senhor padre disse:
Caros amigos o que se está a passar é uma verdadeira dádiva do Senhor. O nosso conterrâneo está disposto, e pode, gastar muito dinheiro em benefício desta nossa terra. Os bens dele suportam tudo o que aqui foi anunciado e muito mais, segundo sei. Mas oiçam bem e tenham sempre presente que o senhor Comendador não suporta várias coisas, de que destaco duas:
Não gosta que se metam na vida dele.
Não tolera que o enganem.
De tudo o que se fizer ficará relato nas actas e será dado conhecimento ao senhor doutor advogado.
Todas as acções e despesas serão discutidas e aprovadas pela comissão, antes de apresentadas ao doutor advogado que receberá as cópias das actas das sessões.
O livro de actas ficará à guarda do nosso secretário e poderá ser consultado por qualquer pessoa que o peça, apenas tendo que consultá-lo na presença e no local da comissão.
As ideias, sugestões, pedidos, etc., serão sempre apresentados por escrito e entregues a qualquer membro da comissão que o agendará na reunião seguinte.
O senhor Comendador, tal como o seu representante, não deve ser incomodado, pelo que será informado através das actas das sessões e, proponho que não tenha que se deslocar para as ler, mas receba uma cópia de todas as actas, em sua casa.
Nas décadas seguintes a aldeia progrediu mais que no milénio antecedente e, se não aproveitou melhor a benemerência do velho Fastino, foi por falta de ousadia das comissões e nunca por insuficiência de meios.
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