Num beco dum recanto da Praça do Quevedo, quase paredes-meias com a passagem de nível, do centro da cidade de Setúbal, viveu toda a vida a Ti’Guilhermina, levantando e baixando bandeiras, à passagem dos comboios.
Por companhia certa tinha o filho; acidentalmente o Galamas pernoitava também nas modestas instalações da guarda da CP. Nunca se casaram mas eram, de facto, como agora se diz, um casal. Tinham um moço – o Carlos –.
O Galamas vivia de expedientes: ia ao mar quando o chamavam, embarcava na campanha do bacalhau, fazia estiva no porto e, sem que ninguém soubesse dele, ausentava-se meses a fio, acabando por voltar, roto, faminto e bêbedo.
O moço, finório, aprendeu tudo o que as docas ensinam.
Empurrado pela mãe, seguia os pescadores que transportavam as canastras do peixe para a lota e, com outros ganapos, disputava as sardinhas e carapaus que iam caiando ao chão.
Do que conseguia apanhar dependia a fartura ou míngua que tinha em casa para ir comendo.
O garoto foi crescendo ao Deus dará: criado sem pai e a mãe sempre dependente da passagem dos comboios.
Vivia-se, por ali, em total desgoverno.
A escola foi coisa que nunca o cativou, com bastante pena da professora: à parte uma voz fanhosa, tinha uma boa memória, escrevia com facilidade e na matemática era mesmo bom.
Ainda menino começou a fumar as beatas e a escorropichar os restos dos copos de vinho, na taberna do Ti’Ambrósio, duas ruas atrás da sua casa.
O velho dava-lhe umas côdeas de pão, sopas de vinho, sardinhas assadas e, todos os dias, sopa fresca.
Em troca o moço fazia os recados e, sempre que podia, pedia à porta da igreja.
Acabava por passar dias seguidos sem aparecer à mãe que já nem o procurava.
Depois de uns anos desaparecido da cidade, em que entretanto morreu a Ti’Guilhermina, o Galamas apareceu, um dia, lá pelos casebres do Quevedo e por ali se foi demorando.
Tábua aqui e acolá; mais chapa e porta remendada e, pelo menos, deixou de chover lá dentro.
Embebedava-se todos os dias na tasca do Ti’Ambrósio e ouvia, os ralhetes do velhote com a maior das paciências deste mundo, como dizia.
Um dia, o Ti’Ambrósio, chamou o Galamas e disse-lhe, com ar solene e como que fazendo-lhe o seu testamento:
Olha homem, nem para ti és bom; podias hoje ser dono desta casa, mas nunca tiveste cabeça.
Embebedas-te todos os dias e já nem te lembras que ainda tens aqui vinte paus no livro dos calotes.
Bem Ti’Ambrósio, vamos lá a pôr os pontos nos is:
O senhor tem sido, para mim, aquilo que realmente me parece que é, mas vamos esquecer isso.
Não é verdade que me embebedo todos os dias; como podia isso ser se nem tenho tempo de curtir a que apanhei já nem me lembro quando.
Quanto aos vinte paus que o senhor diz que tenho aí, esteja descansado, quando precisar deles venho cá buscá-los.
E, voltando costas, seguiu, rua abaixo, em direcção ao porto, para não mais ser visto em Setúbal.
Até que uns dez anos depois, morreu o velho taberneiro e corridos os trâmites legais, foi considerado herdeiro do negócio, da casa e de outros bens móveis e imóveis do velho Ambrósio.
Rezava o edital, afixado, em Setúbal:
Procura-se e convoca-se Carlos António Galamas, residente em parte incerta, perfilhado por Ambrósio de Matos Marcelino e considerado seu herdeiro universal.